segunda-feira, 9 de junho de 2008

O debate Badiou-Zizek

Um agitado e de frases entrecortadas, outro pausado e professoral, os dois filósofos falam em Paris sobre comunismo e anti-semitismo

O encontro dos filósofos Alain Badiou e Slavoj Zizek, em 16 de maio passado, em Paris, foi um show de inteligência e bom humor. Zizek era convidado do seminário anual que Badiou realiza na Escola Normal Superior, templo da intelligentsia francesa, onde Lacan e Derrida fizeram seminários muito concorridos. A famosa e prestigiosa "Normale Sup" forma parte da nata de intelectuais franceses até hoje.
O auditório começou a se encher uma hora antes do início do seminário. Zizek chegou pontualmente, acompanhado de Badiou. Descontraído, o esloveno vestia camiseta cinza. Mais tradicionalista, Badiou vestia uma camisa pólo de manga comprida. As diferenças de estilo começavam no figurino. A origem, a língua, os campos de interesse, o temperamento, tudo parece separar esses dois filósofos, que se dizem ligados por profunda amizade.
“Somos unidos pela amizade e temos os mesmos inimigos”, disse Badiou ao apresentar Zizek. O filósofo e psicanalista esloveno foi imediatamente interpelado por um homem do fundo da sala que gritou: “Zizek, você é um estalinista”. O discurso do desconhecido era desconexo. O público de mais de 300 pessoas, algumas de pé, o fez calar-se pedindo silêncio.
Os dois são freqüentemente acusados de “revolucionários” pelos chamados “novos filósofos” da década de 70 (Bernard-Henri Lévy e André Glucksmann, sobretudo). Lévy e Glucksmann são considerados por muitos como “novos reacionários”, pois se tornaram anticomunistas militantes.
Horizonte emancipatório
O que une Zizek e Badiou, como ambos frisaram, é a convicção de que o “desastre obscuro” do stalinismo e o fracasso do socialismo real não invalidam o horizonte de emancipação radical que é o comunismo, idéia que eles defendem cada um a sua maneira.
“É preciso reabilitar o comunismo. Mas não no sentido de uma restauração de algo que fracassou”, explicou Zizek. “O que nos une é a reabilitação do comunismo. Hoje, as pessoas de esquerda aceitam sem problemas o capitalismo, contentando-se em reivindicar um pouco de ‘tolerância’, um pouco de ‘justiça’. Mas será que o horizonte final da esquerda é esse capitalismo global ‘à visage humain’ (com rosto humano)?”
Ao apresentar Zizek, Badiou explicou que há uma diferença de horizonte filosófico entre os dois. Enquanto seu horizonte se resume à tensão entre Platão e Sartre ou entre a idéia e a liberdade, o horizonte do esloveno é a tensão entre o idealismo alemão (Hegel) e Lacan.
Badiou mostrou que há também diferença de horizonte político. “O meu é a seqüência da luta anticolonial, seguida do Maio de 68 e a experiência fundamental do maoísmo francês”. Quanto a Zizek, Badiou o vê como alguém que se origina “de um país do antigo bloco socialista com a história de uma heresia periférica, isto é, a heresia iugoslava de Tito em relação ao stalinismo”.
Os dois filósofos têm em comum um interesse pelo cinema, além de serem ambos grandes ouvintes das óperas de Wagner, que já foram objeto de estudos de ambos.
Mas, apesar de estarem de acordo sobre a “hipótese comunista”, como a chama Badiou, Zizek e ele têm estilos totalmente diferentes. Badiou fala pausadamente, numa língua erudita e elegante, num tom professoral. Ao ouvi-lo, é impossível esquecer que se está diante de um mestre.
Zizek é agitado, fala com as mãos, pega nos cabelos. Ele se desculpa por falar francês com sotaque e usa frases muitas vezes entrecortadas, numa impressão de que a articulação da língua francesa vai mais devagar que seu pensamento em ebulição. Ele fala nervosamente, movimentando as mãos com tiques como o que o leva a puxar a camisa de malha.
"Tribunal do povo"
Se as idéias são próximas, a enunciação delas não pode ser mais diferente.
Ao tomar a palavra, em vez de fazê-lo num tom professoral, Zizek disse que ia fazer um simulacro de “tribunal do povo”, no qual defenderia seu amigo Badiou, acusado injustamente de anti-semitismo e de universalismo por causa de alguns de seus livros.
”Nós dois combatemos o anti-semitismo por princípio”, afirma Zizek.
“Nenhum acordo com o anti-semitismo é possível. Nenhuma razão pode ser invocada para tolerar o anti-semitismo. Também não se pode minimizar Auschwitz em nome do apoio aos palestinos. Isso é uma obscenidade. Mas existe um anti-semitismo sionista que critica os judeus que não se identificam totalmente com o projeto do Estado de Israel, utilizando a mesma retórica dos ‘antidreyfusards’ no fim do século 19: a mesma acusação de cosmopolitismo, de traição à pátria”.
Zizek não concorda com os que tentam fazer uma aproximação dos “totalitarismos”. Ele diz que nazismo e stalinismo são coisas totalmente diferentes. E justifica:
”Mesmo os grandes processos públicos monstruosos do stalinismo falam de uma lógica totalmente diferente da lógica do nazismo. O processo político, a confissão em si já significa que formalmente se obedece à necessidade de demonstrar a culpa do acusado”.
“No caso de Auschwitz, os nazistas não tinham nada a demonstrar. Era suficiente provar que você era judeu. Você era culpado não pelo que tinha feito, mas pelo que você era”, concluiu.
Zizek explica que, durante o “desastre obscuro” do stalinismo, que instaurou o terror por 12 anos – de 1925 a 1937 – o lugar mais perigoso era justamente o ápice da nomenklatura, pois nesse período 80% dos membros do comitê central do Partido Comunista da União Soviética foram eliminados. E isso não se viu no nazismo.
Enigma
Os dois se aproximam na análise que fazem do stalinismo, que Badiou denominou “desastre obscuro”.
Zizek diz que o stalinismo foi e permanece muito enigmático e as análises feitas até hoje não são satisfatórias. “O horror verdadeiro do stalinismo deve ser estabelecido pelos intelectuais de esquerda”, pensa Zizek, para quem os chamados “novos filósofos” tinham tal ódio dos comunistas que foram incapazes de analisar o verdadeiro horror do stalinismo.
Zizek deixa em aberto o caminho defendido por ele e por Badiou, a “hipótese comunista”, que se opõe à globalização neoliberal: “Não gosto da esquerda que usa fórmulas. A propriedade privada não funciona. Mas o Estado também não funciona. Querem nos apresentar como velhos totalitários, mas a realidade é que pensamos que esse problema ainda não foi resolvido”. m
Polêmico, esloveno transita por vários temas
Os franceses descobriram há poucos anos esse psicanalista e filósofo esloveno, cuja obra se situa no centro dos debates que procuram definir uma política de emancipação verdadeira num mundo dominado pela globalização capitalista.
Nascido em Liubliana em 1949, Zizek, que é colunista do Mais!, é reconhecido no mundo todo como um pensador do prestígio de Sartre, Bourdieu, Lacan ou Derrida. Vive entre dois aviões, fazendo seminários e conferências, sobretudo nos EUA, onde é freqüentemente convidado de várias universidades.
Muitos intelectuais criticam a bulimia intelectual desse lacaniano, que o leva a escrever sobre assuntos tão diversos como fundamentalismo, tolerância, globalização, subjetividade, pós-modernidade, multiculturalismo, pós-marxismo e cinema.
Zizek é considerado um não-conformista que assume freqüentemente um tom provocador. Especialista em Hegel, sobre quem prepara um livro a ser editado por Alain Badiou, Zizek pensa que o trabalho do filósofo não é dizer o que é o mundo, mas questionar permanentemente e pôr em dúvida suas próprias formulações ideológicas. É um conferencista empolgado que não se intimida diante de temas controvertidos.
É colaborador de importantes revistas, como "Lacanian Ink" (EUA), "New Left Review" e "London Review of Books" (Reino Unido). (LDP)

