quinta-feira, 28 de abril de 2011

De Farnese a Ratzinger, Roma e seus papas





Ir a Roma e não ver o papa. Sobretudo quando o papa em questão se chama Ratzinger e esmagou a teologia da libertação. Quando o vejo na televisão ou em fotos não posso deixar de pensar em Leonardo Boff e em outros teólogos que me são caros. Ratzinger não me interessa. Não vou vê-lo.

Mas difícil não passar pelo Vaticano. No fim de semana romano de três dias ensolarados e primaveris de abril, quando a Italia comemora os 150 anos da unificação, (foto) pude perceber de longe a Basílica de São Pedro, ao passar duas vezes de carro, com a artista Giovanna Picciau, perto da Via della Concilliazione.

Difícil ir Roma sem ver um papa. Enormes cartazes (foto de um pequeno poster) em toda a cidade anunciavam o lançamento naquele mesmo dia (sexta-feira, 15 de abril) em 500 cinemas do país do filme de Nanni Moretti, Habemus Papam, com Michel Piccoli no papel de um papa que renuncia ao cargo. Nos jornais, vários artigos comentavam a beatificação precoce de João Paulo II, dia 1° de maio. Fico sabendo que existe uma inflação de santos : 7.275, segundo os ingleses e 7.500, segundo a contabilidade francesa. No dia 16 de outubro, escolhido para celebrar João Paulo II, já há mais 23 santos. Um verdadeiro engarrafamento.

A ida a Roma começou com um agradável encontro no avião. Ao nosso lado, uma jovem francesa, Claire-Mélanie Sinnhuber, puxou assunto e ficamos sabendo que era uma compositora com bolsa de estudos na Villa Médicis, um dos dois mais belos patrimônios franceses em Roma, juntamente com o Palácio Farnese, sede da embaixada.

Foi para ver a exposição do Palácio Farnese que viajamos a Roma. A sede da representação francesa é o mais belo palácio romano, residência dos príncipes Farnese, de cuja família se originou o Papa Paulo III, representado por Rafael quando ainda era o cardeal Alexandre Farnese. Ticiano pintou o papa Farnese-Paulo III já idoso, ao lado de dois de seus netos. Sim, netos. Os papas do século XVI, como nos séculos anteriores, tinham filhos, netos, favoritas e nepotes (sobrinhos). Mal saídos da infância, os sobrinhos dos papas eram nomeados cardeais, o que gerou o termo nepotismo. Mas isso é outra história.

A exposição das obras de arte que fizeram parte da fabulosa coleção do palácio Farnese e estão hoje nos museus de Nápoles, do Louvre e outros museus italianos e europeus, terminou no fim de abril deste ano e durou apenas alguns meses. A embaixada francesa nunca antes abrira as portas ao público. O atual embaixador, Jean-Marc de La Sablière, é o responsável pela ideia da exposição que permitiu a visita da embaixada com a mostra de cento e quarenta das milhares de obras de arte extraordinárias que a família Farnese reuniu durante muitos anos.

A sala de trabalho do embaixador é tão grande e suntuosa que fiquei a pensar como o cargo deve ser disputadíssimo no Quai d’Orsay.

Michelangelo foi um dos artistas que participaram da construção do magnífico palácio cedido pela Itália à França em 1936, por 99 anos, num acordo similar ao que regula a ocupação da embaixada italiana em Paris. Datando também do século XVI, as maravilhosas pinturas murais dos irmãos Carrache lembram os afrescos da Capela Sistina.

Achille, o gato preto da Villa Médicis


A Villa Médicis é um pedaço da França em Roma.

Também chamada de Académie de France à Rome, a instituição foi criada por Luiz XIV mas foi Napoleão quem comprou o palácio situado na Villa Borghese.

Nesse lugar privilegiado, jovens franceses ou estrangeiros ganham, através de um concurso disputadíssimo, bolsas de estudo para compor música, como Claire-Mélanie, para trabalhar em projetos de escultura, de pintura e de literatura.

Em 1961, a artista plástico Balthus foi nomeado pelo ministro da cultura André Malraux diretor da Académie de France em Roma e a Villa Médicis deve a ele muito de seu aspecto atual, conforme nos ensinou Claire-Mélanie.

