domingo, 3 de abril de 2011

Leonardo em Milão


Fui a Milão ver Leonardo. A grande cidade do norte da Itália tem inúmeras atrações mas para mim ela se resume a um quadro : a Ceia, pintura mural feita no refeitório do Convento da igreja Santa Maria delle Grazie, de 1494 a 1498. Acompanhei meu marido ao primeiro colóquio do grupo lacaniano ALI – Associazione Lacaniana Italiana di psicoanalisi - para ir admirar Leonardo da Vinci.

Foram momentos de alumbramento naquele último fim de semana de março, quando vi de perto uma das obras-primas do artista, pintada numa das paredes (8m x 4m) do refeitório do convento, por encomenda do duque Ludovico de Sforza.
Não é um afresco mas uma técnica seca, têmpera, que mistura gesso e pintura a óleo, sem a rapidez de execução que o afresco requer. A pintura é de uma beleza de tirar o fôlego.

Depois de passar por uma pequena exposição de fotos e textos sobre o quadro, o grupo tem 15 minutos para ver os dois murais do refeitório. No final das contas, o outro mural que está na parede em frente, uma impressionante Crucifixão pintada por Montorfano na mesma época, é admirado às pressas, praticamente quando já se esgotaram os 15 minutos da visita. Leonardo da Vinci monopoliza completamente a visita.

Quem vai a Milão tem que reservar hora para a visita, através da internet. Pequenos grupos de até 20 pessoas são guiados até o refeitório que tem temperatura e condições ambientais ideais. “No photos, no videos”, nos dizem logo na entrada.





Cartaz da exposição na antessala do mural (Fotos Leneide Duarte-Plon)


Um dos maiores gênios da história da humanidade, da Vinci foi pintor, inventor, engenheiro e arquiteto, um homem obcecado pela sede de saber. Freud dedicou a ele um pequeno livro, um romance psicanalítico, « Un souvenir d’enfance de Léonard de Vinci », no qual analisa a personalidade do gênio renascentista através das poucas informações biográficas que chegaram até nós, sobretudo pela leitura do livro de Merejkovski « Le roman de Léonard de Vinci ».

« Não se pode imaginar a Ceia sem levar em conta os estudos de ótica, de mecânica e de dinâmica que ocuparam Leonardo nos anos que precederam a realização do quadro », escreve o historiador de arte Pietro C. Marani. « A Ceia é um verdadeiro « manifesto » de suas concepções artísticas ». Em 2007, pesquisadores italianos levantaram a hipótese de existir uma partitura de música escondida no quadro. A disposição das mãos dos personagens e dos pães na mesa resultariam numa melodia.

Paris, no museu do Louvre, guarda o quadro mais famoso da história da pintura, o sorriso enigmático de uma mulher, Mona Lisa, La Joconde para os franceses, esposa de um rico florentino. A outra pintura mais estudada e reproduzida do gênio italiano, a Ceia, não veio parar em Paris por pouco. Napoleão Bonaparte ao ocupar a Lombardia pensou em transportar a pintura mural para a França. Antes dele, Luiz XII já tinha pensado em trazer aquela parede para Paris, ao conquistar Milão. Como todos sabem, as riquezas do Louvre e do British Museum, como de outros museus, vêm muitas vezes de pilhagens ancestrais. A Ceia de Leonardo escapou da travessia dos Alpes.

Na Ceia, os doze discípulos participam do último jantar de Cristo. Leonardo representa os doze perplexos ao ouvirem de Jesus o anúncio da futura traição por um deles. Judas tem à mão um discreto saco de moedas e cada um se interroga com gestos, olhos e expressões de espanto, quem será o traidor do mestre.

Essa Ceia é a mais conhecida de todas as que representam Jesus em sua última refeição com os discípulos. A força dos personagens, a concepção do quadro, a perspectiva que amplia a sala do refeitório em direção à luz que entra por três janelas pintadas no fundo, tudo no quadro é genial. Todos os desenhos preparatórios para a pintura mural da Ceia estão no Castelo de Windsor e são propriedade da Rainha Elizabeth. Coleção de peso.

A pintura foi restaurada diversas vezes pois a umidade do local a atingiu de maneira devastadora. A última restauração durou vinte anos e terminou em 1999. Mas de todas as agressões ao mural – o refeitório chegou a ser ocupado por tropas francesas de Napoleão e serviu de estábulo - a abertura de uma porta na parede, em 1652, hoje fechada, justamente onde se viam os pés de Cristo, parece a coisa mais absurda que podia ser feita. Inimaginável hoje.

Gil em Paris

Gilberto Gil cantou no Théâtre du Châtelet lotado, em Paris, sábado à noite, dia 2 de abril. Um show que esquentou a alma numa noite de primavera, com termômetros já acima da média da estação. Jacques Morelembaum, Bem Gil e Gilberto Gil formavam um trio mais que perfeito, os dois violões dialogando perfeitamente com o violoncelo.

