quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Franceses fichados

A França, o país dos direitos humanos, começa suavemente a descer a ladeira da limitação das liberdades individuais.
É o que pensam o jurista Etienne Tête e um grande número de franceses que protestaram num manifesto contra a criação, em julho deste ano, do “fichier Edvige”. Esse estranho nome é a sigla para “exploitation documentaire et valorisation de l’information générale”, uma invenção típica de serviços de informação. As fichas individuais do fichário Edvige descrevem desde a orientação sexual até engajamentos políticos e permitem às autoridades espionar os franceses a partir dos 13 anos de idade. Esse fichário lembra as sinistras fichas do Dops, criadas durante a ditadura militar brasileira.
O fichário Edvige será administrado pela Direction centrale du renseignement intérieur, serviço de informação do governo. Esse novo dispositivo policialesco gerou protestos em todo o país e um manifesto contra ele foi assinado por mais de 50 mil pessoas representando 500 organizações.
Baseado no artigo 8 da Convenção européia dos direitos humanos, o jurista Etienne Tête entrou na Justiça para tentar invalidar o funcionamento do fichário. O artigo 8 da Convenção garante o direito ao respeito da vida privada e familiar e não autoriza a ingerência das autoridades públicas senão “em caso de segurança nacional, segurança pública, quando necessário ao bem-estar econômico do país, à defesa da ordem e à prevenção de infrações penais e ainda à proteção da saúde e da moral ou a proteção dos direitos e liberdades de outrem”.
O jurista denuncia um texto liberticida que permite a intrusão na vida de políticos eleitos, sindicalistas e todos os que se candidatam a um mandato eletivo. Ele pensa que a orientação sexual de um político não é um problema que diz respeito a suas responsabilidades de eleito nem muito menos à segurança nacional.
Teria esse fichamento como um dos objetivos a dissuasão de adolescentes tentados a participar das violentas manifestações das “banlieues” que envolvem rapazes cada vez mais jovens? Pela nova lei, os menores a partir de 13 anos poderão ser fichados mas não terão direito de acesso a suas fichas.

Olivier Besancenot e o NPA

Com o fim das férias de verão novas passeatas já estão programadas para a “rentrée” de setembro, para protestar contra as reformas neoliberais de Sarkozy.
A esquerda fragilizada tenta se reorganizar para existir. O Partido Socialista se reúne no próximo fim de semana e os candidatos à sucessão do secretário-geral, François Hollande, fazem campanha, inclusive o prefeito de Paris, Bertrand Delanoë.
A Liga Comunista Revolucionária (LCR), pequeno partido de extrema esquerda trotskista, cujo porta-voz é o carteiro Olivier Besancenot, um personagem carismático e combativo, que me faz lembrar o metalúrgico Luiz Inácio da Silva dos anos 80, realizou neste fim de semana um grande seminário para formalizar o nascimento do novo partido de esquerda que substituirá a LCR. Depois da queda do muro, o nome "comunista" no título do partido é um peso difícil de carregar. Afinal, todos os partidos comunistas do ocidente mudaram de nome e o único que não o fez, o Partido Comunista Francês, não pára de perder eleitores.
Seria tempo, pois, de atualizar a LCR. Seu substituto, que está sendo chamado de Novo partido anticapitalista (NPA) e que será batizado definitivamente até o fim do ano, vai ser lançado oficialmente em dezembro deste ano e se apresenta como a verdadeira opção da esquerda anti-liberal.
Olivier Besancenot foi candidato à presidência da república em 2002 e em 2007. Na eleição presidencial do ano passado, teve 4,08% dos votos, o que significa que 1.498.581 de franceses queriam vê-lo presidente da república. Entre os candidatos da extrema esquerda, ele foi o mais votado, à frente da candidata do Partido Comunista Francês, Marie-George Buffet. O PCF, que já foi uma força política importantíssima, declina a cada nova eleição.
Besancenot e os militantes da LCR, cada vez mais numerosos, querem que o NPA seja um partido engajado nas lutas sociais e ecológicas e recusam o reformismo que tomou conta da esquerda clássica. Essa esquerda que Besancenot congrega no novo partido se define como “anticapitalista, internacionalista, anti-racista, ecologista e feminista e visa a uma transformação da sociedade a fim de elaborar uma nova perspectiva socialista democrática para o século 21, extinguindo a economia de mercado”.
Diferentemente da China, que construiu seu fabuloso desenvolvimento econômico baseado num modelo híbrido que alia a economia de mercado ao sistema comunista de partido único, Besancenot propõe uma nova via. Sem renegar seu passado trotskista, ele quer criar uma “perspectiva socialista democrática”. O NPA pode ser uma alternativa para quem não acredita no socialismo do PS, considerado reformista e "pas assez à gauche" por muitos eleitores de esquerda.