O domingo começou com a visita guiada por Claire-Mélanie que nos mostrou interiores da Villa, onde o visitante comum não entra. Da Villa Médicis tem-se uma das mais belas vistas de Roma, inclusive do Vaticano (foto).

Nos jardins, sob um sol primaveril Claire-Mélanie era acompanhada de perto por Achille, seu gato preto que a segue pelos jardins à la française e depois retorna sozinho ao charmoso apartamento de sua dona dentro da ala residencial da Villa.

No apartamento, a compositora dispõe de um enorme espaço onde reina soberano um piano de cauda.


Lei seca em Roma

O Campo dè Fiore, uma das praças mais agradáveis do centro histórico de Roma agora é vigiado pela polícia, como a Fonte de Trevi e outros locais turísticos, depois de 11 da noite, para reprimir infratores da lei que proíbe bebida alcoólica na rua. A estátua de Giordano Bruno serve de ponto de encontro de quem vai beber ou jantar pelas redondezas. De dia, a praça tem uma das feiras mais bonitas da cidade.

O barulho e a incivilidade dos bebedores do mundo inteiro fizeram com que as autoridades criassem a multa de 50 euros para quem for encontrado depois das 11 com uma garrafa de cerveja ou outro tipo de bebida alcoólica na mão, no centro histórico de Roma.

Os jornais justificam : Roma vive do turismo (são 12 milhões de turistas por ano) e não pode se dar ao luxo de desprezar a segurança dos visitantes nem de comprometer a paz dos moradores.

O melhor de WikiLeaks

Por Leneide Duarte Plon, de Paris em 5/4/2011(publicado no Observatório da Imprensa)

"A questão do equilíbrio entre o poder do Estado e o contrapoder exercido pelos cidadãos é legítima e dificilmente contestável quando se trata de Estados totalitários. Mas é menos evidente quando se trata de Estados democráticos."

A frase é do ex-embaixador francês no Senegal, o escritor Jean-Christophe Rufin, num artigo publicado originalmente no jornal Le Monde e reproduzido na publicação fora de série Le meilleur de WikiLeaks (O melhor de WikiLeaks), lançada na França pelas Edições Le Monde. Rufin se pergunta se é legítimo questionar e pôr em risco as instituições democráticas fruto da livre expressão da vontade popular, como o fez WikiLeaks, o polêmico site criado pelo australiano Julian Assange. "A partir de que patamar se passa da mobilização útil à ameaça contra o contrato social?" escreve o escritor.

A dificuldade de exercer plenamente o contrapoder em relação a Estados democráticos foi colocada em praça pública pelo site WikiLeaks no caso da divulgação de documentos secretos originários de embaixadas americanas referindo-se à política de países como a França, a Grã-Bretanha e o Brasil, entre muitos outros.

"Desejável e problemática"

Depois de várias semanas publicando e analisando o conteúdo de diversos dos famosos telegramas, o jornal Le Monde – um dos cinco órgãos de imprensa (com o espanhol El País, o inglês The Guardian, o americano The New York Times e o semanário alemão Der Spiegel) que publicaram e analisaram os documentos recebidos pelo fundador do site – deu a seus leitores acesso a uma seleção de alguns dos telegramas secretos com a publicação da revista Le meilleur de WikiLeaks, na qual, além de alguns dos mais polêmicos telegramas, o debate é enriquecido com análises e artigos contraditórios.

O embaixador dos Estados Unidos na França, Charles Rivkin, por exemplo, se mostra totalmente contrário à divulgação por entender que "a confidencialidade é um elemento intrínseco da diplomacia e a divulgação de documentos secretos coloca em risco a segurança de pessoas no mundo todo".

Em seu artigo, Timothy Garton Ash, historiador e professor de estudos europeus da Universidade de Oxford, escreveu que "a divulgação dos telegramas americanos é, ao mesmo tempo, desejável e problemática". Mas termina seu texto dizendo que aposta que "o governo americano deve se arrepender amargamente de sua decisão bizarra de confiar toda uma biblioteca diplomática recente a um sistema informático militar tão bem protegido que um jovem de 22 anos pode copiá-lo facilmente num CD de Lady Gaga".