Show mais que perfeito no repertório, no clima intimista, na musicalidade extraordinária do poeta e músico Gilberto Gil. Fechando com chave de ouro, Gil cantou « Viramundo » dele e do poeta Capinam. « Eu ainda viro esse mundo em festa, trabalho e pão ». Um manifesto político corajoso em plena ditadura (1967).

Boal vive

No dia 19 de março, apenas três dias depois do 80° aniversário de nascimento de Augusto Boal, Cecília comandou o espetáculo de instalação oficial do Instituto Boal, com a participação da Companhia do Latão, além da leitura por Fernanda Montenegro, dirigida por Walter Salles, de um fragmento do livro “Hamlet e o filho do padeiro”, biografia deliciosa de Boal. A apresentação foi de Celso Frateschi e o video de encerramento de Gringo Cardia. No programa, um texto de Michel Plon destaca a importância de Boal para quem « o teatro não estava simplesmente a serviço da ação política com os mais desfavorecidos mas era ação política em si mesmo : sua criação, sua fundação do Teatro do Oprimido se espalhou pelo mundo. (...) Fazer os mais pobres viver por si mesmos e fazê-los nascer, mais que renascer pelo teatro, era sua razão de ser".

Islã e islamofobia

Menos de 4% dos franceses dizem acreditar em Deus, diz uma pesquisa. Talvez por isso a maioria dos franceses defenda com tanto vigor a lei de 1905 que separou as igrejas do Estado, conhecida como « lei da laicidade ». Nenhuma nação europeia é tão ciosa de sua condição de Estado laico quanto a França. Nenhum signo religioso aparece visível em nenhum local do Estado, seja em repartições públicas, escolas, hospitais, no Parlamento ou no Senado.

Na semana que vem, por iniciativa do partido do presidente Sarkozy, um debate sobre a laicidade vai ser realizado em Paris. As motivações são eleitoreiras : o presidente quer reconquistar o eleitorado popular, xenófobo e islamófobo, que votou recentemente numa proporção assustadora (para a direita sarkozysta) no Front National, nas eleições cantonais.

O partido criado por Jean-Marie Le Pen é hoje presidido por sua filha, Marine Le Pen. E a « invasão » da França pela religião muçulmana é um dos temas caça-votos dos Le Pen. Marine chegou a comparar as preces dos muçulmanos no meio de certas ruas de Paris, diante de salas de prece pequenas demais e improvisadas em mesquitas, com a ocupação alemã de 1940. Como Sarkozy quer reconquistar os votos dos franceses de direita tentados pelas teses do FN, o partido do presidente resolveu criar um debate para « discutir a laicidade ». Mas antes de mudar de nome, o debate era em torno do lugar do Islã na França.

Sarkozy está brincando com fogo e os líderes das seis maiores religiões da França pensam que o debate é perigoso. Eles assinaram um artigo condenando essa estigmatização do Islã e a tentativa de buscar bodes expiatórios em um grupo dentro do território nacional.

Naturalização impossível

A psicóloga brasileira Isabel Lopato, que vive e trabalha em Paris, relata duas histórias que refletem a dificuldade de adquirir a nacionalidade francesa atualmente. “Tenho uma amiga russa, de 38 anos, psicóloga formada na Rússia com mestrado francês e atualmente no último ano de doutorado em Psicanálise. Ela vive na França há 8 anos, fala francês perfeitamente e sempre trabalhou como psicóloga. Trabalha atualmente para a Prefeitura de Gennevilliers (cidade da banlieue de Paris) em duas creches e na Association de Santé Mentale do 13e arrondissement de Paris. Os dois empregos são de meio expediente. Ela pediu a nacionalidade francesa em 2010. A resposta foi negativa com a justificação de que ela « não é suficientemente integrada à sociedade francesa pois não possui um emprego com tempo integral ». Detalhe : pela lei, um estrangeiro com uma « carte de séjour » de estudante tem uma autorização de trabalho de no máximo 20h por semana.

Outra amiga, libanesa de 28 anos, que vive na França há 9 anos, obteve todos os diplomas de terceiro grau em universidades francesas : graduação, mestrado e vai defender sua tese de doutorado em literatura contemporânea em setembro. Toda sua escolaridade de primeiro e segundo graus foi feita em escolas franco-libanesas em Beirute. Ela trabalha como agente administrativo em um liceu privado de Paris, em tempo parcial. Pediu a naturalização francesa em 2010. Resposta negativa. Justificativa: “Não ter, em princípio, vocação para se instalar na França pois está aqui para seus estudos », além disso, « não dispõe de renda suficiente para se sustentar de maneira duradoura ».

Na entrevista para naturalização não lhe perguntaram nada sobre suas intenções de querer ou não se instalar na França depois dos estudos. Sua autorização de trabalho, como estudante, não permite que trabalhe mais de 20 horas semanais. Tanto a russa quanto a libanesa preferem pensar numa política de « proteção de mercado de trabalho » para os franceses pois ambas exercem profissões ligadas às ciências humanas, onde a taxa de desemprego é muito é grande ».

Nenhum comentário: