A ideia tem o mérito da
originalidade: o jornalista italiano Fabrizio Gatti, da revista semanal “L’Espresso”
- que fez o trajeto do norte da África à
Europa em um precaríssimo barco lotado de clandestinos, com identidade falsa e
direito a naufrágio, para contar o calvário dos migrantes - propõe o Nobel da
Paz de 2014 para a Ilha de Lampedusa.
Um Nobel para uma ilha pode
parecer um tanto esdrúxulo mas Gatti explica : o prêmio seria atribuído aos
milhares de sobreviventes que procuram fugir de guerras e chegar à Europa em
embarcações precárias e superlotadas, pagando caríssimo a máfias que organizam
a viagem.
Gatti justifica a ideia do Nobel:
Lampedusa e seus 6 mil habitantes nunca fizeram diferença entre os moradores
com passaporte europeu e os milhares de clandestinos que se amontoam, fugindo
das guerras no norte da África e do Oriente Médio. Os habitantes são solidários
e procuram ajudar os que chegam sem nenhum direito, apenas com o sonho de conseguir asilo político e um
passaporte europeu.
“Já que o Nobel não pode ser
entregue aos que foram tragados pelo Mediterrâneo, proponho que seja atribuído
– em nome dos mortos e dos sobreviventes – à pequena comunidade de Lampedusa e
seus habitantes, que nunca deixaram de prestar socorro aos que caem no mar e se
dedicam à busca de corpos com determinação e solidariedade”.
O jornalista está lançando na França o livro em que
relata a terrível e extraordinária aventura de sua travessia como “migrante”
(um habitante de Lampedusa salvou-o do naufrágio e da morte).
Os habitantes da ilha são um
exemplo para os xenofóbicos de todos os partidos europeus de extrema-direita.
O eldorado europeu
Vergonha ! O papa Francisco não
encontrou outra palavra para qualificar o drama de Lampedusa. Mas todos sabemos
que não é rezando que os problemas da miséria africana e dos países em guerra
no Oriente Médio vão ser solucionados.
Naufrágios no Mediterrâneo de
embarcações vindas do terceiro mundo viraram uma escandalosa rotina. Em busca
de uma vida melhor, mais segura e mais digna, ele arriscam a vida com filhos e
mulheres, fugindo das guerras e da miséria. Uma vida regular num país europeu
significa para os migrantes triplicar a esperança de vida.
A União Europeia não pode acolher
toda a miséria do mundo, como a França de Mitterrand não podia, na célebre frase
do primeiro-ministro Michel Rocard. Mas os países europeus são em parte
responsáveis pela miséria do continente africano, onde vão explorar recursos
minerais fazendo alianças com governantes corruptos, que aplicam o
produto da pilhagem em palácios na Côte d’Azur ou na Avenue Foch. Ou então em
contas na Suíça ou em outros paraísos fiscais.
Piaf, don juan feminino
Em 10 de outubro de 1963, Edith
Piaf morreu em Paris, aos 47 anos, com aparência de anciã. A cantora, de saúde
fragilíssima, foi destruída fisicamente pelas sucessivas doenças, que a levaram
à dependência de morfina e álcool.
Naquele dia, Paris parou para
chorar a “môme” que cantava com as tripas e marcou a história da canção
francesa. Agora, nos 50 anos de sua
morte, Nova York fez um show, Berlim, uma exposição e a França, diversos
programas de televisão.
Algumas horas depois da morte da
cantora, o poeta, dramaturgo, designer e cineasta Jean Cocteau faleceu de um
ataque cardíaco... ao escrever um texto em homenagem à amiga. Eles se adoravam
e tinham em comum o gosto pelos rapazes.
A TV francesa mostrou um
excelente documentário sobre os amores de Piaf, uma verdadeira caçadora de
talentos. Yves Montand e Georges Moustaki, bem mais jovens que ela, foram
acolhidos de braços abertos no palco e na cama da cantora, que tinha faro e
vocação de Pigmalião. Mas houve muitos outros amores, antes e depois de Montand
e Moustaki, como o campeão de box Marcel Cerdan, até o encontro com o jovem
Theo Sarapo, com quem a cantora se casou um ano antes de sua morte.
Robert Belleret, que acaba de
lançar a biografia “Piaf, un mythe français”, diz que ela foi um Don Juan
feminino. Ele chegou a contabilizar 24 namorados e amantes oficiais. “Sua
motivação era seduzir. Ela era capaz de conquistar um homem com um simples
olhar. E eles, em geral, eram homens bonitos”.