Princípios fundadores da democracia

Aurélien Colson, professor de Ciências Políticas na França e respeitado pesquisador do segredo e da transparência na diplomacia, escreve, no artigo intitulado "Em direção de um novo equilíbrio entre segredo diplomático e direito de saber?", que ao divulgar os telegramas diplomáticos do Departamento de Estado destinados a permanecerem secretos, WikiLeaks poderia invocar os pais da diplomacia e da democracia americana. Ele afirma em seu artigo:

"Entre a independência de 1776 e a Constituição de 1787, George Washington, Benjamin Franklin, George Mason e outros republicanos estabeleceram como princípio a recusa do segredo nas negociações internacionais. Essa recusa traduzia uma rejeição americana dos hábitos da diplomacia europeia de então, que costumava fazer acordos obscuros e tratados secretos em nome de monarcas que não tinham que dar contas de seus atos."

Nesse caso, não é o criador de WikiLeaks quem deveria ser julgado, mas sim Barack Obama e Hillary Clinton, que com a diplomacia do segredo traem os princípios fundadores da democracia americana.

Re-descobrindo Burle Marx

A obra de Roberto Burle Marx merece até o fim de julho uma visita no Museu da Arquitetura e do Patrimônio, na Place du Trocadéro, em Paris. A exposição « Roberto Burle Marx, La permanence de l’instable » me fez descobrir que ele cantava para os amigos compositores clássicos em alemão. A retrospectiva é organizada por Lauro Cavalcanti e já foi apresentada em São Paulo.

Entre as muitas descobertas da exposição, vejo desenhos do artista que não conhecia e neles percebo esculturas de Celso Antônio (O Trabalhador, e Moça ajoelhada), que foi aluno de Antoine Bourdelle. Burle Marx foi aluno de Celso Antônio no Museu Nacional de Belas Artes, na década de 30.

Fotos de Leneide Duarte-Plon

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Verdi e Riccardo Muti : valores da Itália eterna


Emocionante. No meio da ópera « Nabucco », de Verdi, em Roma, como comemoração do 150° aniversário da unidade italiana, e diante de Silvio Berlusconi, o maestro Riccardo Muti faz um discurso político e o coro dá um bis emocionado do famoso canto dos escravos “Va pensiero”.

Vale a pena ler o texto em francês e ver o vídeo (em italiano) que nos enche de esperança de ver a Itália libertada do império da vulgaridade e corrupção.

Um momento em que a arte e a política se conjugam com a bênção de Verdi.

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Eis a íntegra da entrevista que fiz com o cineasta e escritor Claude Lanzmann, publicada na Folha de São Paulo em 24 de fevereiro deste ano.

O amante de Beauvoir

Leneide Duarte-Plon, de Paris

Durante sete anos (1952 -1959), o jornalista Claude Lanzmann, 85 anos, formou com a escritora e filósofa Simone de Beauvoir um casal apaixonado. Ela tinha 44 anos quando, já consagrada autora da bíblia do feminismo, O segundo sexo, conheceu o jovem de 27 anos, recém-admitido no clã de intelectuais que faziam a revista Les Temps Modernes, criada por Sartre e Beauvoir em 1945.

Com Sartre ela não tinha mais nem vida amorosa nem sexual, apesar de continuar a relação de total cumplicidade intelectual que mantiveram toda a vida, no trabalho e nas viagens, até a morte dele, em 1980. O trio Lanzmann-Sartre-Beauvoir também viajou e trabalhou unido, construindo uma sólida amizade.

Em suas memórias, Le lièvre de Patagonie (A lebre da Patagônia), publicadas em 2009 em Paris, que serão lançadas este ano no Brasil, Lanzmann, narra aventuras intelectuais e viagens que fez com o casal emblemático do existencialismo e faz um balanço de sua vida de judeu francês, envolvido ainda adolescente, no turbilhão da História, na Resistência ao ocupante alemão durante a guerra. Fala, ainda, de suas divergências de Sartre quanto a Israel e ao problema palestino, quando, por exemplo, depois do atentado em Munique Sartre afirmou: « Nessa guerra, a única arma de que dispõem os palestinos é o terrorismo. É uma arma terrível mas os oprimidos pobres não têm outra »,

Engajado na causa sionista, o jornalista teceu uma aliança incondicional e se tornou uma espécie de « propagandista de Israel », como diz no livro, « visceralmente ligado » ao país. Foi a partir de um documentário de encomenda Pourquoi Israël, de 1973, que Lanzmann iniciou a carreira de cineasta. Depois vieram Shoah, em 1985, sobre os campos de extermínio nazistas, a partir do relato de sobreviventes, e Tsahal, uma apologia do exército israelense. Shoah, que Simone de Beauvoir qualificou de « obra-prima », deu notoriedade mundial ao cineasta e introduziu definitivamente na língua francesa essa palavra (catástrofe em hebraico) que substituiu holocausto para designar a tentativa de extermínio dos judeus europeus pelos nazistas. O filme tem nove horas e levou 12 anos para ser feito.

De Sartre, « o maior escritor francês », Lanzmann destaca « a inteligência em ação, a generosidade enraizada na inteligência ». O livro do filósofo « Reflexões sobre a questão judaica » foi um marco na vida do rapaz judeu. No interfone de seu apartamento perto do cemitério de Montparnasse, a poucos metros do túmulo de Beauvoir e Sartre, no lugar do nome e sobrenome, apenas duas iniciais, C.L. Reflexo da juventude e da guerra, quando teve de usar documentos falsos para ocultar sua identidade judaica.

No livro, que será lançado este ano no Brasil, sobressai a ação dos dois intelectuais com quem ele conviveu de perto a partir de 1952 e a admiração por Sartre. De sua relação com Simone de Beauvoir, que ele chama de Castor, como Sartre e seus amigos mais próximos a tratavam (beaver, a pronúncia inglesa de seu nome designa o animal que, como ela, gosta de viver em bandos) Lanzmann gosta de dizer que foi o único homem com quem ela viveu sob o mesmo teto.

A vida de jornalista e cineasta permitiu a Lanzmann viajar por todos os continentes. Este ano ele é convidado da FLIP para falar do único livro que escreveu, lançado aos 83 anos. Ele dirige a revista Les Temps modernes desde 1986, ano da morte de Simone de Beauvoir.

A edição francesa do livro Le lièvre de Patagonie vendeu 250 mil exemplares em formato normal e em bolso e os direitos foram vendidos para a Inglaterra, Estados Unidos, Itália, Espanha, Alemanha, Polônia, Holanda, Israel e Brasil. Na Alemanha, Lanzmann recebeu o prêmio Welt-Literaturpreis pelo livro.

O senhor aceitou o convite para ir à Flip de Paraty este ano. Com que estado de espírito vai conhecer o Brasil ?

Claude Lanzmann : Já conheço o Rio, onde fui em 1985 ou 1986 para o festival de cinema organizado por um francês, Jean Gabriel Albicocco. Estava contente de ir ao Brasil. Todo mundo ficava hospedado no mesmo hotel e um acordo tinha sido feito com a favela vizinha para que não houvesse violência. O hotel era um prédio tipo torre, de Niemeyer, que é um criminoso. Ele ainda está vivo ? Tem cento e três anos ? É um criminoso, se eu tivesse poder de Justiça… acho que ele viveu demais. Um arranha-céu circular é totalmente idiota, um absurdo. Como em Paris o terminal 1 de Roissy-Charles De Gaulle.

Por que o senhor diz que Niemeyer é criminoso ?

Claude Lanzmann : Nesse arranha-céu onde o Festival se desenrolava, esperávamos 45 minutos de fila para descer ou subir. Esse é o crime do arquiteto. O círculo serve para quê ? As pessoas fazem os prisioneiros andarem em círculos nas prisões cortando assim qualquer projeto, qualquer futuro, é isso o círculo. Os arquitetos que constroem prédios circulares como aquele e o aeroporto de Roissy são idiotas. Não tenho nenhum respeito por Oscar Niemeyer. Ele construiu Brasília também ? Pior para Brasília…

O que o senhor tem contra ele ?

Claude Lanzmann : Não se constrói em círculo. Mas era a primeira vez que eu via o Atlântico Sul. Havia ondas enormes. Depois, dormi na praia e fui assaltado por um menino que correu e eu não consegui agarrar. No pouco tempo que passei no Rio vi mulheres terem os colares arrancados do pescoço. O Rio é uma cidade que me pareceu extremamente perigosa. O meu filme, Shoah foi legendado às pressas e teve problema de tradução, os brasileiros fazem tudo na última hora.

