Com quem você teve mais prazer em dançar, com Gene Kelly ou com Fred Astaire ? Essa pergunta só pode ser respondida por uma atriz viva depois da morte da maravilhosa Cyd Charisse. A francesa Leslie Caron, 80 anos, explica a diferença entre dançar com um e com o outro, ambos geniais. Ela era a entrevistada nesta sexta do programa das 8 da manhã da rádio France Culture, um must que nos antena com o mundo da política e da cultura.
Caron acaba de lançar um livro de memórias e sua passagem por Hollywood é um dos pontos fortes da obra, na qual ela traça perfis precisos e deliciosos (segundo os jornalistas que leram o livro) de atores, diretores e atrizes com quem trabalhou. Uma grande dama na vida real que alia discrição à classe. A adorável francesinha de « Lili », « Gigi » e « Um americano em Paris » mora hoje em Villeneuve-sur-Yonne onde tem um restaurante de cozinha tradicional chamado « La Lucarne aux chouettes ».
Uma delícia de entrevista para começar o dia e variar do pesado noticiário político em torno do provável estupro novaiorquino que sacode a França, para deleite da direita (que comemora em silêncio) e desolação dos amigos de Dominique Strauss-Kahn, que o defendem como se a vítima fosse ele. Quem se interessar em ler uma das críticas dessa postura pode ler no link do Nouvel Observateur ou no Le Monde :
O americano Jonah Goldberg criticou na National Review : « Enquanto Bernard-Henri Levy se escandaliza que uma camareira possa levar ao tribunal um “grande” homem como Dominique Strauss-Kahn por uma agressão sexual, eu me sinto orgulhoso de viver num país onde uma faxineira pode desalojar um dirigente internacional de um avião que vai decolar para Paris ».
Matt Welch, editor da revista Reason, chama BHL de « miliardário narcisista de camisa desabotoada », referindo-se ao look do « filósofo » francês que adora aparecer. Um dos editorialistas do The Economist o define como « o autor do pior livro já escrito sobre os Estados Unidos (American Vertigo) e o critica por louvar os méritos de DSK sem pensar na mulher que se diz vítima de agressão sexual.
Na França, segue-se o noticiário em torno de DSK como uma novela, que aqui não existe. Nunca os jornais venderam tanto, nunca se viu tanto jornal de televisão quanto na semana que passou. Os noticiarios da TV entram com os correspondentes ao vivo, abrindo espaço até mesmo em programas como o Grand Journal de Canal Plus, feito diretamente de Cannes durante o festival. Nas ruas, nos cafés, nos escritorios, DSK e seu pesadelo novaiorquino é o assunto de todas as conversas. Uma pesquisa informa que 57% dos franceses ouvidos pensam que ele caiu numa armadilha.
O grande debate na imprensa francesa se dá em torno da lei de proteção à vida privada, um álibi para os jornalistas que nunca investigaram as histórias de assédio sexual que circulam há anos entre jornalistas e políticos envolvendo o mesmo personagem : Dominique Strauss-Kahn. Os jornalistas franceses foram coniventes com o sedutor brilhante e poderoso ou foram, de certa forma, cumplices de um predador sexual?
Midnight in Paris – Para Allen, festa em Paris é eterna
Woody Allen tinha perdido um pouco a inspiração depois do genial Match Point. Com Midnight in Paris (Minuit à Paris) ele volta à melhor forma, realizando um filme inteligente, leve, engraçado. Um prazer da primeira à última cena. A cidade mais bonita do mundo, que nas entrevistas Allen coloca em pé de igualdade com Nova York, aparece em todo seu esplendor, como um personagem em si. O personagem principal, o alter ego de Allen, vive uma espécie de conto de fadas que começa quando o relógio soa as 12 badaladas. Na excelente trilha sonora (não esqueçamos o bom gosto de Woody Allen, que além do mais é músico) uma surpresa: "Recado", música brasileira da década de 50, com tratamento jazzístico.
O roteiro é genial e o filme simplesmente delicioso, com piadas antológicas. Fui ver logo que foi lançado, durante o festival de Cannes, e vou aproveitar o primeiro momento de folga para rever. Com o festival, os lançamentos de bons filmes se acumulam e Terence Malick me espera.
MITTERRAND, 30 ANOS DEPOIS – O legado político e segredos de família
Por Leneide Duarte-Plon, de Paris
*Publicado no Observatório da Imprensa em 17/5/2011
A abolição da pena de morte foi obra dele. A reconciliação com a Alemanha (quem não lembra da emblemática foto de mãos dadas com Helmut Kohl?), também. A quinta semana de férias para os trabalhadores, o imposto sobre as grandes fortunas, as nacionalizações, a pirâmide do Louvre, o arco de La Défense, a Bibliothèque National de France, as 39 horas de trabalho semanais, a aposentadoria aos 60 anos, o salário mínimo social a todos os necessitados, Revenu minimum d’insertion, consagrado pela sigla RMI.
A herança de Mitterrand é colossal e ajudou a forjar o mito do "único presidente de esquerda da Quinta República", "beatificado" pelos socialistas durante as comemorações dos 30 anos de sua eleição, neste 10 de maio de 2011, alguns dias depois da beatificação de João Paulo II. Pelo estilo de governar, pelo gosto do poder e pela autoridade natural que lhe era imputada, o socialista foi chamado por uma certa imprensa francesa de direita de "Mitterramsés" (a pirâmide do Louvre ajudou a aproximação com os faraós).
Mas a eleição de Mitterrand na Union de la Gauche, forjada com os comunistas, também ocasionou uma fuga de capitais fenomenal, que ameaçou o franco francês e o novo governo então recém-instalado no Palácio do Eliseu. No Libération, o trabalhista britânico Denis MacShane conta que no dia seguinte, 11 de maio de 1981, tomou o avião de volta a Londres cercado de homens de negócios parisienses que seguravam nervosamente as pastas 007, apavorados com a chegada da esquerda ao poder. "No avião, havia pelos menos 10 bilhões de francos que deixavam a França", diverte-se trinta anos depois MacShane.
Prognóstico errado
Os 30 anos da chegada ao poder do presidente socialista, um chefe de Estado de estatura inegável, homem de cultura extraordinária, foram comemorados na mídia com suplementos especiais nos jornais de esquerda, como Libération e Le Monde, e documentários exibidos na televisão. Os que não viveram a era Mitterrand não têm do que se queixar. A eleição do presidente que trouxe a esquerda ao poder e nomeou ministros comunistas (o que inquietou enormemente Ronald Reagan e seu vice-presidente George Bush, assim como Margaret Thatcher) foi rememorada com uma avalanche de festas e encontros, mas sobretudo de textos e análises na imprensa escrita.
Le Monde constatava na manchete do número datado de 10 de maio que "Mitterrand volta a ser o ícone da esquerda" 30 anos depois de sua eleição. E, como homenagem, presenteou os leitores com um suplemento de 16 páginas, réplica exata das páginas que analisaram e noticiaram a eleição de 10 de maio de 1981. Um deleite para colecionadores. Naqueles tempos, o jornal não publicava fotos e na primeira página a única imagem é de Pierre Mendès-France, na publicidade da biografia escrita por Jean Lacouture. Uma frase de Mendès-France remete sutilmente ao fato do dia: "Toda política não é suja. Toda ação não é vã."
Na noite de comemorações, depois do telejornal da noite, o canal France 2 fez uma homenagem que começou às 20h35 e entrou pela madrugada. Changer la vie-Mitterrand 1981-1983, de Serge Moati, cineasta que foi assessor do presidente para assuntos de audiovisual e depois dirigiu o canal público France 3, abriu a série de três filmes em torno do presidente.
Em Changer la vie, que pertence ao gênero que os franceses chamam de docufiction, pois mistura imagens de arquivo com cenas reais vividas por atores, Moati reconstitui sua relação com o presidente e os principais fatos de seu governo, inclusive o câncer, diagnosticado pouco depois da eleição de 1981 e do qual os franceses só tomaram conhecimento dois anos antes de ele deixar o poder, em 1995. No excelente docufiction, o médico que diagnosticou o câncer de Mitterrand lhe anuncia a doença e responde ao presidente com um prognóstico de seis meses e um ano de vida. Era 1981. Ele sobreviveu quase 15 anos, até 8 de janeiro de 1996.