Para lembrar Cocteau, a
Cinemateca Francesa fez uma exposição e uma retrospectiva de sua obra. Um
deleite para os cinéfilos, que têm o embarras
du choix entre todos os filmes de Bernardo Bertolucci (incluindo
documentários em torno de sua obra) e o ciclo e exposição Pasolini, que começa
esta semana.
O primeiro cinema do mundo
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O cinema Éden, o mais antigo do
mundo, acaba de ser restaurado e
reinaugurado em La Ciotat, pequena cidade balneária do sul da França, onde os
irmãos Lumière passavam férias de verão na propriedade da família, o Château
Lumière.
“L’arrivée d’un train en gare de
La Ciotat” foi o primeiro filme da história do cinema, feito por Auguste e
Louis Lumière. No Cinéma Éden, os irmãos fizeram a primeira projeção pública de seus filmes, em 21 de
março de 1899. Naquele dia do século XIX, ao verem na tela o trem se
aproximando, os espectadores espantados correram apressados para se proteger.
A atriz Nathalie Baye e o diretor
da Cinemateca francesa, Serge Toubiana foram à festa de reabertura da sala. No
programa da noite, trechos do filme “Grace de Monaco” (com Nicole Kidman), de
Olivier Dahan, cineasta nascido em La Ciotat, e a primeira exibição do novo
filme de Roman Polanski, “La Vénus à la fourrure”.
Mães centenárias :
Deneuve e Pierre Bergé
Pierre Bergé tem 83 anos. Ele
pensa que foram bem vividos. Empresário de sucesso, foi o criador da marca Yves
Saint Laurent, quando vivia com o costureiro. Antes, o colecionador e homem de
esquerda viveu com o pintor Bernard Buffet. Hoje, Bergé é, além de tudo, um dos
proprietários do jornal “Le Monde”, o jornal de referência da intelectualidade
francesa. Apesar de rico e bem-sucedido, Bergé diz que “o dinheiro corrompe”.
Ele abomina o meio de empresários e vive cercado de intelectuais e políticos de
esquerda. Foi um grande apoio da campanha de Ségolène Royal e de François
Hollande, de quem prevê a reeleição em 2017.
Apesar de octogenário, Bergé fala
de sua mãe no presente. Ela está bem viva e tem 106 anos. Ele faz parte de uma
geração que atinge a terceira idade com genitor ou genitora viva. A longevidade
dos franceses é conhecida, fica apenas atrás dos japoneses.
Catherine Deneuve é outra
personalidade que fala do privilégio de ter sua mãe, de 102 anos, gozando de
boa saúde. Ao lançar seu último filme, há poucas semanas, a atriz contou que
acabara de festejar o aniversário de sua mãe, de quem usa o nome de solteira.
Quando ganhou a eleição para
presidente em 2007, Nicolas Sarkozy foi o primeiro presidente francês eleito a
assumir a função com pai e mãe vivos. E
também foi o primeiro presidente francês a se divorciar e se casar no exercício
da função.
Mas isto é outra história.
Por que (não) me ufano de meu
país?
Li com grande
prazer o discurso de Luiz Ruffato na Feira de Frankfurt. Os brasileiros têm
dificuldade em fazer e ouvir críticas ao país. Sobretudo se feitas no
estrangeiro. Houve reações negativas, inclusive de Ziraldo, que não gosta de
criticar sua pátria amada, salve, salve.
Somos arcaicos.
Para alcançarmos o nível de educação, civilidade e cidadania (igualdade de
todos os cidadãos diante da lei, mobilidade urbana decente, segurança, acesso
universal a bens culturais, direito à saúde e à educação de qualidade, gratuita
e universal) de países como a França, a Inglaterra ou a Alemanha temos que
avançar muito. No mínimo, cem anos de
trabalho sério contra as desigualdades e a corrupção.
E muito espírito
crítico, pois sem criticar nosso atraso nos conformamos e mantemos o
status quo de desigualdades e violência em todos os níveis.
Delon x Le Pen
Como cientista político Alain Delon
não agrada nem ao filho. Aos 77 anos, o ator continua cada vez mais próximo da
extrema-direita. O intérprete de “Rocco e seus irmãos”, uma das obras-primas de
Visconti, perdeu mais uma vez a oportunidade de ficar calado. Há poucas semanas,
declarou em programa de TV que a homossexualidade era “contrária à natureza” e
condenou o casamento entre pessoas do
mesmo sexo. Alguns jornalistas lembraram dos rumores da tórrida paixão de
Visconti por Delon. Nunca se poderá provar se foi ou não foi consumada.