Shoah foi bem recebido ?

Claude Lanzmann : Foi. Depois encontrei dois malucos que diziam que queriam comprar meu filme mas passavam o tempo todo ao telefone, jogando com o preço do café.

Ele não foi lançado em circuito normal ?

Claude Lanzmann : Não, a comunidade judaica do Rio se apossou dele e não sei o que fizeram porque os judeus são imbecis, não são sérios.

Os brasileiros vão descobrir Shoah este ano com as entrevistas sobre seu livro ?

Claude Lanzmann : Talvez. Espero que sim. Talvez depois de 25 anos o Brasil tenha melhorado…

Seu livro foi saudado pela crítica como a obra de um grande escritor. Por que ter esperado tanto tempo para escrever suas memórias, mesmo se não é somente isso já que é também um retrato da vida intelectual francesa do pós-guerra ?

Claude Lanzmann : Porque não sou um homem apressado. Porque penso sempre que tenho tempo, não tenho a consciência da minha idade, não sei que idade tenho, estou fora do tempo. E esperei porque me dizia que um dia o faria. E também porque tinha um pouco de medo porque era um trabalho muito duro, longo, difícil e tinha que ser muito bem escrito para que fosse forte.

No livro, o senhor faz perfis de Sartre e de Simone de Beauvoir, de quem o senhor fala com grande admiração. A crítico do Le Monde escreveu : « A gente reconhece Simone de Beauvoir, iluminada pela ternura com a qual Lanzmann relembra suas manias e angústias ». Qual a importância que ela teve em sua vida ?

Claude Lanzmann : Ela teve uma enorme importância. Havia entre nós uma diferença de idade não tão grande, ela tinha 44 anos e eu 27. Já vi pior. Fui o único homem com quem ela teve uma vida conjugal, marital durante quase oito anos. Quando a conheci ela não tinha mais relações sexuais com Sartre. Muitas pessoas dizem que fazíamos sexo coletivo. Não é verdade.

Ela foi a mulher de sua vida ou uma mulher importante em sua vida ?

Claude Lanzmann : Não sei como dizer. Tive diversas mulheres na minha vida. Ela foi muito importante, havia uma grande confiança entre nós. Eu podia lhe dizer tudo e ela queria saber tudo. Ela me ensinou o mundo, ela me mostrou tudo o que ela conhecia e eu obriguei-a a pensar porque não sou um sujeito muito simples.

Qual a qualidade mais importante de Simone de Beauvoir, o que a resume ?

Claude Lanzmann : Oh la la. Primeiramente a alegria, ela era alegre, engraçada, não se mentia a ela mesma, a honestidade intelectual e a sede de conhecimento, de ver. Quando fazia uma viagem, ela queria ver tudo, as menores estradas, os menores monumentos. Ela me amava muito e mesmo depois da ruptura, que foi iniciativa minha. Ela ficou infeliz mas nós continuamos amigos. Nós nos víamos duas vezes por semana para a reunião da revista Les temps modernes. E foi a ela que mostrei o meu filme Shoah quando estava montando. Mantivemos uma cumplicidade intelectual. E não se deve imaginar Simone de Beauvoir como uma intelectual pretensiosa. Nada disso.

O senhor diz que o livro de Sartre Réflexions sur la question juive (1946) foi muito importante para o senhor, mesmo se depois discordou de algumas idéias. Em que pontos o senhor discorda dele ?

Claude Lanzmann : Sartre dizia : « São os antissemitas que criam os judeus ». Não é verdade. Os judeus não são uma criação dos antissemitas. Há um povo judeu com uma longa história, uma tradição, uma transmissão, cabeça dura, obstinado pela tradição. Descobri isso na primeira vez que fui a Israel. Descobri a particularidade judaica, isso existe. Não são os antissemitas que criam os judeus. A posição de Sartre era abstrata. Mas ele admitiu, aceitou quando eu lhe disse isso quando voltei de Israel. Mas o que é magnífico no livro dele é o perfil que ele faz do antissemita. E também as condutas inautênticas nos judeus. Existem judeus que têm vergonha de ser judeus. Há um capítulo no meu livro em que falo disso.

O senhor fala das cartas de amor que Simone de Beauvoir lhe mandou quando o senhor ou ela estavam viajando. O senhor pensa em publicá-las ?

Claude Lanzmann : Não tenho direito.

Por quê ?

Claude Lanzmann : Porque não tenho esse direito, a lei francesa proíbe a publicação e somente os herdeiros legais podem fazê-lo. As cartas foram enviadas a mim mas não tenho o direito de publicá-las.

Somente sua filha Sylvie Le Bon de Beauvoir tem o direito de publicar a correspondência de Simone de Beauvoir.

Claude Lanzmann : Sylvie Le Bon de Beauvoir tentou me eliminar da vida de Simone de Beauvoir.

Então o senhor não pode publicar as cartas…

Claude Lanzmann : Quem sabe no Brasil…

Mas é proibido no mundo inteiro…

Claude Lanzmann : Claro, no mundo inteiro.

O senhor passou 12 anos fazendo o filme Shoah, uma « obra-prima » segundo Simone de Beauvoir escreveu no Le Monde. Depois do filme não se fala mais de holocausto em francês para designar a exterminação dos judeus, diz-se a shoah (a catástrofe). Este filme é a obra de sua vida ?

Claude Lanzmann : Ele é muito importante, fiz também outros filmes. Mas o livro Le lièvre de Patagonie também é importante. E meu primeiro filme « Pourquoi Israël » também é muito importante.

O senhor fez dois filmes sobre Israel, Pourquoi Israël e Tsahal sobre o exército israelense. Quando o senhor fala da guerra, dos aviões de guerra, de sua viagem a Israel para fazer Tsahal, tem-se a impressão que o senhor poderia ter sido militar. Freud e Einstein tiveram uma correspondência publicada sob o título « Por que a guerra ? » Israel está condenado a vive rem estado de guerra ? Qual a solução para o conflito Israel-Palestina ?

Claude Lanzmann : Não sei se Israel está condenado a viver em estado de conflito permanente… É uma guerra que dura cem anos… Ela começou bem antes da criação de Israel. O que se passa no Egito, pode gerar coisas positivas. A imprensa do mundo costuma diabolizar Israel. Israel não é um país de assassinos. A solução do conflito é difícil, complicada, muitas pessoas tentam. As coisas ficaram mais difíceis depois dos acordos de Oslo, na década de 90. Os palestinos estão armados, os elementos radicais que querem a destruição de Israel estão mais fortes. Estamos numa escalada.

Os pacifistas israelenses não têm razão de querer fazer a paz e ver a criação do Estado palestino ?

Claude Lanzmann : Não, eles estão errados em não verem a realidade e quererem culpar Israel de tudo. Você é uma pacifista ?

Eu não vim responder a perguntas, vim fazer perguntas…

Claude Lanzmann : Você é judia ?

Não. Como o senhor vê o debate em torno do livro Indignez-vous, do embaixador Stéphane Hessel que defende a idéia que a criação de um Estado Palestino seria do maior interesse de Israel ?

Claude Lanzmann : Ele é um homem detestável. O livro é nulo. Eu o critique numa entrevista que dei na semana passada.

Ele é um dos homens mais respeitados da França … O senhor participou juntamente com Sartre e Beauvoir da luta anticolonial contra a guerra da Argélia. Em que a ocupação israelense é diferente da ocupação francesa na Argélia ?

Claude Lanzmann : Não há nenhuma relação. A Argélia era uma colônia francesa dominada por colonos poderosos, ricos, sustentados pelo exército francês. Não se compara com a situação em Israel. Lá nem se diz colônias. Diz-se implantações.

Mas não deixam de ser colônias construídas nas terras que segundo a ONU pertencem aos palestinos…

Claude Lanzmann : As implantações são construídas nos desertos. Não havia nada antes. Os árabes não faziam nada neles. Foram os israelenses quem fertilizaram tudo. E não fazem mais implantações. Terminou. As implantações são feitas como os kibboutzim de outros tempos. Eles eram postos de fronteiras, os árabes estavam em guerra contra Israel. As implantações foram criadas sob esse modelo mas os israelenses evacuaram muitas delas, as que estavam no Sinai, por exemplo.

