O arcaísmo da igreja católica é desconcertante. Na semana em que se comemorou o dia internacional da mulher, o drama da criança vítima de um padrasto pedófilo, em Pernambuco, chocou o mundo. Mas o que causou maior estupefação foi a reação retrógrada do bispo católico, apoiada em seguida pelo Vaticano.
O Le Monde deu a notícia em matéria na primeira página esta semana, com uma reportagem de fundo sobre as decisões recentes do Vaticano que causam total incompreensão, como essa excomunhão dos médicos e da mãe da criança estuprada e a reintegração de padres e bispos integristas, entre os quais um negacionista que duvida das mortes de judeus em câmaras de gás nazistas. O historiador Philippe Levillain fez um comentário que resume o pensamento de grande parte dos observadores leigos da igreja católica: “O pontificado de Bento XVI está se tornando o pontificado trágico da incompreensão”.
Um bispo ouvido em off (anonimamente) pelo jornal Le Monde comenta: “Essas posições da Igreja estão muito distantes do Evangelho. Em alguns casos, é melhor calar-se e acompanhar o sofrimento das pessoas. A Igreja está no seu papel quando diz que a vida deve ser protegida desde a concepção, mas diante de tal drama deve-se ter uma palavra de compaixão e não de excomunhão”.
O diretor do jornal L’Humanité, Patrick Le Hyaric vai mais longe: conclama a todos os que defendem os valores humanistas, crentes ou ateus, a um movimento internacional para pedir ao Vaticano que anule “essa decisão iníqua de excomunhão”.
Aborto, blasfêmia e guilhotina
Sem intervalos comerciais, podemos ver um filme na televisão francesa como se estivéssemos no cinema. Esse detalhe que sempre me afastou da TV no Brasil, me leva de vez em quando a reparar uma falha da minha (in)cultura cinematográfica.
No dia internacional da mulher, o canal francoalemão Arte, a melhor opção da TV francesa, passou o filme de Claude Chabrol, Une affaire de femmes, com uma interpretação magistral de Isabelle Huppert, que deu à atriz o prêmio de melhor atriz no festival de Veneza de 1988. O filme ganhou ainda o Golden Globe de melhor filme estrangeiro de 1989.
Huppert vive Marie Latour, uma mulher que durante a guerra faz um aborto numa vizinha e, ao se dar conta de que a atividade pode se transformar em trabalho remunerado, se transforma em “faiseuse d’anges” como se diz em francês. Marie era jovem, casada, mãe de dois filhos e gostava de cantar canções francesas. Seu sonho de se tornar cantora profissional é bruscamente interrompido pela chegada de policiais, após denúncia anônima. Acontece que o aborto era ilegal e considerado crime passível de pena de morte pelas leis de Vichy. Marie Latour é presa e seu processo termina em condenação à guilhotina.
Chabrol reconstitui com talento de mestre um microcosmo da França, a pequena cidade onde a guerra que destrói a Europa é percebida apenas nas privações do cotidiano e na presença esporádica de soldados alemães. E Isabelle Huppert confirma que é a maior atriz do cinema francês.
Uma granada de gás lacrimogênio explodiu num dos cinemas de Montparnasse que passava o filme no outono de 1988. Um espectador teve um ataque cardíaco e morreu. A bomba era a reação de católicos conservadores indignados com a prece blasfematória que Isabelle Huppert diz antes de caminhar para a guilhotina: “Ave Maria cheia de merda, o fruto de teu ventre é podre”.
O filme, uma adaptação do romance homônimo de Francis Szpiner, é baseado na história real de Marie-Louise Giraud, nascida em 17 de novembro de 1903 e uma das últimas mulheres guilhotinadas na França, em 30 de julho de 1943.
Em 1975, a lei Simone Veil tornou o aborto, denominado IVG-interrupção voluntária de gravidez – um direito de todas as francesas.
A pena de morte foi abolida em 1981, por iniciativa de François Mitterrand.
sábado, 14 de março de 2009
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Um comentário:
E hoje é o aniversário Isabelle Huppert. Parabéns a ela pela data e a você, Leneide, pelo texto: Muito pertinente ao contexto da comemoração do 8 de março e claro, a essa postura, no mínimo repugnante, da igreja católica.
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