segunda-feira, 28 de novembro de 2011

SERENÍSSIMA VENEZA


O crítico de arte e ex-diretor do Musée Picasso de Paris, Jean Clair, não gosta de arte contemporânea, que escreve entre aspas. Não foi visto em Veneza, que neste verão estava mais bonita, mágica e mais misteriosa que nunca. A cidade dos doges, onde Mitterrand passava parte do verão todos os anos com Mazarine e Anne Pingeot, é uma eterna fonte de descobertas e alumbramento. Redescobrir Veneza com o Dictionnaire amoureux de Venise de Philippe Sollers foi um dos prazeres do mês de agosto, que passamos sempre na Itália, a menos que o Brasil se imponha por motivos de força maior.
Em Veneza, um concerto de um grupo de música de câmara tocando « As quatro estações » de Vivaldi dentro de uma igreja é uma garantia de que a viagem já valeu a pena. Um jantar no restaurante do Hotel Monaco & Grand Canal é um programa romântico e chique. A evitar os passeios de gôndola tão caros a americanos e japoneses.
Na Bienal de Veneza deste ano havia muitas obras, muitos artistas mas raros os que realmente diziam algo de novo. Entre eles, o suíço Thomas Hirschhorn, com sua instalação Crystal of Resistance, que tem essa pretensão. 
« Com essa obra quero criar uma forma que permita pensar algo que não existe, algo novo, inesperado. Com essa forma quero criar uma verdade que resiste aos fatos, às opiniões, aos comentários », escreveu na apresentação de sua obra.
A instalação dele ocupava um espaço muito grande, caótico. Tem o mérito de não deixar o espectador indiferente. Provoca, incomoda. Será isso o novo ?

… e a Bienal de Lyon

Lyon, na França, organizou este ano a estupenda, soberba 11a Bienal. Com o título « Une terrible beauté est née » (Uma terrível beleza nasceu), dos versos do poeta inglês Yeats, a Bienal de Lyon nos fez viajar em obras de artistas do mundo todo, sob a curadoria de Victoria Noorthoorn, uma argentina que num só sobrenome consegue ter quatro O.
A Bienal de Lyon, louvada em prosa e verso por toda a imprensa francesa, sem nenhuma conotação de chauvinismo pois os artistas franceses brilham pela ausência, pode ser vista até  31 de dezembro.
Na Bienal de Lyon, brilham os brasileiros Cildo Meireles, que ocupa todo um andar do Musée d’Art Contemporain com uma obra incrível (FOTOS) chamada « La Bruja », feita de milhares de metros fios de lã preta. No pavilhão chamado Sucrière, uma sala especial homenageia Arthur Bispo do Rosário com diversas obras e é a única sala onde não se pode fazer fotos. Os poemas de Augusto de Campos (FOTO) estão salpicados em diversas paredes da Sucrière. A brasileira Daniela Thomas também está presente na Bienal com a mise en scène de uma obra de Beckett,   « Breath ».  

Na Bienal de Lyon descobri o trabalho de três grandes artistas : o polonês Robert Kusmiroski com sua obra Stronghold, (FOTO)
o peruano Fernando Bryce, com a crônica de uma memória coletiva, um trabalho extraordinário sobre a vertiginosa passagem do tempo e de fatos que se acumulam em jornais, e a tcheca Eva Kotatkova, que em obras terrivelmente perturbadoras critica a formatação de cérebros pela escola. Grandes descobertas.