O senhor fala do cardeal Lustiger no livro, um encontro que tiveram. O senhor não é explícito mas dá a impressão de não apreciá-lo muito…

Claude Lanzmann : Eu o apreciava. Era um homem muito simpático, era judeu, cardeal da igreja romana. Digo que ele era incapaz de ver o filme “Shoah”. Não critico somente ele mas também os rabinos. Digo que para pessoas como eles o mal não existe, eles não querem ver.

Entre a obra de Sartre e a de Beauvoir, qual fica para a posteridade ?

Claude Lanzmann : As duas. A filosofia de Sartre fica. Ninguém leu suas grandes obras filosóficas como A crítica da razão dialética… Ele é um grande, grande filósofo, difícil de ler, mas há sempre colóquios que são feitos no mundo inteiro sobre Sartre, grupos de estudos sartrianos. E depois seu teatro é muito vivo, seus romances, seus textos polêmicos, políticos. A obra de Beauvoir ficará, « O segundo sexo » ficará, seus livros ficam para a posteridade.

Como o senhor vê as duas revoluções no Egito e na Tunísia ?

Claude Lanzmann : Acho muito bom. O que surpreende é como o Egito dá o exemplo. As pessoas não podiam mais suportar as injustiças sociais, as desigualdades, a corrupção, a oposição entre a miséria e o ouro dos dirigentes. O que é formidável é que nos dias de rebelião, o nome de Israel não foi pronunciado, não é central para eles. A paz será mais fácil de ser feita com pessoas assim.

O senhor quer dizer com um regime democrático?

Claude Lanzmann : Sim, mas com esses jovens que têm essa energia. Isso gera uma grande esperança.

O senhor se considera um homem de esquerda ? O sempre foi um homem de esquerda, não ?

Claude Lanzmann : Sim, acho que sim.

O Brasil e outros países da América Latina como a Argentina, o Uruguai e a Bolívia reconheceram o Estado Palestino. Como o senhor avalia isso ?

Claude Lanzmann : Eles reconheceram o Estado Palestino ? Fizeram uma coisa errada. É preciso que o Estado Palestino se reconheça a si mesmo.

Há um movimento para que seja proclamada na ONU em setembro durante a Assembleia geral…

Claude Lanzmann : Vamos ver.

Rio sex comedy, objeto cinematográfico dificilmente identificável

(Texto publicado na Folha de São Paulo em 23 de março deste ano)

Leneide Duarte-Plon, de Paris

Na segunda viagem ao Rio, o francês Jérôme P., ex-militante do Partido Comunista Francês, trouxe um Chanel n° 5 para a empregada da namorada. Na primeira viagem ao Brasil, ela fizera pratos deliciosos para lhe agradar. O perfume preferido de Marilyn Monroe estava tão distante da realidade de Socorro quanto Marte está da Terra. Mas Jérôme quis presentear a cozinheira com um must da perfumaria francesa. E chegou a convidá-la para sentar-se à mesa com ele e a namorada, constrangido por comer servido por uma doméstica, personagem completamente ausente do cotidiano dos franceses.

A história é real e não está na comédia franco-brasileira “Rio sex comedy”, recém-lançada em Paris, do cineasta Jonathan Nossiter, autor do bem-sucedido “Mondovino”. Mas poderia. O Brasil é visto na comédia com o olhar do estrangeiro que descobre o way of life do país tropical, suas extravagâncias e os abismos sociais.

O filme é uma comédia escrachada, cujos principais personagens são estrangeiros : o casal de protagonistas é francês, a personagem de Charlotte Rampling é uma inglesa. Além deles, há o embaixador dos EUA em crise existencial. Todos vivem situações delirantes na cidade maravilhosa, às voltas com uma realidade urbana e social que parece muito louca aos olhos dos europeus.

O embaixador americano enviado ao Brasil acaba se escondendo numa favela onde encontra uma bela jovem da comunidade que fala perfeitamente inglês. O saneamento das favelas passa a ser uma preocupação do embaixador diletante. O francês é escritor e sua mulher antropóloga realiza um documentário sobre a relação das empregadas domésticas com as classes privilegiadas. Além deles, há ainda um guia de turismo judeu especializado em visitas a favelas, além de índios do Amazonas perdidos na selva urbana.

