segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Paris lembra Lacan



O psicanalista Jacques Lacan morreu em Paris há 30 anos. Os psicanalistas lacanianos, a imprensa francesa e a intelligentsia da França comemoram a data com a publicação de reportagens, entrevistas e livros em torno da vida e da obra de Lacan. Debates, conferências e seminários estão programados para este ano e para o próximo. Há também muito desentendimento entre os que disputam o legado de Lacan, como Jacques-Alain Miller, o genro e editor dos seminários (casado com a filha de Lacan, Judith Miller) e Elisabeth Roudinesco.
Um amigo psicanalista me contou uma história que se passou com  ele. No dia da morte de Lacan, 9 de setembro de 1981, morreu o pai desse psicanalista. Abatido, triste, Patrick Faugeras encontra uma amiga também psicanalista. Ela já estava a par da morte de Lacan, ele não.  A amiga lhe pergunta como vai. Patrick lhe diz : « Meu pai morreu ». Ela lhe responde num tom descontraído, diz que ele vai superar logo, como todo mundo. Ele acha a resposta um tanto estranha e se despede sem entender. Mais tarde, alguém lhe telefona para anunciar a morte de Lacan e Patrick entende a reação bizarra da amiga.
Entre os lacanianos mais ligados ao mestre, houve quem telefonasse a amigos para dizer : « Os inimigos de Lacan estão espalhando o boato de sua morte ».
Como aceitar a morte de um mito ?
Depois de Freud, ninguém deu um passo tão grande na compreensão do inconsciente. Lacan promoveu a volta aos textos de Freud e renovou a psicanálise à luz do estruturalismo e da linguística. O lacanismo está muito vivo na França, no Brasil e na Argentina, apesar das divisões e rivalidades entre lacanianos.
Mas isso é uma outra história.
Viva a cultura
Dilma foi à Bienal.
Uma presidente, que segundo leio no Le Monde, devora Proust, é um orgulho para mim. Ela me deu orgulho de ser brasileira quando ouvi  seu discurso de abertura na Assembleia Geral da ONU, (íntegra na internet). Além de tudo, ela tem uma biografia de resistência à ditadura que respeito. Chapeau.
Enquanto isso, os jornalistas franceses zombam de Sarkozy, conhecido por sua incultura. Parece que ele faz questão de ser visto e fotografado lendo « Guerra e Paz », de Tolstoi.  Alguém sugere : « Por que ele não lê « O idiota », de Dostoievski ? »
Por falar em idiota, li um pequeno perfil do escritor brasileiro Paulo Coelho na revista do Le Monde. Já faz um tempo. Ele dizia em certo momento que pensava em Pedro, o discípulo de Cristo que foi escolhido por Jesus para construir sua igreja « apesar de ter negado o mestre por três vezes ». O acadêmico (que Academia essa, que acolhe tal escritor !) conclui : « Sua fraqueza não impediu o amor de Deus »
Ora, Paulo Coelho deveria voltar a ler os Evangelhos (se é que leu algum dia). Jesus escolhe Pedro e faz a famosa declaração « Pedro, tu és pedra, e sobre esta pedra construirei minha igreja », muito antes de ser preso e julgado. E Pedro só negou seu Mestre quando este já estava preso e o discípulo foi apontado como seu seguidor por uma mulher que o reconheceu.
O que esperar de Paulo Coelho ? Rigor, brilho, inteligência ? Seria pedir muito.
Sétima arte
Sem dúvida foi o melhor filme francês que vi nos últimos meses : L’Apollonide, souvenirs de la maison close, de Bertrand Bonello. Um filme sublime. Belo e inteligente. Aclamado de A a Z pela exigente crítica francesa.
Meu ginecologista (que não é ator), um médico conceituado  com uma clientela de « bourgeoises parisiennes », faz o papel de um ginecologista que vai ao bordel examinar as prostitutas que trabalham no estabelecimento de luxo do filme. A descoberta me fez rir no cinema, ao reconhecer sua imagem e sua voz.
Na próxima vez que for vê-lo, sério, circunspecto, vou dizer que o vi no filme. Ele vai fazer um pequeno sorriso discreto, se bem o conheço. Talvez não diga nada. Vou lhe dizer que ele está irrepreensível no papel do ginecologista…
Werner Herzog fez um belo filme sobre a Gruta de Chauvet, descoberta em 1994, na região da Ardèche. O filme se chama La grotte des rêves perdus,  é  em 3D e vale como uma viagem ao passado, ao cotidiano de homens e animais desaparecidos há 30 mil anos. Esses ancestrais do homem moderno deixaram na gruta pinturas fabulosas, dignas de Picasso, Chagall e outros grandes artistas. Imperdível.
Et maintenant, on va où ? é o segundo filme da libanesa Nadine Labaki que realizou o delicioso Caramel, que não sei se passou no Brasil. A cinematografia que não repousa sobre o star system é a que mais me interessa nos últimos anos, seja iraniana, libanesa, coreana ou ainda tailandesa. Importante é o diretor e o que ele tem a dizer e não o sistema que fabrica estrelas, seja em Hollywood ou alhures.
Você jà ouviu falar de Claude Baz Moussawbaa, Layla Hakim, Yvonne Maalouf ?Eu também nunca tinha ouvido falar delas, nem de nenhum dos atores formidáveis que vivem os personagens dessa fábula sobre a tolerância, que retrata a dificuldade de convivência pacífica entre comunidades religiosas diferentes (muçulmanos e cristãos) numa aldeia libanesa. Um deleite. Belo, leve, eficaz.

A volta de DSK   
Dominique Strauss-Kahn bateu recordes de audiência no canal TF1, domingo, 18 de setembro, numa paródia mal disfarçada do presidente Clinton ao se dirigir à nação depois do affaire Lewinski. Um jornal francês observou que DSK mostrou, em sua fala bem ensaiada, que os 24 minutos de televisão eram tão « impróprios » quanto os 9 minutos de sua relação furtiva mas « sem violência, sem força, sem agressão nem qualquer outro ato delituoso » com Naffisatou Diallo. Abaixo, a íntegra do texto que fiz para o Observatório da imprensa :

 Sexta-feira, 23 de Setembro de 2011   - Ano 16 - nº 660 - 20/09/2011



DOMINIQUE STRAUSS-KAHN
Exercício de mea-culpa sem respostas concretas

Por Leneide Duarte-Plon em 21/09/2011 na edição 660
Na França, o telejornal de domingo (18/9) da TF1 bateu todos os recordes de audiência e vai ficar para a história. A apresentadora Claire Chazal entrevistou ao vivo o ex-presidente do FMI, Dominique Strauss-Kahn, na primeira vez em que ele falou depois de seu retorno à França. O “affaire DSK” mobiliza a mídia francesa há quatro meses e causou um substancial aumento das vendas de jornais e revistas desde o dia 14/5.
Todas as pessoas que se interessam pela atualidade política seguiram atentamente a entrevista de 25 minutos, um recorde de tempo num jornal televisivo. Mas não somente os que se interessam por política. O caso DSK mistura sexo, política, poder e dinheiro: elementos que despertam interesse e fazem o sucesso de diversas séries americanas. Quatorze milhões de espectadores franceses queriam saber o que se passou na suíte 2806 no dia 14/5. Logo depois da entrevista, diversos canais já comentavam as declarações do ex-candidato favorito à indicação do Partido Socialista na eleição presidencial de 2012.
O prestigioso “journal de référence” francês, Le Monde, fez um exercício meticuloso de jornalismo. Comparou e analisou com o texto original cada frase retirada do relatório de Cyrus Vance que DSK usou a seu favor. A conclusão do jornal é que em diversos momentos ele torceu as palavras do texto do relatório para usá-lo em sua defesa.
Le Mondediz que o resumo que fez DSK do relatório é seletivo e distorcido. Um exemplo: “Vance não limpa DSK de culpa. Ele não diz que ‘Naffisatou Diallo mentiu sobre tudo’, como afirmou o entrevistado, mas que ela deu versões contraditórias do que se passou depois de 12h26, hora em que ela saiu da suíte de DSK. Cyrus Vance não conclui que não houve agressão sexual mas que ‘as dúvidas sérias sobre a credibilidade da suposta vítima’ não permitiam que se pudesse apoiar no seu testemunho”.
Espetáculo controlado
Jornalismo é um métier que exige tempo, método e rigor. Mais uma vez, o Le Monde fez um trabalho difícil, meticuloso e sério e pôde demonstrar, com o apoio do texto usado pelo próprio entrevistado, como sua interpretação lançada em algumas frases era, no mínimo, inexata e tendenciosa.
O esperado mea-culpa revelou-se um espetáculo de comunicação milimetricamente controlado pela empresa que cuida da comunicação de DSK (Euro RSCG). Na opinião do jornalista Nicolas Domenach, do Canal Plus, “o mea-culpa de DSK foi feito num show muito bem preparado. Foi como se víssemos o número de um ator que ensaiou bem seu texto”. O Grand Journal do Canal Plus chegou a mostrar com imagens como a fala inicial de DSK foi calcada na fala de Clinton em que o então presidente reconhece seu erro e pede desculpas à sua mulher. DSK usou a mesma ordem de frases, as mesmas palavras.
Na segunda-feira, 19/9, outros jornalistas observavam que Strauss-Kahn não pediu desculpas aos franceses pelo seu “erro, sua falta moral”, como ele qualificou o que se passou na suíte do Sofitel de New York. Limitou-se a admitir que faltou “ao encontro marcado com os franceses”.