Há poucos dias, ele declarou a um
jornal suíço “entender e aprovar” o
crescimento do Front National, o partido de etrema-direita de Marine Le Pen,
fundado por Jean-Marie Le Pen, amigo de Delon.
Embaraçado, o ator Anthony Delon
julgou a declaração de seu pai lamentável. “Ele é um ator, deveria fazer filmes
e nos oferecer um fim de vida à la Clint Eastwood, em vez de tentar improvisar
uma carreira de cientista político”, escreveu o filho em um SMS enviado a um
jornalista do Canal +.
Pinochet e sua ditabranda
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Descobri o autor da frase. O inventor do jogo de palavras “ditadura e ditabranda” é Augusto Pinochet. Em um vídeo, que vi em Paris num colóquio sobre o Chile, ele diz :
« O Chile não é
uma ditadura mas uma ditabranda »
Os detalhes estão no texto abaixo, publicado em setembro, no
Observatório da Imprensa, em setembro.
40 anos
depois, Allende e Pinochet
Leneide Duarte-Plon, de Paris
O
governo de Salvador Allende entrou para a história no dia 11 de setembro de
1973, quando tropas militares bombardearam a sede do governo levando o
presidente socialista ao suicídio. Começava um novo ciclo da história do Chile.
Allende e o governo da Unidade Popular foram surpreendidos pelo golpe, que se
anunciava desde que o socialista foi eleito e assumiu o poder, em novembro de
1970. Aquele 11 de setembro inaugurou anos de chumbo no país que tinha a
reputação de contar com as Forças Armadas mais legalistas do continente.
Para
marcar os 40 anos do golpe militar a imprensa francesa publicou entrevistas,
artigos e mesmo cadernos especiais sobre o Chile. Numa das entrevistas do Le
Monde, o cineasta Patricio Guzman, autor da premiada trilogia A
batalha do Chile, filmado entre 1973 e 1979, obra monumental que cobre os
três anos da presidência de Salvador Allende, diz que o presidente socialista
nunca reivindicou a construção de uma “ditadura do proletariado”. O que
não impediu que a dupla Nixon-Kissinger decretasse, de Washington, a morte da
primeira experiência de um socialismo democrático na América Latina.
“A
batalha do Chile” foi considerado pela revista americana “Cineaste” como um dos
dez melhores filmes políticos do mundo. Guzman - que realizou ainda duas obras
em torno da história recente de seu país, o maravilhoso documentário sobre
Allende (Salvador Allende) e o premiadíssimo Nostalgia da luz -
viveu diretamente a repressão sangrenta do regime Pinochet: seu diretor de
fotografia Jorge Müller Silva foi sequestrado, em 1974, pela polícia da
ditadura. Müller Silva faz parte da lista de 3 mil pessoas “desaparecidas”.
Na
entrevista, Guzman diz que durante o governo Allende 70% das rádios e dos
jornais eram de oposição ao governo da Unidade Popular. Ele destaca que,
verdadeiro democrata, Allende nunca tentou impedir a livre circulação de nenhum
órgão de imprensa. O cineasta lamenta que o Chile ainda não tenha realizado uma
verdadeira reflexão nacional, um verdadeiro “trabalho de memória” sobre os anos
da ditadura, como fez a Argentina.
Nos
diversos balanços publicados na imprensa sobre o governo da Unidade
Popular, que fez sonhar milhares de exilados brasileiros instalados no Chile
depois do golpe no Brasil, a imprensa destacou o quanto a experiência chilena
inspirava a esquerda francesa, que naquele início dos anos 70 também buscava a
união entre socialistas e comunistas. A Union de la gauche tinha como
modelo o grande arco de alianças que levou Allende ao poder. François
Mitterrand, então secretário-geral do Partido Socialista Francês, foi a
Santiago ver de perto a experiência vitoriosa. Voltou entusiasmado. Mas apenas
uma década depois, em 1981, a aliança com os comunistas deu bons frutos
levando-o a conquistar o primeiro mandato de presidente.
Entre
as diversas manifestações realizadas na França para marcar os 40 anos do golpe
de Pinochet, o colóquio internacional “Chile, 11 de setembro de 1973: um evento
mundial”, discutiu durante três dias seguidos diversos aspectos do golpe, do governo
da Unidade Popular e do governo Pinochet. No colóquio, realizado em conjunto
pela prestigiosa Sciences Po (Institut d’Etudes Politiques de Paris),
Université Versailles-Saint-Quentin e pela Université Sorbonne
Nouvelle-Paris 3, pesquisadores e professores universitários vindos de diversas
partes do mundo abriram novas janelas na percepção da história recente do
Chile. O pré e o pós-golpe, com a implantação de uma política econômica liberal
que criou o que se passou a chamar de “modelo chileno” implantado pelos
“Chicago boys”, tudo foi minuciosamente debatido no colóquio que teve a
participação de um dos mais conhecidos e prestigiosos sociólogos franceses,
Alain Touraine.
Num
grande debate aberto a perguntas, Touraine destacou momentos e aspectos da história
chilena. Em uma frase sobre as desigualdades ele ressaltou: “Mas o
campeão de desigualdades sociais foi sempre o Brasil. Ele acaba de perder seu
título com as políticas sociais de Lula, mesmo que elas ainda sejam
insuficientes. Mas o Brasil continua sendo um país de corrupção no qual o
tecido social continua gangrenado por esse mal”.
A
Argentina foi apontada pelo sociólogo como um país “que pratica um auto-boicote
permanente”, fazendo o que pode para impedir seu próprio desenvolvimento.
Um
pesquisador de origem chilena constatou que, hoje, Pinochet é o chileno mais
conhecido fora do Chile. “Mais que Allende, mais que Neruda”, disse ele.
Ponderei com meus botões que Hitler deve ser o alemão mais conhecido fora da
Alemanha, mais que Goethe, mais que Bach. “It’s so, but what a pity it’s so”,
como disse, a propósito do mundo tal qual existe, o grande escritor inglês
Thomas Hardy.
No
colóquio, aprendi duas coisas edificantes sobre Pinochet: primeiramente, que
ele é o autor da frase sobre a “ditabranda”, proferida em 1983 para se referir
à sua própria ditadura. “Esta não é uma ditadura, é uma ditabranda” diz ele,
num vídeo que vimos em tela grande, numa das conferências do último dia.
Em
segundo lugar, aprendi que o ditador, que se apresentou sempre aos chilenos
como exemplo de austeridade e honestidade, detinha contas na Suíça em nome de
diversos parentes. O detalhe mais divertido é que essas contas foram
descobertas somente em 2003, como consequência do cerco às contas suíças feitas
pelo governo dos Estados Unidos para explicar o financiamento dos atentados do
11 de setembro de 2001.
Um
11 de setembro ajudou os historiadores e conhecerem melhor o outro. A
História acabou driblando o velho ditador.
Enrico Berlinguer e o eurocomunismo
No
ciclo Bernardo Bertolucci da Cinémathèque Française, vi o documentário L’addio
a Enrico Berlinguer, de Bertolucci e mais um punhado de cineastas. O italiano veio a Paris há duas semanas apresentar seu
último filme Toi et Moi, inaugurando a retrospectiva de sua obra.
O documentário sobre a morte de Berlinguer é genial. Não há narração, somente a voz de um entrevistador que faz perguntas a anônimos e a
figuras conhecidas da política e da intelectualidade italiana, depois do
anúncio da morte de « Enrico », amado, admirado e respeitado pelos
italianos como poucos o foram na Italia, segundo o filme. O criador do
eurocomunismo deixou um grande vazio na política italiana. Os comunistas italianos, que viam um novo caminho para um comunismo real de onde a democracia
não seria excluída, ficaram sem o grande líder.
É fabuloso ver Roma tomada por milhões de pessoas vindas de toda a Itália
gritando : « Viva o Partido Comunista de Gramsci, de Togliatti e de
Berlinguer », punhos no ar. Foi o maior enterro de uma personalidade
pública na Itália, segundo a apresentação do filme.
Gorbachev, Georges Marchais, Arafat e toda a classe política italiana
louvam a inteligência e o gênio politico de Berlinguer. O povo chora “o homem mais honesto” da
Itália, um politico exemplar. Um religioso, visivelmente não da Igreja católica
(parece um ortodoxo), diz que "ele era o homem que Diógenes
procurava".
No filme, pode-se ver Fellini e Antonioni na cerimônia do enterro.
Marcelo Mastroiani ressalta a importância de Berlinguer.
Hoje, a Itália tem o bufão Berlusconi. São
dois mundos, mais distantes que os dois pólos da Terra.
O filme é pouco conhecido, o que é uma pena. As novas gerações (mesmo os
jornalistas mais jovens) não sabem quem foi Enrico Berlinguer.