Esse coquetel resulta numa comédia completamente alucinada, que mantém durante quase duas horas o ritmo acelerado, com personagens que mergulham na loucura ambiente, com sexo por toda parte. Nossiter usa as aventuras dos personagens para mostrar cartões postais do Rio, enfatizando, contudo, os contrastes chocantes de uma cidade recentemente definida pelo ator José Wilker como “uma grande favela com ilhas de classe média alta e muito alta”. A proximidade, voluntária ou compulsória, das classes privilegiadas com a favela é uma das características da cidade que mais desconcertam os estrangeiros e que Nossiter consegue incorporar ao roteiro totalmente delirante, a ponto de o crítico do Libération ter definido o filme como “um objeto cinematográfico dificilmente identificável, a exemplo do seu título”.

Charlotte Rampling, Irène Jacob e Bill Pulman vivem alguns dos expatriados numa cidade em que o sexo e a cirurgia plástica onipresentes falam do culto ao corpo e da primazia do prazer sobre o dever. No documentário sobre as empregadas, a antropóloga vivida por Irène Jacob faz perguntas que espelham a luta de classes que ela enxerga, apesar de haver entre os brasileiros uma visão idealizada dessa convivência. E faz a todas a infalível pergunta sobre uma possível “revolução”. Jacob acaba caindo nos braços do cunhado e o marido, o ator Jérôme Kircher, um típico “cocu” dos vaudevilles, cai no conto do travesti, um clichê quando se trata do Rio.

A cirurgiã plástica Charlotte Jones, vivida por Rampling, vem ao Brasil para se dedicar à cirurgia reparadora encontrando na clínica social de Pitanguy na Santa Casa uma razão para se engajar e fugir de um casamento fracassado. A médica não perde a oportunidade de tentar dissuadir as brasileiras da inglória luta contra a passagem do tempo. Nossiter critica de passagem a mania nacional de reconstrução do corpo.

Em sua estreia cinematográfica, Ivo Pitanguy vive Ivo Pitanguy e se mostra à altura da atriz inglesa quando contracena com Charlotte Rampling. Pitanguy poderia ter feito carreira no cinema em vez de ter-se dedicado a remodelar rostos de estrelas...

Le Monde, Libération e a revista Le Nouvel Observateur fizeram críticas com visões diferentes. “A arte complexa de cultivar o natural” era o título da crítica do Monde e Libération intitulou “Rio sex comedy, transe fusion et don d’orgasme” (trocadilho com don d’organe). Le Monde viu no filme o ritmo de “uma comédia popular brasileira que tenta misturar documentário e ficção e opta pelo burlesco e pelo politicamente incorreto”. Mas conclui que ele “tem dificuldade em convencer”.

O crítico do Libération termina sua crítica com a frase: “Bon fond, bon rire, bon film”. Le Nouvel Observateur achou que o filme faz “oposições binárias, estéreis, que apenas forçam portas já abertas em uma comédia que pretende tocar o fundo mas é apenas superficial”.

Diplomacia salva Paris no teatro

« Diplomatie » é um desses momentos raros de grande teatro.

O texto é brilhante : numa suíte do hotel Meurice, na Rue de Rivoli, em agosto de 1944, o cônsul geral da Suécia em Paris, Raoul Nordling, tenta convencer o general alemão Dietrich von Choltitz a não obedecer a ordem de Hitler de destruir Paris antes de se render aos franceses que se aproximavam para libertar a capital. Os personagens são reais mas a situação é pura ficção.

A peça de Cyril Gely, com direção de Stephan Meldegg, foi encenada no Téâtre de la Madeleine, em Paris. Dois grandes atores, Niels Arestrup e Anfré Dussollier, encarnaram o general alemão e o cônsul sueco.

A qualidade dos diálogos misturando fatos históricos e ficção, a situação dramática de uma destruição iminente de Paris pelos alemães e dois atores perfeitos nos mínimos detalhes fizeram de « Diplomatie » um dos maiores prazeres que vivi nos últimos meses no teatro, onde muitas vezes chego a morrer de tédio.