Os "segredos de família"
O segundo filme, François Mitterrand à bout portant – 1993-1996, é um excelente documentário que reconstitui os quatro últimos anos da vida do presidente, o suicídio do ex-primeiro-ministro Pierre Bérégovoy e a obsessão do presidente em resistir à doença para terminar seu segundo mandato.
O terceiro programa da noite dos 30 anos da vitória socialista, François Mitterrand-Secrets de famille, foi o único que tratou da vida pessoal de Mitterrand. O programa dedicou uma longa reportagem à vida dupla que o presidente levou por mais de vinte anos dividindo seu tempo entre a mulher Danielle e a amante Anne Pingeot. Da relação com Anne, o presidente teve uma filha, Mazarine, revelada por Paris Match pouco antes de sua morte.
As cenas do enterro com as duas famílias reunidas foram vistas no mundo inteiro e impressionam pela dignidade das duas mulheres que partilharam a vida do grande político. Os filhos contaram como a família viveu a duplicidade do presidente, reconstituíram as dificuldades da organização da visita de Danielle após a morte do marido, que passou os últimos meses de vida pós-Eliseu com Anne e sua filha, num apartamento funcional do governo francês.
Depois de revelados por Paris Match, os "segredos de família" foram tema de livros e reportagens, mas nunca tinham sido contados em imagens pelos próprios filhos do presidente. Mazarine e seus irmãos, Jean-Christophe e Gilbert, relatam como viveram ao lado desse pai que fez tudo para manter em segredo a existência da outra família. Discretas, Danielle e Anne Pingeot só aparecem em fotos e imagens de arquivo.
Impopularidade de Sarkozy
Ao contrário do que se passaria numa sociedade puritana, como a americana, a vida dupla de Mitterrand não arranhou em nada sua imagem para a posteridade. No país de Voltaire, os jornalistas sempre respeitaram a vida privada dos políticos e os jornais não tratam das histórias de alcova de seus dirigentes, mesmo se le tout Paris conhecesse as histórias galantes de Giscard d’Estaing, de Mitterrand e de Chirac.
Mas isso foram outros tempos. Sarkozy chegou ao poder, começou a expor sua vida privada em conversas e em passeios ostensivamente públicos, iniciando a queda vertiginosa nas pesquisas. Mas este exibicionismo chocante foi apenas um dos motivos do atual fenômeno de impopularidade presidencial nunca vista.
Emmanuel Carrère - O romancista da realidade
*Publicado na Folha de São Paulo em 09-04-2011
Leneide Duarte-Plon, de Paris
O último livro do escritor, cineasta e roteirista francês Emmanuel Carrère, 54 anos, Outras vidas que não a minha (Alfaguara Brasil) foi um extraordinário sucesso de crítica e de vendas na França, em 2009. O tsunami que Carrère presenciou no Sri Lanka, em 2004, é um dos panos de fundo do livro, que ele não chama de romance. Os personagens principais são reais : dois juízes jovens, Etienne e Juliette, engajados na defesa de pessoas humildes superendividadas e atingidos por tragédias pessoais. O autor e narrador está presente na história mas não como personagem central como em Um romance russo.
Nessa entrevista exclusiva à Ilustrada, Carrère, que estará na Flip em julho, explica como criou seus últimos livros, entre o romance e o jornalismo :
« Há criação romanesca mas não na forma de imaginação, o que é contado nos meus livros é verídico. Tenho a impressão de utilizar todos os recursos do romance com um material que não é imaginário ».
Filho da escritora Hélène Carrère d’Encausse, descendente de nobres russos e secretária perpétua da Academia Francesa de Letras, o escritor acha que é um privilégio poder fazer três tipos de trabalho diferentes mas pensa que é como escritor que se expressa melhor. No outono europeu, Emmanuel Carrère lança seu novo livro, Limonov (Editora P.O.L.).
Em julho, Carrère fará sua terceira viagem ao Brasil. Além dele, a França será representada por Claude Lanzmann e Michel Houellebecq, ganhador do prêmio Goncourt de 2010 por seu livro O mapa e o território (La carte et le territoire, Ed.Flammarion). Além de Outas vidas que não a minha, outros livros de Emmanuel Carrère já foram publicados no Brasil : Férias na neve (Rocco, 1998), O bigode (Rocco, 2002), adaptado para o cinema pelo próprio Carrère, O adversário (Record, 2007) e Um romance russo (Alfaguara, 2008).
Você vai ao Brasil em julho para a FLIP, um encontro anual de autores e do público em Paraty. Será sua terceira ida ao país. O que você espera desse contato com o público brasileiro?
Emmanuel Carrère : Não sei qual é o interesse do público brasileiro pelo que escrevo. Não tenho ideia de como meus livros são recebidos no Brasil. Vou descobrir.
Michel Houellebecq também irá a Paraty. Você disse que fica « impressionado por Houellebecq, pela visão que ele tem do mundo, do momento de civilização que vivemos ». Segundo você, Houellebecq é um « rock star ». Por que ele é interessante ?
Emmanuel Carrère : Ele é realmente um grande romancista, um dos maiores romancistas atuais. Tem uma grande capacidade de observação, um enorme talento romanesco que é também o talento de fazer com que as pessoas queiram ler, que as pessoas queiram virar a página, com uma verdadeira reflexão sobre o mundo atual. Continuo a achar que ele é um escritor extraordinário.
Mesmo sendo um personagem bizarro…
Emmanuel Carrère : Mesmo assim. Verdade que ele é um personagem singular, interessante…
Por que você escreve romances ?
Emmanuel Carrère : Não escrevo romances. Os livros que faço não são romances há muitos anos. Escrevi romances em outro tempo, o último romance que escrevi foi em 1995. Os livros que escrevo atualmente não são romances, são muito romanescos, são escritos de forma romanesca mas uma parte da definição de um romance é que seja uma história inventada.
E como você os define, como auto-ficção?
Emmanuel Carrère : Ah, não, isso eles não são. Não defino, são livros.
Seriam uma mistura de reportagem e de romance ? Existe neles ainda um tanto de imaginação, de criação romanesca…
Emmanuel Carrère : Há criação romanesca mas não na forma de imaginação, o que é contado nos meus livros é verídico. De fato, nas regras da reportagem ou do jornalismo tem-se um contrato com o leitor que assegura que o que é narrado é verdadeiro. Por outro lado, a organização, a forma da narrativa é absolutamente romanesca. Tenho a impressão de utilizar todos os recursos do romance com um material que não é imaginário
Você estava escrevendo um novo romance sobre a Rússia, sobre o escritor russo Eduardo Limonov. Nesse livro, é a história recente da Rússia que lhe interessa?
Emmanuel Carrère : Acabo de terminar esse livro, que sai no outono europeu. Chama-se Limonov. É um livro sobre o fim do comunismo e o pós-comunismo. Limonov está com quase 70 anos, sua história vai da Batalha de Stalingrado até os dias de hoje.
É uma biografia ?
Emmanuel Carrère : Eu não usaria essa palavra porque não se assemelha ao que se vende normalmente com esse nome de biografia.
Mas também não é um romance…
Emmanuel Carrère: Não, tudo é verdade, tomei algumas liberdades de construção, mas é verídico.
Por que você escolheu Eduardo Limonov como personagem central de seu novo livro ? O que o atraiu nesse personagem ?
Emmanuel Carrère : Ele é ao mesmo tempo um aventureiro e alguém cuja vida me permite contar 50 anos de história de maneira muito, como dizer… É mais ou menos como se ele estivesse sempre lá onde coisas estranhas aconteciam na história contemporânea. Desse ponto de vista, acho que ele é um bom heroi romanesco.
Ele viveu sempre na Rússia ?
Emmanuel Carrère : Não, ele estava na Rússia mas uma parte do livro se passa nos Estados Unidos e na França. Limonov viveu 20 anos no Ocidente.
Você foi fazer entrevistas come ele ?
Emmanuel Carrère : Eu o encontrei, mas não fiz entrevistas.
O livro é uma espécie de biografia autorizada ?
