quarta-feira, 2 de julho de 2008

Sarkoberlusconismo

Estou chegando de Veneza, Florença e Roma. Fui apresentar a cultura italiana da Antiguidade, do Renascimento e dos grandes artistas de todos os séculos à minha filha caçula.

A Itália é sinônimo de cultura e refinamento. Mas o presente não faz jus ao passado. O Renascimento ontem e hoje Berlusconi, renascido, qual fênix, para novo mandato. Dante e a televisão berlusconiana, primado da vulgaridade e estupidez. Quando os italianos emergirão dessa descida aos infernos?

Este mês, o jornal Le Monde fez uma reportagem comparando os presidentes Sarkozy e Berlusconi. Foi durante um encontro europeu em Roma. O enviado especial do jornal falava de “sarkoberlusconismo” do mundo latino europeu da direita triunfante.

Berlusconi, o Sarkozy italiano? Sarkozy, o Berlusconi francês? Há semelhanças e algumas diferenças. Berlusconi é um milionário homem de negócios que entrou na política depois de fazer fortuna. Sarkozy não tem nenhuma fortuna... ainda. Mas é amigo dos milionários naquele seu jeito de ser de uma “direita descomplexada”, como ele denominou o fato de ser de direita e se assumir plenamente.

Outra diferença: Berlusconi teve que se aliar à direita mais xenófoba para governar, a Liga do Norte. Sarkozy praticamente riscou do mapa o partido de Jean-Marie Le Pen, o Front National. Roubou de Le Pen seus eleitores sem precisar se aliar a ele.

O cientista político francês Pierre Musso, num ensaio recentemente publicado, fez a análise mais precisa do “sarkoberlusconismo”. Ele diz: “O sarkoberlusconismo é um americanismo latinizado, capaz de se adaptar a realidades nacionais diferentes. Esse novo modelo político neoliberal euro-mediterrâneo, do tipo bonapartista, combina a autoridade do Estado, a reverência ao catolicismo e a referência à empresa privada”.

Enquanto a Itália, a França e grande parte da Europa dão uma guinada à direita, a América do Sul faz nascer a esperança de uma resistência ao neoliberalismo, que tenta se apresentar como única forma de conceber o mundo moderno.

Se Darcy Ribeiro fosse vivo estaria conceituando entusiasmado, com o brilho de que era capaz essa nova forma de construção de sociedades menos injustas feitas por mestiços do Sul do Equador.


A mão no controle remoto


Os italianos desenvolveram com os franceses uma relação feita de admiração recíproca, mesclada de desconfiança em relação aos franceses, vistos como arrogantes mas ao mesmo tempo admirados pelo discurso claro e elegante dos intelectuais, a capacidade de expor idéias na arte da conversa refinada, elevada a níveis difíceis de serem superados. Os intelectuais italianos não se furtam em louvar essa elegância da arte de conversar e discutir em alto estilo, própria dos franceses cultos.

Mas alguns italianos sentem uma ligeira melhora na maneira de serem julgados pelos franceses, antes extremamente severos com a Itália contemporânea. Como se eles pensassem que o que a Itália produziu de grande qualidade nas artes e nas letras já era passado. O presente seria sem relevo. Ouvi esse ponto de vista de uma advogada em Roma, com quem jantei na casa de Giovanna Picciau, uma pintora romana de raro talento. O mundo de Giovanna Picciau é uma prova de sutileza e inteligência: surpreendente, provocante, uma forma surrealista de imaginar homens, mulheres e crianças no mundo. Ela cria situações e cenas surrealistas, onde tudo é possível. Giovanna Picciau tem uma coleção de objetos kitsch que rivaliza com a de Almodóvar, exposta há dois anos na Cinemateca Francesa.

Mas voltando à advogada. Ela dizia que sente os franceses menos arrogantes e auto-suficientes, mais simpáticos e até mais acolhedores. Ela via neles uma tendência a pensar que depois do Renascimento, do grande século clássico, dos grandes compositores de ópera, da época de ouro do magnífico cinema de Rossellini, Fellini, Antonioni e Visconti, a Itália entrara em franca decadência. E Berlusconi seria uma espécie de figura emblemática desse novo mundo da vulgaridade e da mediocridade que impera na Itália atual. Ele encarnaria, para desespero dos intelectuais, a Itália de hoje. Como se de Dante, só houvesse sobrado o inferno.

Quem sabe, os franceses tenham descoberto a modéstia e relativizado a auto-suficiência graças a Sarkozy e a seu estilo berlusconiano de ser e governar?

O fato é que para a esquerda francesa Sarkozy representa uma ameaça sistemática ao serviço público.

A mais recente reforma “modernizadora” do presidente foi a investida contra as redes de televisão estatais. A partir de janeiro de 2009, depois de 20h não haverá mais publicidade nesses canais. Como financiar a televisão de estado que tem diversos canais onde ainda se podem ver programas de qualidade, seja jornalístico, seja de ficção? Esse é o grande quebra-cabeça que Sarkozy tenta provar que sabe resolver. Os jornais de esquerda fizeram esta semana editoriais e grandes reportagens para protestar contra a ameaça de liquidar as televisões estatais pertencentes à grande empresa holding France Télévisions.

No bojo das reformas, Sarkozy inclui a nomeação pelo chefe de Estado (ele mesmo) do presidente da France Télévisions. Libération deu como título de capa na quinta: Nicolas Sarkozy, la main sur la télécomande (Nicolas Sarkozy, a mão no controle remoto).

A bulimia de poder de Sarkozy se expressa também na decisão de controlar de A a Z a informação televisiva.

Como Berlusconi.


Jeanne Moreau reencontra a Marquesa de Merteuil


Nos anos 80, o dramaturgo alemão Heiner Müller confessou a seu tradutor francês que gostaria de ver um dia a marquesa de Merteuil de sua peça Quartett interpretada por Jeanne Moreau.


O sonho de Müller foi realizado no ano passado, dia 9 de julho de 2007, quando, ao lado do ator Sami Frey, a grande dama do teatro e do cinema francês subiu ao palco da Cour d’honneur do Palais des Papes de Avignon para uma noite de leitura de Quartett. Moreau voltava 60 anos depois ao Festival d’Avignon, o mítico festival de teatro que ela inaugurou em 1947, aos 20 anos, com Jean Vilar, o criador do festival. Em Avignon, no verão de 2007 fechava-se um ciclo na carreira de uma atriz excepcional que começou no teatro, na Comédie Française e continuou no TNP (Théâtre National Populaire) de Jean Vilar.

Quando Jeanne Moreau e Sami Frey entram no palco do Théâtre de la Madeleine em Paris para a leitura da peça (um mês de apresentaçéoes até 28 de junho) o público sabe que está diante de dois monstros sagrados do teatro e do cinema. Mas mesmo se ambos são dois atores excepcionais, é ela, aquela mulher pequena que, aos 80 anos de idade e 60de carreira, impressiona por sua presença mítica. E a voz inconfundível. A voz de Jeanne Moreau é como os bons vinhos que só ganham com o tempo.

A marquesa de Merteuil utiliza a voz e o talento de Jeanne Moreau para dizer coisas terríveis a Valmont-Sami Frey. Ambos lêem o extraordinário diálogo de Heiner Müller sem um gesto, sem se levantarem em nenhum momento. Um copo de vinho e uma lâmpada é tudo o que têm sobre suas mesas, além do livro que lêem. A dramaticidade do texto é traduzida apenas na voz, nos silêncios, na inflexão. Mesmo se os diálogos são extraordinariamente bem escritos, é preciso ser Jeanne Moreau e Sami Frey para criar uma Merteuil e um Valmont tão fortes com tão poucos recursos. No final do espetáculo, o público sabe recompensar o talento dos dois atores com aplausos entusiásticos e seis chamadas ao palco.

Müller contou que seu principal problema ao escrever Quartett foi encontrar uma forma dramática para um romance epistolar e isso só foi possível passando pelo jogo de interpretação em que duas pessoas representam quatro personagens.

Jeanne Moreau é uma antiga conhecida da marquesa. Ela fez a Merteuil no cinema, no filme de Roger Vadim. No programa que reproduz o texto completo da peça ela conta que foi a seu pedido que o escritor Roger Vailland adaptou o texto de Laclos depois filmado por Vadim.

Na realidade, o jogo dramático da peça de Heiner Müller inclui mais dois personagens: a casta Cécile Volanges e a reticente e carola Madame de la Tourvel. Por indicação do próprio autor, todos os personagens são representados por dois atores que trocam de papel. E trocando de papel, Sami Frey pode representar madame de la Tourvel e Moreau fazer o sedutor e libertino Valmont.

“Quartett é uma reação ao problema do terrorismo com um conteúdo, com um material que superficialmente não tem nada a ver com isso. O suporte, o texto de Laclos Les liaisons dangereuses, eu nunca li inteiro. Minha fonte principal foi o prefácio de Heinrich Mann para uma tradução que ele fez”, escreveu o autor pouco antes de sua morte em 1995. Na indicação do período da peça, Müller escreveu: “Um salão antes da Revolução francesa. Um bunker depois da terceira guerra mundial”.

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