Analisando a fala de DSK, o jornalista Jean-Michel Aphatie, do Grand Journal, assinala algo curioso: o acusado de estupro pela camareira Nafissatou Diallo não disse o que se passou naquele dia em Nova York, mas “o que não se passou”. De fato, DSK frisou que não houve violência, não foi uma relação “tarifada” e não houve agressão.
Depois de ouvir a entrevista, Kenneth Thompson, o advogado da camareira, comentou: “Mas como ele pode justificar uma relação de nove minutos entre duas pessoas que nunca se viram, sem ser com constrangimento físico?”
O antigo líder estudantil de 1968 e atual deputado no Parlamento europeu Daniel Cohn-Bendit não se sentia muito à vontade para comentar o discurso por ser amigo do acusado. Mas, entrevistado ao vivo no dia seguinte, disse ter achado que “Dominique não encontrou as palavras, não parecia sincero”.
Desvalorizado
O jornal Libération fez sua manchete principal de capa com a foto de DSK sublinhando a confissão de uma “falta moral” e sua ausência de um encontro marcado com os franceses nas futuras eleições. O jornal enfatiza que o acusado não deixou escapar a oportunidade de alimentar a “absurda tese” de um complô ou uma armadilha contra ele. Vincent Giret, que assinou o editorial de Libération, viu nessa insinuação “uma falta de tato, ou pior, um passo em falso”. “Ele levanta essa suspeita sem a mínima prova para sustentar essa tese inverossímil”, diz Giret.
O editorialista de Libération, como muitos franceses, diz que a pretensa aula de economia que DSK quis dar na entrevista ao analisar o problema grego parecia anacrônica e déplacée. Hervé Favre, do jornal La Voix du Nord, vê “o futuro de Dominique Strauss-Kahn mais desvalorizado que um título da dívida grega”.
Em outro artigo assinado, os jornalistas de Libération Raphël Garrigos e Isabelle Roberts falam de uma entrevista feita com um script de uma superprodução mas que termina com “uma inútil análise da crise”.
Inútil porque ele não ocupa mais nenhum cargo de decisão, inútil porque sua palavra de economista ficou poluída pelo ruído de um terrível escândalo sexual ao qual sua imagem está indelevelmente associada.
A entrevista foi controlada pelos marketeiros de DSK em todos os detalhes, inclusive na escolha de Claire Chazal como entrevistadora. Ela é uma das melhores amigas de Anne Sinclair, mulher de DSK, que o apoiou em todos os momentos e é usada por ele como argumento de sua “inocência”. Obviamente, quando ele se diz inocente, está se referindo ao estupro e à violência de que é acusado, pois o ato sexual ficou provado pelos exames de DNA.
O diretor de redação da revista L’Express, que DSK tratou de “tabloide” durante sua entrevista, publicou imediatamente online uma carta-resposta. Nela, Christophe Barbier justifica a capa em que a revista expôs o problema de DSK com as mulheres. E diz que o relatório de Cyrus Vance que o ex-presidente do FMI mostrava para justificar sua auto-defesa cita a revista L’Express e essa matéria. O promotor basearia sua argumentação em informações de um “tabloide”?, pergunta Barbier. Além do mais, diz ele, sua revista foi a única a reproduzir integralmente o relatório de Cyrus Vance.
Quanto aos leitores de L’Express, 31% acharam a entrevista “surrealista”, pois pensam que ele não tinha que ir se explicar num jornal de televisão. Outros 32% acharam que foi uma jogada de marketing muito bem preparada. Somente 11% acharam que ele falou com dignidade.
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[Leneide Duarte-Plon, jornalista, de Paris]