Emmanuel Carrère : Não, acho que ele não vai gostar. Penso que em geral as pessoas não gostam quando alguém conta suas vidas. É uma regra geral. Eu tenho uma interpretação de sua vida e suas atividades com a qual ele não vai estar de acordo. Não é uma biografia autorizada de forma alguma. Na realidade, não é uma biografia, apenas conta sua vida.
A biografia é sempre limitada…
Emmanuel Carrère : O livro sobre Limonov é uma biografia no mesmo sentido que Outras vidas que não a minha é uma biografia dos dois juízes, Juliette e Etienne, no mesmo sentido que O adversário é uma biografia de Jean-Claude Romand. Isso não corresponde exatamente ao que se chama uma biografia. Mas ao mesmo tempo, literalmente pode-se dizer que é uma biografia porque é a narrativa da vida de uma pessoa, biografia é isso. Assim como penso que auto-ficção é uma palavra ruim, biografia não é uma palavra ruim.
Você é roteirista, escreve romances, ou livros, dirigiu um documentário e um filme de ficção. Qual a atividade mais importante em sua vida ?
Emmanuel Carrère : Escrever livros é a atividade na qual penso que me saio melhor. Acho que sou um escritor melhor que cineasta e é esta atividade de escritor que me dá mais satisfação. Mas é uma grande sorte poder escrever roteiros e fazer filmes. Escrever livros é uma atividade muito solitária, muito exigente que pode ser extremamente gratificante mas também muito angustiante. E nesse aspecto é muito bom poder parar e fazer outra coisa.
Você pensa continuar a exercer as três atividades ?
Emmanuel Carrère : Comecei a trabalhar para uma série de televisão para Canal Plus, uma história fantástica, sobrenatural, e talvez eu dirija alguns episódios. Comecei a escrever o roteiro com outros roteiristas. Ainda está em fase embrionária mas é muito excitante.
Você disse que Um romance russo é o livro do fim de sua análise. Da psicanálise você diz que ela salvou você, de certa maneira. Você também é leitor de Freud. Como você o lê ?
Emmanuel Carrère : Acho que a psicanálise contribuiu para me salvar. Gosto muito de Freud, é um escritor magnífico. Tenho uma grande admiração por ele e por seu estilo, apesar de não poder lê-lo em alemão.
A psicanálise está sendo muito atacada hoje sobretudo na França, pátria de Lacan, pelas neuro-ciências…
Emmanuel Carrère : No plano teórico sou incapaz de tomar posição nesse debate mas acho que sou um usuário satisfeito da psicanálise. Pessoalmente, tenho uma gratidão em relação a ela…
Em relação a Freud então…
Emmanuel Carrère : Não, em relação à psicanálise e à prática da psicanálise, não falo da teoria…
Mas foi Freud quem a criou…
Emmanuel Carrère : Sim, mas ela é algo que se faz, é uma prática.
« Outras vidas que não a minha » foi um grande sucesso de crítica e de vendas na França. O livro é mobilizador, as pessoas se emocionam. Você diz que o livro não é auto-ficção porque ele é 100% verdadeiro, nele a parte de ficção é reduzida a zero.
Emmanuel Carrère : E além disso ele não é tão autobiográfico. Um romance russo é um livro no qual eu era o narrador e o personagem principal, enquanto Outras vidas que não a minha não sou o centro do livro.
Um romance russo , no qual você é o centro do livro, é um livro de auto-ficção ? Existe o que se chama na França de auto-ficção ?
Emmanuel Carrère : Essa palavra me incomoda, não acho que ela é feliz, mas ao mesmo tempo me interesso pelo que se chama auto-ficção. No fundo, acho que se apresenta isso como uma moda literária…
Seria uma forma de narcisismo dos autores, uma forma de falar deles mesmos em seus romances ?
Emmanuel Carrère : O que me espanta é que se apresente como uma moda algo que é mais antigo que o romance. As pessoas sempre foram levadas a escrever suas vidas. O romance é um gênero muito mais especializado, muito mais recente, como a tragédia em cinco atos, como o soneto, uma coisa particular. Enquanto que escrever sua vida ou escrever sobre fatos dos quais fomos testemunhas ou sobre o que pensamos é a mais antiga pulsão que nos leva a escrever. Santo Agostinho, Rousseau fizeram isso. Acho estranho chamar de auto-ficção o que é parte da literatura autobiográfica. Gosto da literatura autobiográfica de maneira geral.
Você diz apreciar a frase de Hemingway que dizia : « Conheço tantas palavras complicadas quanto os outros mas simplesmente me dou a um trabalho enorme para não utilizá-las. » Essa é sua preocupação como escritor. Por quê ?
Emmanuel Carrère : Engraçado é que há poucos dias eu dei uma entrevista para uma revista americana. E a jornalista me dizia que ela fica impressionada pela extensão do vocabulário usado nos meus livros. Isso contradiz um pouco o que penso, faço um grande esforço para utilizar um vocabulário simples mas isso não me impede de utilizar um vocabulário abundante.
Qual o romance que você gostaria de ter escrito ?
Emmanuel Carrère : Não sei. Não tenho necessariamente vontade de ter escrito livros de que gostei muito. Estou lendo com muita admiração « 2666 » de Roberto Bolaño, mas não gostaria de tê-lo escrito de forma nenhuma. Penso que deve ter sido uma experiência muito difícil escrever esse livro. Mas o leio com grande admiração.
O jornalista e a teoria do complô
Charles Enderlin acusado de não ser um “bom judeu”
Por Leneide Duarte-Plon, de Paris
* Publicado no Observatório da Imprensa em 26/4/2011
O conflito Israel-Palestina, que já dura mais de seis décadas, fez mais uma vítima colateral. A vítima é o jornalista Charles Enderlin, correspondente do canal France 2 em Jerusalém, onde vive há quarenta anos. O jornalista não foi atingido por qualquer bala perdida, mas há dez anos luta com a serenidade dos justos para provar que é falsa a versão difundida por grupos de sionistas franceses e americanos de que uma de suas reportagens era uma mise-en-scène.
O caso, que ficou conhecido como o affaire Al-Dura, uniu a ultra-direita israelense, alguns jornalistas franceses, alguns intelectuais pró-israelenses e grande parte da comunidade judaica francesa, além do poderoso Conseil Représentatif des Institutions Juives de France (Crif).
Esses grupos, liderados por dois ou três personagens adeptos da teoria do complô, tentam há dez anos matar profissionalmente um dos maiores jornalistas franceses, autor de notáveis livros sobre o Oriente Médio e um dos mais equilibrados analistas do conflito que opõe israelenses e palestinos. Et pour cause.
Há poucos meses, Charles Enderlin disse "basta" e resolveu tornar pública a história que muitos conheciam sem, contudo, saber de todos os detalhes. Cansado de ver seus filhos e sua família estigmatizados, ele escreveu um livro extraordinário chamado Un enfant est mort (Uma criança morreu), no qual, a partir do título, reafirma a veracidade da morte do menino palestino Mohamed Al-Dura, de 12 anos.
Nesse formidável depoimento pessoal, ele desmonta peça por peça o edifício de falsas verdades construídas pacientemente e divulgadas durante dez anos em diferentes mídias, sobretudo na França e nos Estados Unidos. Enderlin informa no livro que um de seus inquisidores é a Liga de Defesa Judaica, "organização criada nos Estados Unidos pelo rabino racista Meir Kahane e que é proibida em Israel".
A batalha dos detratores
No dia 30 de setembro de 2000, num lugar chamado Netzarim, em Gaza, durante a segunda Intifada, Mohamed Al-Dura foi morto por tiros vindos dos soldados israelenses, enquanto seu pai, Jamal, tentava protegê-lo das balas. As cenas foram ao ar no jornal das 20h do canal France 2, narradas por Charles Enderlin, que estava na Cisjordânia cobrindo outros choques entre palestinos e soldados israelenses. Na véspera, os soldados israelenses tinham atirado em civis palestinos na Esplanada das Mesquitas, em Jerusalém e os conflitos explodiram na Cisjordânia e em Gaza.
As imagens de Netzarim, em Gaza, foram feitas pelo cinegrafista que trabalha com Enderlin, Talal Abou Rahmeh. Ora, para os detratores de Enderlin, sendo Talal palestino, ele é logicamente um "agente da OLP", suspeito de ter montado um filme para sujar a imagem do exército israelense. Mas, como Charles Enderlin frisa no livro, de texto elegante como seu autor, há anos Talal tem permissão de trabalhar em Israel e nos territórios palestinos e os serviços secretos israelenses nunca tiveram qualquer suspeita em relação a ele. Nem antes nem depois da reportagem em que se vê a morte de Mohamed.
Em torno do caso Al-Dura foram feitos documentários, reportagens e muitas entrevistas para provar que eram falsas as imagens da reportagem de Enderlin. A batalha dos detratores do jornalista – que acusam France 2 e Enderlin de terem divulgado uma montagem feita pelos palestinos – começou nas comunidades judaicas na França e nos Estados Unidos. "Como se fosse preciso limpar simbolicamente o exército israelense da suspeita de ter atirado e assassinado deliberadamente uma criança, como se fosse preciso conservar a imagem de pureza imortalizada por Claude Lanzmann no seu filme Tsahal", escreveu o jornalista Pierre Haski, que também foi correspondente em Israel, na revista online Rue 89.
A dificuldade de ser um "bom judeu"
Dois franceses, Philippe Karsenty e Luc Rosenzweig, sustentados pelo establishment pró-Israel na França, tentam provar há dez anos que a reportagem de Enderlin é uma montagem e que não somente o pai não morreu (o que é verdade), mas o filho também não morreu e vive ainda em Gaza. O menino foi enterrado em Gaza, as fotos do cadáver estão reproduzidas no livro, o pai foi tratado em um hospital da Jordânia e visitado pelo rei, mas os detratores sustentam que os ferimentos do pai de Mohamed são antigos, apesar dos relatórios de médicos que o trataram em Gaza e na Jordânia.
Por outro lado, o exército de Israel nunca levou a questão à Justiça, provavelmente por não ter mais dúvidas sobre a proveniência dos tiros que mataram o menino. Karsenty, no entanto, passou a percorrer os Estados Unidos fazendo conferências pagas nas universidades americanas sobre "a manipulação da mídia no affaire Al-Dura". Há, ainda, quem tente provar que o menino morreu por balas palestinas.
Nunca, porém, os defensores dessas teorias apresentaram qualquer prova convincente. O governo israelense não retirou a carteira de jornalista de Charles Enderlin, como queriam alguns, mas também não tentou apurar a fundo a questão, limitando-se a deixar que a teoria do complô circule pelo mundo.
"Para ser um `bom judeu´ é preciso aceitar a tese da reportagem encenada no caso Al-Dura?", pergunta Enderlin no seu livro, ao comentar como é viver há dez anos sob suspeita de não ser um "bom judeu". "Acho que as organizações judaicas cometem um enorme erro ao apoiarem essa campanha", diz o jornalista.
História resumida
Mohamed Al-Dura tornou-se o símbolo da violência israelense contra os palestinos. Para alguns, sua morte, filmada ao vivo, parece uma realidade difícil demais para ser admitida, mesmo quando se sabe que na guerra de 2088-2009, em Gaza, o exército israelense matou várias dezenas de crianças como Mohamed. Mas essa morte era diferente. Ela se deu diante de uma câmera e chocou de tal forma que a foto de Mohamed estava no vídeo da execução do jornalista americano Daniel Pearl por grupos islâmicos no Paquistão um ano depois.
Quanto a Charles Enderlin, ele teve sempre o total apoio do canal France 2 nos tribunais (ele processou Karsenty por difamação). Em 2008, por iniciativa da revista Le Nouvel Observateur, uma petição em sua defesa recebeu dezenas de milhares de assinaturas.
Na internet, um vídeo chamado L’affaire Enderlin resume a história da reportagem que gerou o affaire Al-Dura. Nele, o jornalista Charles Enderlin conta os efeitos sobre sua vida pessoal da campanha contra ele, o que o levou a processar Philippe Karsenty. Nesse vídeo, pode-se avaliar a qualidade dos detratores de Charles Enderlin.