Herdeiro de Sartre, francês é crítico de Sarkozy
Alain Badiou, 70, se situa como filósofo na tensão entre Platão e Sartre, ou seja, entre a idéia e a liberdade. É hoje o filósofo francês vivo mais lido e estudado nos EUA, com grande influência também na América Latina. É herdeiro de Sartre, para quem filosofia e engajamento político são indissociáveis. Combateu o colonialismo, foi maoísta e hoje defende a causa dos "sans-papiers", trabalhadores estrangeiros clandestinos que lutam por regularização.
Badiou foi muito influenciado pelo marxista Louis Althusser, seu professor na Escola Normal, mas é também romancista e dramaturgo.
Em seu livro "De Quoi Sarkozy Est-Il le Nom?" [Sarkozy É o Nome de Quê?, Éditions Lignes, 160 págs., 14, R$ 36], Badiou prevê que a França caminhe para "cair no modelo "ianque", de dominação dos ricos, do duro trabalho dos pobres, do controle de todos, da suspeita sistemática para com os estrangeiros".
Referindo-se ao atual presidente, Nicolas Sarkozy, diz ser ele o produto do medo ou produto de uma história francesa entre dois pólos: revolução e contra-revolução, Resistência e colaboração, desejo de liberdade e igualdade e desejo de autoritarismo e ordem.
Nas primeiras semanas após o lançamento, o livro vendeu 20 mil exemplares, um sucesso extraordinário para Badiou. Em geral, seus livros não vendem mais de 3.000 cópias. (LDP)
*Publicado originalmente no Suplemento MAIS da Folha de São Paulo.

Nenhum comentário: