quinta-feira, 31 de julho de 2008

Charlie Hebdo perde o humor cáustico de Siné, acusado de anti-semitismo*

O caricaturista Siné, de 79 anos, não imaginava o que o esperava quando escreveu na sua crônica do jornal satírico Charlie Hebdo um comentário sobre o futuro casamento e uma suposta conversão ao judaísmo do filho de Nicolas Sarkozy, Jean Sarkozy, de 21 anos.

Na semana seguinte, Siné foi acusado por um jornalista do Nouvel Observateur, Claude Askolovitch, de anti-semitismo. O affaire Siné virou uma polêmica que divide intelectuais e jornalistas franceses há mais de duas semanas. O diretor de Charlie Hebdo, Philippe Val, resolveu deixar de publicar o caricaturista, sem demiti-lo formalmente. Siné vai processar Claude Askolovitch por injúria e difamação.

No seu texto, Siné escreveu: “Jean Sarkozy, digno filho de seu pai e já conselheiro geral do (partido) UMP, saiu quase sob os aplaudos de seu processo por fuga em sua lambreta. A Justiça o declarou inocente! Diga-se de passagem que o acusador é árabe! E não é tudo: ele declarou que vai se converter ao judaísmo antes de casar-se com sua noiva, judia, e herdeira dos fundadores de Darty. Vai longe, esse menino!”

Obviamente, como o próprio Siné explicou, ele teria feito uma observação semelhante se o filho de Sarkozy fosse se casar com uma muçulmana e, para isso, se convertesse ao islã. Ou a qualquer outra religião de sua noiva. Anarquista e ateu convicto, o humorista defende a criação do Estado palestino e participa da Coordenação francesa da década de cultura da paz e da não-violência.

Por recomendação de seu advogado, Siné continua enviando sua colaboração semanal a Charlie Hebdo, que deixou de publicá-la. A última foi publicada pelo site do Nouvel Observateur. Siné escreveu o que pensa do diretor do jornal satírico, da origem das divergências entre eles e acrescenta:

“Quanto ao meu suposto anti-semitismo, junca fui anti-semita, não sou anti-semita, nunca serei anti-semita. Condeno radicalmente os que são anti-semitas, mas não tenho nenhum apreço pelos que, judeus ou não, jogam irresponsavelmente essa palavra abjeta na cara de seus adversários para desconsiderá-los, sabendo que esta acusação é o insulto supremo depois do Holocausto (Shoah). Isso está se tornando insuportável. No que me concerne, tenho tanta antipatia por todos os que, judeus ou não, defendem o regime israelense quanto pelos que defendiam o apartheid na África do Sul. Há mais de 60 anos luto contra todas as formas de racismo e se tivesse tido idade de esconder judeus durante a Ocupação o teria feito sem hesitar, como o fiz pelos Argelinos durante a guerra da Argélia. Estou do lado de todos os oprimidos !”

Esse affaire desencadeou uma polêmica entre intelectuais franceses sobre o tema do anti-semitismo. O filósofo Bernard-Henri Lévy analisou no Le Monde o caso Siné num artigo intitulado “De quoi Siné est-il le nom?” parodiando o livro de Alain Badiou, “De quoi Sarkozy est-il le nom?”, que ele cita. Lévy chega ao cúmulo de afirmar que o antisarkozysmo pode ser hoje uma deriva do anti-semitismo.

O filósofo Alain Badiou respondeu imediatamente no próprio Le Monde com um artigo irônico e de uma finesse extraordinária, para protestar contra a utilização para fins diversos da acusação de anti-semitismo na França atual. O título “Tout antisarkozyste est-il un chien?” remetia às metáforas zoológicas de seu livro, interpretadas por Pierre Assouline como anti-semitas. Sartre, citado por Lévy, também é invocado por Badiou no seu delicioso artigo.

Entre as vozes que se levantaram para defender Siné contra a absurda acusação, uma foi particularmente importante: a advogada Gisèle Halimi, que foi advogada de Jean-Paul Sartre, escreveu uma carta aberta a Philippe Val assegurando que se ele fizer um processo por anti-semitismo contra Siné não tem nenhuma chance de ganhar na Justiça.

Há poucos dias, o site do Nouvel Observateur pôs no ar uma petição de apoio a Siné que pode ser assinada online. Redigida por Eric Martin, Benoît Delépine e Lefred-Thouron, ela declara apoio “total e incondicional” ao desenhista anarquista e termina dizendo: “Siné não é anti-semita. Siné não gosta dos idiotas. Siné é um anarquista. Viva Siné”. Essa petição já foi assinada por filósofos como Michel Onfray e Daniel Bensaïd, por grande número de jornalistas, pelo dirigente da Liga Comunista Revolucionária Alain Krivine, pelo vice-presidente da União judaica francesa pela paz, Pierre Stambul, e pelo fundador de Médecins sans frontières, Rony Brauman, entre milhares de outros franceses.

*Publicado originalmente no Observatório da Imprensa

terça-feira, 22 de julho de 2008

Exposição reúne quadros em busca de proprietários

Exposição no Museu de arte e história do judaísmo mostra quadros pilhados pelos nazistas ***

Leneide Duarte-Plon, de Paris


A mostra de pintura que o Musée d’art et d’histoire du judaïsme inaugurou em Paris é mais que uma exposição de arte.
É de política e de história que falam os quadros de pintores consagrados como Utrillo, Degas, Delacroix, Monet, Vlaminck, Ingres, Fragonard, Cézanne, Courbet, Matisse, Marx Ernst e Seurat. Entre os 53 quadros da exposição, há ainda obras de grandes mestres da pintura holandesa, além de algumas obras anônimas.
O nazismo e a espoliação de bens de colecionadores judeus, durante a Ocupação da França pelos alemães, são o centro de interesse da exposição, que tem como título: “A qui appartenaient ces tableaux? (A quem pertenciam esses quadros?) O subtítulo explica a pergunta : Espoliações, restituições e pesquisa de origem : o destino das obras de arte trazidas da Alemanha após a guerra.
Nem todos os quadros enviados à Alemanha durante a guerra foram fruto de pilhagem. E nem todos pertenciam a judeus. Os alemães compraram muito no mercado francês de arte, tirando proveito das leis raciais, decretadas pelo governo fantoche do Marechal Pétain. Puderam se apropriar de obras pertencentes a judeus que fugiam, mas também compraram obras de grande valor por preços muito abaixo do mercado.
A exposição chegou a Paris, onde fica até 26 de outubro, depois de ter sido mostrada no Museu de Israel, em Jerusalém. Ela é o resultado da Missão Mattéoli, nomeada por Lionel Jospin em 1999, para estudar a espoliação dos judeus franceses. Essa missão consluiu que 10% do fundo atualmente chamado Musées Nationaux Récupération (MNR), que contém 2 mil obras, devem ser pinturas espoliadas a famílias judias.
A exposição mostra os diferentes processos de apropriação praticados pelos nazistas durante a Segunda Guerra mundial, desde as primeiras pilhagens feitas em julho de 1940 até as conseqüências das leis raciais do governo de Vichy (dirigido por Pétain).
Além disso, a exposição explica, através de textos didáticos, como foram feitas as restituições no após-guerra, seja aos grandes colecionadores como a família Rothschild, seja a outras famílias que puderam comprovar a origem das obras. Mesmo após o trabalho de historiadores de arte dos dois países, ainda restam 2000 obras classificadas MNR (Musées Nationaux Récupération). Elas estão sob a guarda permanente de diversos museus franceses.
Através de vídeos, de textos e de documentos o visitante pode entender como foram feitas as pesquisas para encontrar a origem dos quadros, possibilitando a restituição aos proprietários ou a descendentes.
As 100 mil obras de arte repertoriadas depois da guerra na Alemanha saíram da França de seis maneiras diferentes. Foram confiscadas pelos diversos serviços nazistas, foram compradas ou trocadas. Entre elas, algumas pertenceram a um oficial alemão. Essa história rocambolesca de um tesouro perdido foi contada por um arcebispo que devolveu os quadros aos museus estatais de Berlim. Eram 28 pinturas e desenhos de Delacroix, Corot, Millet, Manet, Renoir e Seurat, adquiridos por um oficial alemão e entregues em confiança a um soldado que voltou à Alemanha. Como o oficial não apareceu depois da guerra para reclamar seu tesouro, o soldado o confiou, sob o segredo da confissão, a Monsenhor Heinrich Solbach, arcebispo de Magdebourg. Este o entregou ao organismo central dos museus alemães. Essas obras foram devolvidas a François Mitterrand, em 1994, e foram expostas no Musée d’Orsay no mesmo ano.
Fazendo desapropriações de bens de judeus, os nazistas contavam com a Einsatzstab Rechsleiter Rosenberg (ERR), criada por Hitler sob a autoridade de Alfred Rosenberg, ideólogo do partido nazista e teórico do anti-semitismo. Entre abril de 1941 e julho de 1944, esse serviço enviou para a Alemanha 138 vagões contendo 4.174 caixas correspondendo a 22 mil objetos ou lotes de objetos. Segundo um relatório de julho de 1944, 38 mil apartamentos parisienses foram pilhados e os objetos de valor encaminhados à ERR.
Hitler e Goering adquiriram obras de pintores flamengos através de operações de trocas de obras de pintores modernos como Picasso e Matisse, confiscadas a colecionadores como Paul Rosenberg, o marchand de Picasso. As obras desses pintores, considerada “arte degenerada”, serviam de moeda de troca para aquisição de obras de pintores holandeses, que os dirigentes nazistas tanto admiravam.
Depois da guerra, autoridades aliadas estabeleceram comissões para resolver o verdadeiro quebra-cabeças das obras de arte estocadas na Alemanha, provenientes de diversos países europeus. Calcula-se que 100 mil obras de arte deixaram o território francês durante a guerra. Dessas, 60 mil retornaram à França em 1945. Entre essas, 45 mil foram restituídas aos proprietários até 1949. Entre as 15 mil restantes, 13 mil foram vendidas pela organização que administra os museus franceses, entre 1950 e 1953. As duas mil restantes estão espalhadas pelos museus nacionais com o selo MNR de onde saíram as 53 obras expostas atualmente no Museu de Arte e de História do Judaísmo.
Nos dias 14 e 15 de setembro haverá um colóquio internacional no próprio museu intitulado Espoliações, restituições, indenizações e pesquisa de origem : o destino das obras de arte encontradas depois da Segunda Guerra Mundial.
Ainda em setembro, o museu programou dois filmes em torno do tema : Le train, de John Frankenheimer e Monsieur Klein, de Joseph Losey. Além deles, três documentários serão exibidos dia 21 de setembro, entre eles, Roubados pelos nazistas, a história da coleção Schloss.

*** publicada na Folha de São Paulo em 13 de julho de 2008

segunda-feira, 21 de julho de 2008

Grace Kelly : a princesa do rochedo

O sonho de se tornar uma princesa começa cedo na infância das meninas. Em geral, com a história da gata borralheira.
Conheço uma menininha francesa de menos de quatro anos, Julia, que se veste com seu vestido de “Cendrillon” (Cinderela), coloca os sapatinhos e sonha com o príncipe. Nos seus sonhos, o príncipe é seu pai (ainda). Freud explica. Depois, ele será substituído. Ou não, e aí é que as coisas se complicam. Ela tem o livro, mas tem também o DVD, tecnologia oblige, da pequena rejeitada que se transformou em princesa. Vira e mexe, veste o vestido de baile de Cendrillon. E nesse momento é uma princesa.
Ao ver no Hôtel de Ville a bela exposição sobre a vida da princesa Grace não pude deixar de pensar que ela estava no lugar que toda mulher sonha ocupar: ao lado do príncipe encantado. Ela tinha Hollywood a seus pés, mas preferiu a vida real. Trocou um sonho de celulóide por um rochedo. Mônaco, le rocher, como a imprensa francesa chama o pequeno principado encravado na rocha. Um rochedo é real, tem solidez. Hollywood é ilusão, pode evaporar-se. Não é mesmo, Marilyn?
A vida de Grace Kelly foi um conto de fadas. Ela veio à França para o festival de Cannes e o príncipe Rainier sucumbiu ao seu charme. Casaram-se alguns meses depois. Ela se tornou a mais bonita, elegante e charmosa de todas as princesas da Europa.
A exposição foi organizada pelo escritor Frédéric Mitterrand, que se esmerou nos textos, informativos, mas inteligentes e sutis. A mostra segue uma ordem cronológica e os espectadores podem, assim, percorrer a vida de Grace de Mônaco do berço até os dias mais maduros. Um mergulho num mundo de palácios, recepções, jet set, glamour e elegância. Os vestidos de baile estão lá, assinados pelos maiores costureiros franceses. Ela, que sempre adorou Paris, mesmo antes de se tornar princesa, sempre se vestiu chez Dior. Mas o vestido mais deslumbrante é um preto longo assinado por Balenciaga. Ao lado de cada vestido, uma foto de Grace no dia em que o usou.
A exposição é rica em documentos. Tem cartas de Jackie Kennedy agradecendo os presentes, da Rainha Sophia da Espanha comentando os momentos que passaram juntas. Há fotos de todos os momentos da princesa, dos mais íntimos em família até as recepções aos grandes desse mundo. Uma foto extraordinária é aquela em que Grace olha absolutamente fascinada para John Kennedy. O flagrante de uma mulher subjugada pelo charme de um homem.
Filmes de Hollywood desfilam em diversas telas. Filmes de família mostram as princesas e o pequeno príncipe Albert em diferentes idades. O que fica é a impressão de uma família feliz, privilegiada claro, mas que sente prazer em estar junta. Minha filha lembrou na saída da exposição que se a vida da princesa foi um sucesso, a de seus três filhos deixa a desejar. Nenhum deles brilhou em nenhuma área do conhecimento, das artes ou na política. Eles são tão inexpressivos quanto os filhos da rainha da Inglaterra, por exemplo. Na realidade, dão a impressão de que é difícil encontrar uma missão de relevância no mundo quando se nasce em berço de ouro.
Quanto à estrela de Hollywood que se tornou princesa, aparentemente ela nunca se arrependeu de ter aceito a mão do príncipe do rochedo.
Viveram um conto de fadas até que a morte os separou.

quinta-feira, 17 de julho de 2008

O disco de Carla B.


Tu es ma came/Plus mortel que l'héroïne afghane/Plus dangereux que la blanche colombienne."

« Você é minha droga/Mais mortal que a heroína afegã/Mais perigoso que a branca colombiana”.


A primeira dama francesa canta. E como cantora e compositora, escreve canções e grava discos. Muito bons. O mais recente “Comme si de rien n’était” acaba de sair esta semana.

Lembro há uns quatro anos, estava entrando numa butique parisiense com uma amiga brasileira, Joëlle Rouchou. Ouvimos uma canção deliciosa, uma voz afinada e agradável. Perguntamos quem era. A elegante moça da butique informou que era Carla Bruni.

O disco é o acontecimento midiático do mês. A campanha de comunicação é intensa, entrevistas nas rádios, entrevistas exclusivas a jornais e revistas. Carla Bruni-Sarkozy, Carla Bruni no CD, fala do que sabe: relações entre homens e mulheres, entre homens e mulheres modernas. Como ela. Que agora, além de se ocupar de sua carreira, tem que gerir a agenda de primeira-dama, o protocolo, a etiqueta estrita e rígida do Eliseu. Mas Carla não é controlada, o Eliseu não censura o que ela diz.

Ela mesma garante na entrevista que deu ao jornal gratuito “Metro” desta quinta-feira, 10 de julho. Mas o mais “jornalístico” da entrevista estava no título: “Não estou grávida”. Ela disse que bem que gostaria, mas a barriguinha que ganhou recentemente é culpa da cerveja. “Preciso parar de beber cervejas”, disse Carla, que se mostra sempre irritada quando pensam que ela é, de alguma forma, controlada por uma suposta entidade de comunicação do Eliseu.

Quanto às músicas, ela garante que a maioria das letras já tinham sido escritas quando conheceu o presidente. A quem se chocar com as alusões ao pó branco colombiano, ela responde: “Nós somos um país democrático. Não há censura na França”.

O filho de Carla B.

Num jantar de psicanalistas em Paris, fiquei sabendo que o filho de Carla B. (como o jornal Le Canard enchaîné a chama numa coluna engraçadíssima que simula o diário da cantora) vai estudar na École Alsacienne. Esta escola é onde estudam os filhos da alta burguesia parisiense. Apesar de a escola republicana ser de alto nível, os esnobes fazem questão de pôs seus rebentos na École Alsacienne.

O problema é que um dos casais que estavam no jantar tem a filha na dita escola. E não gostaram nada da notícia que pressupõe saídas engarrafadas com guarda-costas, entre outros inconvenientes. Além disso, parece que o filho de Sarkozy com Cécilia também seria aluno da escola a partir de setembro. Parece improvável, mas não impossível que o filho de Carla (com um professor de filosofia chamado Raphael Enthoven, filho do ex-companheiro de Carla, o editor Jean-Paul Enthoven) e o filho de Sarkozy passem a freqüentar a mesma escola.

O bom vinho e os comentários hilariantes dos psicanalistas inventando cartas anônimas para evitarem que o filho de Carla passe a fazer parte dos alunos da escola tornaram o jantar muito animado. Entre os presentes, uma certeza: a agitação e a superatividade presidencial não deixam dúvida de que ele é adepto da blanche colombienne.

A melhor história foi o detalhe de como o psicanalista ficou sabendo que o filho de Carla B. iria estudar na escola alsaciana a partir de setembro: através de uma amiga, que soube pela caixa do supermercado de um bairro chique de Paris.

Se Ibrahim Sued estivesse vivo diria que em sociedade tudo se sabe...

Os cabelos de Ronaldo

Em Palermo, na Sicilia, e na cidade francesa de Metz dei de cara com Ronaldo, o fenômeno.

Não o próprio, mas uma foto enorme dele, dentro da vitrine de farmácias (foto).

O produto que Ronaldo vende com sua imagem é suíço, chama-se Crescina e pretende fazer nascer cabelo.

Como se a antiga careca do jogador brasileiro fosse fruto de uma calvície, que o produto pretende curar, e não desejo de esconder os cabelos encaracolados, que Ronaldo resolveu assumir.

O laboratório fatura, vendendo ilusão aos incautos. Idem Ronaldo.


De que não são capazes o marketing e a picaretagem dos laboratórios. Tenho um médico que me contou que seu pai fez fortuna inventando um creme rejuvenescedor que prometia a juventude eterna às mulheres que, como se sabe, dão tudo para apagar as marcas do tempo. Elas, obviamente, não eliminaram as rugas. Mas ele eliminou definitivamente todos os seus problemas econômicos.

quarta-feira, 2 de julho de 2008

Sarkoberlusconismo

Estou chegando de Veneza, Florença e Roma. Fui apresentar a cultura italiana da Antiguidade, do Renascimento e dos grandes artistas de todos os séculos à minha filha caçula.

A Itália é sinônimo de cultura e refinamento. Mas o presente não faz jus ao passado. O Renascimento ontem e hoje Berlusconi, renascido, qual fênix, para novo mandato. Dante e a televisão berlusconiana, primado da vulgaridade e estupidez. Quando os italianos emergirão dessa descida aos infernos?

Este mês, o jornal Le Monde fez uma reportagem comparando os presidentes Sarkozy e Berlusconi. Foi durante um encontro europeu em Roma. O enviado especial do jornal falava de “sarkoberlusconismo” do mundo latino europeu da direita triunfante.

Berlusconi, o Sarkozy italiano? Sarkozy, o Berlusconi francês? Há semelhanças e algumas diferenças. Berlusconi é um milionário homem de negócios que entrou na política depois de fazer fortuna. Sarkozy não tem nenhuma fortuna... ainda. Mas é amigo dos milionários naquele seu jeito de ser de uma “direita descomplexada”, como ele denominou o fato de ser de direita e se assumir plenamente.

Outra diferença: Berlusconi teve que se aliar à direita mais xenófoba para governar, a Liga do Norte. Sarkozy praticamente riscou do mapa o partido de Jean-Marie Le Pen, o Front National. Roubou de Le Pen seus eleitores sem precisar se aliar a ele.

O cientista político francês Pierre Musso, num ensaio recentemente publicado, fez a análise mais precisa do “sarkoberlusconismo”. Ele diz: “O sarkoberlusconismo é um americanismo latinizado, capaz de se adaptar a realidades nacionais diferentes. Esse novo modelo político neoliberal euro-mediterrâneo, do tipo bonapartista, combina a autoridade do Estado, a reverência ao catolicismo e a referência à empresa privada”.

Enquanto a Itália, a França e grande parte da Europa dão uma guinada à direita, a América do Sul faz nascer a esperança de uma resistência ao neoliberalismo, que tenta se apresentar como única forma de conceber o mundo moderno.

Se Darcy Ribeiro fosse vivo estaria conceituando entusiasmado, com o brilho de que era capaz essa nova forma de construção de sociedades menos injustas feitas por mestiços do Sul do Equador.


A mão no controle remoto


Os italianos desenvolveram com os franceses uma relação feita de admiração recíproca, mesclada de desconfiança em relação aos franceses, vistos como arrogantes mas ao mesmo tempo admirados pelo discurso claro e elegante dos intelectuais, a capacidade de expor idéias na arte da conversa refinada, elevada a níveis difíceis de serem superados. Os intelectuais italianos não se furtam em louvar essa elegância da arte de conversar e discutir em alto estilo, própria dos franceses cultos.

Mas alguns italianos sentem uma ligeira melhora na maneira de serem julgados pelos franceses, antes extremamente severos com a Itália contemporânea. Como se eles pensassem que o que a Itália produziu de grande qualidade nas artes e nas letras já era passado. O presente seria sem relevo. Ouvi esse ponto de vista de uma advogada em Roma, com quem jantei na casa de Giovanna Picciau, uma pintora romana de raro talento. O mundo de Giovanna Picciau é uma prova de sutileza e inteligência: surpreendente, provocante, uma forma surrealista de imaginar homens, mulheres e crianças no mundo. Ela cria situações e cenas surrealistas, onde tudo é possível. Giovanna Picciau tem uma coleção de objetos kitsch que rivaliza com a de Almodóvar, exposta há dois anos na Cinemateca Francesa.

Mas voltando à advogada. Ela dizia que sente os franceses menos arrogantes e auto-suficientes, mais simpáticos e até mais acolhedores. Ela via neles uma tendência a pensar que depois do Renascimento, do grande século clássico, dos grandes compositores de ópera, da época de ouro do magnífico cinema de Rossellini, Fellini, Antonioni e Visconti, a Itália entrara em franca decadência. E Berlusconi seria uma espécie de figura emblemática desse novo mundo da vulgaridade e da mediocridade que impera na Itália atual. Ele encarnaria, para desespero dos intelectuais, a Itália de hoje. Como se de Dante, só houvesse sobrado o inferno.

Quem sabe, os franceses tenham descoberto a modéstia e relativizado a auto-suficiência graças a Sarkozy e a seu estilo berlusconiano de ser e governar?

O fato é que para a esquerda francesa Sarkozy representa uma ameaça sistemática ao serviço público.

A mais recente reforma “modernizadora” do presidente foi a investida contra as redes de televisão estatais. A partir de janeiro de 2009, depois de 20h não haverá mais publicidade nesses canais. Como financiar a televisão de estado que tem diversos canais onde ainda se podem ver programas de qualidade, seja jornalístico, seja de ficção? Esse é o grande quebra-cabeça que Sarkozy tenta provar que sabe resolver. Os jornais de esquerda fizeram esta semana editoriais e grandes reportagens para protestar contra a ameaça de liquidar as televisões estatais pertencentes à grande empresa holding France Télévisions.

No bojo das reformas, Sarkozy inclui a nomeação pelo chefe de Estado (ele mesmo) do presidente da France Télévisions. Libération deu como título de capa na quinta: Nicolas Sarkozy, la main sur la télécomande (Nicolas Sarkozy, a mão no controle remoto).

A bulimia de poder de Sarkozy se expressa também na decisão de controlar de A a Z a informação televisiva.

Como Berlusconi.


Jeanne Moreau reencontra a Marquesa de Merteuil


Nos anos 80, o dramaturgo alemão Heiner Müller confessou a seu tradutor francês que gostaria de ver um dia a marquesa de Merteuil de sua peça Quartett interpretada por Jeanne Moreau.


O sonho de Müller foi realizado no ano passado, dia 9 de julho de 2007, quando, ao lado do ator Sami Frey, a grande dama do teatro e do cinema francês subiu ao palco da Cour d’honneur do Palais des Papes de Avignon para uma noite de leitura de Quartett. Moreau voltava 60 anos depois ao Festival d’Avignon, o mítico festival de teatro que ela inaugurou em 1947, aos 20 anos, com Jean Vilar, o criador do festival. Em Avignon, no verão de 2007 fechava-se um ciclo na carreira de uma atriz excepcional que começou no teatro, na Comédie Française e continuou no TNP (Théâtre National Populaire) de Jean Vilar.

Quando Jeanne Moreau e Sami Frey entram no palco do Théâtre de la Madeleine em Paris para a leitura da peça (um mês de apresentaçéoes até 28 de junho) o público sabe que está diante de dois monstros sagrados do teatro e do cinema. Mas mesmo se ambos são dois atores excepcionais, é ela, aquela mulher pequena que, aos 80 anos de idade e 60de carreira, impressiona por sua presença mítica. E a voz inconfundível. A voz de Jeanne Moreau é como os bons vinhos que só ganham com o tempo.

A marquesa de Merteuil utiliza a voz e o talento de Jeanne Moreau para dizer coisas terríveis a Valmont-Sami Frey. Ambos lêem o extraordinário diálogo de Heiner Müller sem um gesto, sem se levantarem em nenhum momento. Um copo de vinho e uma lâmpada é tudo o que têm sobre suas mesas, além do livro que lêem. A dramaticidade do texto é traduzida apenas na voz, nos silêncios, na inflexão. Mesmo se os diálogos são extraordinariamente bem escritos, é preciso ser Jeanne Moreau e Sami Frey para criar uma Merteuil e um Valmont tão fortes com tão poucos recursos. No final do espetáculo, o público sabe recompensar o talento dos dois atores com aplausos entusiásticos e seis chamadas ao palco.

Müller contou que seu principal problema ao escrever Quartett foi encontrar uma forma dramática para um romance epistolar e isso só foi possível passando pelo jogo de interpretação em que duas pessoas representam quatro personagens.

Jeanne Moreau é uma antiga conhecida da marquesa. Ela fez a Merteuil no cinema, no filme de Roger Vadim. No programa que reproduz o texto completo da peça ela conta que foi a seu pedido que o escritor Roger Vailland adaptou o texto de Laclos depois filmado por Vadim.

Na realidade, o jogo dramático da peça de Heiner Müller inclui mais dois personagens: a casta Cécile Volanges e a reticente e carola Madame de la Tourvel. Por indicação do próprio autor, todos os personagens são representados por dois atores que trocam de papel. E trocando de papel, Sami Frey pode representar madame de la Tourvel e Moreau fazer o sedutor e libertino Valmont.

“Quartett é uma reação ao problema do terrorismo com um conteúdo, com um material que superficialmente não tem nada a ver com isso. O suporte, o texto de Laclos Les liaisons dangereuses, eu nunca li inteiro. Minha fonte principal foi o prefácio de Heinrich Mann para uma tradução que ele fez”, escreveu o autor pouco antes de sua morte em 1995. Na indicação do período da peça, Müller escreveu: “Um salão antes da Revolução francesa. Um bunker depois da terceira guerra mundial”.