Mahmoud Darwich, o poeta da Palestina

Em 2004, traduzi para o português os nove textos do livro “Voyage en Palestine” (Viagem à Palestina, Ediouro) com um texto do prêmio Nobel de literatura Wole Soyinka, um de Russel Banks, presidente do Parlamento Internacional dos Escritores, um de Christian Salmon e um de Juan Goytisolo, entre outros. O escritor José Saramago, que também fez a viagem não entregou seu texto em protesto contra a polêmica que se formou em torno de suas declarações na Palestina. Jacques Derrida, que não pôde fazer a viagem, mandou um texto publicado no volume.
Três anos depois, tive o imenso prazer de ouvir o poeta palestino Mahmoud Darwish dizer seus poemas, no campus parisiense da Universidade de Columbia, em Montparnasse. Foi uma noite inesquecível, compartilhada por dezenas de pessoas emocionadas.
Mahmoud Darwish morreu dia 9 de agosto deste ano, em Houston, no Texas, de complicações de uma cirurgia cardiológica. O povo palestino perdeu seu maior poeta e um de seus mais brilhantes intelectuais.
O motivo da viagem à Palestina foi a impossibilidade de o poeta Darwish sair de Ramallah para encontrar seus pares do Parlamento Internacional dos Escritores. Abaixo, o texto de apresentação do livro, pelo editor:

Foi por sugestão do poeta palestino Mahmoud Darwish que, alguns meses antes, não pudera aceitar diversos convites de encontros no estrangeiro, que uma delegação do Parlamento Internacional do Escritores visitou os territórios ocupados, na primavera de 2002. O discurso pronunciado pelo poeta, membro do Parlamento, para recepcionar a delegação, em Ramallah, dia 25 de março, em pleno cerco da cidade, abre essa obra. Os membros da delegação (provenientes de quatro continentes: da África, o prêmio Nobel nigeriano Wole Soyinka e o poeta sul-africano Breyten Breytenbach; da China, o poeta dissidente Bei Dão; da Europa, o romancista espanhol Juan Goytisolo, o prêmio Nobel português José Saramago, o romancista italiano Vicenzo Consolo e o escritor francês, secretário-geral do Parlamento Internacional dos Escritores, Christian Salmon, e da América do Norte o romancista Russel Banks) ao visitarem por vários dias aqueles lugares, desejavam expressar a Darwish, aos intelectuais e ao povo da Palestina a solidariedade do PIE num momento em que as condições ao exercício do pensamento tornaram-se, nessa região, inaceitáveis para qualquer homem livre. Tratava-se, ao mesmo tempo, de ir ao encontro de escritores palestinos cercados, romper o isolamento de pessoas que não querem abandonar seu país na condição de asilados e testemunhar uma situação inacreditavelmente funesta. À violência exercida contra o território partido, à disseminação de fronteiras, à desarticulação da linguagem e à relação pânica com o outro, respondem sete escritores, mais preocupados em observar atentamente o cotidiano do que em emprestar suas vozes às litanias ideológicas.

Os textos aqui publicados constituem testemunhos precisos e vivos de uma realidade cuja espetacularização midiática não permite que dela se tome consciência. Força da literatura, sem dúvida, que por sua permanência e experiência interior pulveriza as representações assépticas do horror propagado pela indústria "da informação". Bem mais eloqüente do que a maioria das reportagens, eles são, pois, para além igualmente dos textos mais imediatistas, destinados à perenidade. Acompanham os textos as mensagens de Hélène Cixous e Jacques Derrida. O leitor encontrará no fim do volume o texto integral do "Manifesto pela paz na Palestina" lançado pelo PIE no dia 6 de março de 2002, que recolheu 600 assinaturas.



Um comentário:

Valéria Martins disse...

Eu, hein? Que história, essa de fichar todo mundo na França.
É muito bom saber do mundo a partir de Paris.
Um beijo, minha querida