Danielle Mitterrand, a eterna indignada 

É a história de uma dama, uma grande dama, que morreu aos 87 anos. Uma dama que sempre detestou o epíteto de « première dame ». O papel de « dame patronesse » não era o seu.
Depois que Stéphane Hessel publicou Indignez-vous, best-seller planetário que vendeu mais de 2 milhões de exemplares somente na França e deu origem ao movimento mundial dos indignados, a resistência e o engajamento ganharam novo adjetivo. « Indignado » é o novo resistente. O adjetivo designa os que resistem à ditadura do mercado que gera desemprego, precariedade e aprofunda as desigualdades entre ricos e pobres.  
Danielle Mitterrand foi indignada a vida toda. Primeiramente, como resistente numa rede da Resistência francesa, arriscando a vida para combater os ocupantes nazistas na França. Na Resistência, aos 17 anos, ela conheceu François Mitterrand, o « capitaine Morland ».  Ambos atuavam com nomes de guerra. Logo depois se casaram e Danielle continuou sendo « a consciência de esquerda » de François Mitterrand, como reconhecem os amigos socialistas.
Danielle Mitterrand sempre teve vida própria e nunca foi uma sombra do marido. Ao contrário. Quando ele era presidente (de 1981-1995) criou dificuldades para o Quai d’Orsay por seus engajamentos internacionais em favor dos kurdos, da libertação do Tibet, do Front Polisario no Marrocos, do movimento do comandante Marcos, no México. Chegou a escapar de um atentado no Kurdistão que matou diversos de seus colaboradores. Foi uma indignada de todas as lutas contra a opressão e pela liberdade.
A última causa de Danielle Mitterrand foi a luta pelo direito de todo ser humano ter acesso à água potável. Para isso, enfrentou interesses de multinacionais poderosas que querem transformar a água em um produto como outro qualquer. Em 1986, Danielle Mitterrand criou a Fundação France-Libertés que atua no mundo inteiro, inclusive no Brasil, em defesa de quase um bilhão de pessoas que não têm acesso à água potável. Ela esteve presente em todos os encontros do Forum Social Mundial para defender o direito de todo ser humano a esse bem que ela queria ver inscrito como um direito fundamental de todo ser humano. A indignada Danielle participou da criação da cadeira de direitos humanos da UNB, juntamente com o senador Cristovam Buarque. Este ano ela se encontrou em Paris com o chefe Raoni para apoiá-lo na luta contra a barragem de Belo Monte.
A vida pessoal de François Mitterrand e Danielle foi a de um casal que se amou e se respeitou sempre. Na década de 60, firmaram um compromisso : cada um teria vida privada independente mas o casal se manteria unido. Esse era o pacto que tinham quando o ex-ministro e deputado Mitterrand foi eleito presidente da República em 1981. Danielle tinha um companheiro, um professor de educação física, ele teve diversas relações. De uma delas, nasceu Mazarine, que o presidente reconheceu. Danielle participou da cerimônia do enterro de Mitterrand com seus dois filhos, tendo Mazarine entre os dois irmãos. Anne Pingeot, companheira de Mitterrand e mãe da jovem Mazarine estava na segunda fila, discretamente vestida de preto. As cenas do enterro mostraram aos franceses a dignidade e a classe de Danielle que abraçou Mazarine diante das câmeras do mundo todo.
Danielle foi enterrada onde nasceu, em Cluny, cidade medieval conhecida por sua Abadia monumental de extraordinária beleza. Mazarine, filha de François Mitterrand com Anne Pingeot, foi a Cluny para a cerimônia do enterro da viúva de seu pai. E foi emocionada que lançou uma rosa vermelha no túmulo de Danielle, eterna combatente, que viveu 87 anos indignada com as desigualdades e engajada nas lutas pelos direitos humanos.

DSK e a teoria do complô
Todos os que acompanham de perto na imprensa francesa o que se chama « l’affaire DSK » pensavam que com as revelações do caso do hotel Carlton de Lille em que o nome do ex-diretor do FMI aparece como consumidor de uma rede de prostituição, tínhamos chegado ao fim das revelações bombásticas. Mas neste fim de semana, o Le Monde revela que um jornal americano levanta a tese de um possível complô contra o ex-candidato às eleições primárias socialistas. Seu telefone celular Blackberry teria sido grampeado e, mistério, desapareceu sem nunca ter sido encontrado. A tese do complô pode estar sendo montada pelos advogados de defesa com a cumplicidade de um jornalista de investigação para desacreditar de vez a causa de Naffissatou Dialo, que prossegue uma ação civil contra DSK na Justiça americana.
Na França, a Justiça continua a investigar a rede de prostituição de Lille e os SMS de DSK confirmando com amigos festas com prostitutas em diversas cidades, inclusive Paris e Washington.  
Quem fala e compreende bem francês e quer entender como Dominique Strauss-Kahn foi parar na história sórdida de uma rede de prostituição de luxo de Lille pode abrir o site e ver um infográfico sonoro que explica tudo :

« Cézanne e Paris » e « A aventura dos Stein » : um gênio de volta à cidade que o consagrou
Leneide Duarte-Plon, de Paris (publicado na revista Carta Capital)

 « Cézanne é o pai de todos nós », afirmava Picasso, que sabia o que dizia. O catalão era um admirador incondicional do artista que deixou sua Aix-en-Provence natal para se instalar em Paris em 1861, aos 22 anos. A frase é também atribuída a Matisse pelo escritor e colecionador Leo Stein, o que prova que ambos reconheciam em Paul Cézanne um precursor e um mestre.
Naquela segunda metade do século XIX, mais que hoje, quem tinha pretensão de se tornar artista precisava frequentar seus pares, respirar o ar da capital. O jovem Cézanne trabalhava no banco do pai e morria de tédio. Para ser  pintor era preciso ir para Paris, umbigo do mundo, onde Émile Zola, colega de Cézanne no ginásio de Aix, já se instalara.
Amigo, colecionador e incentivador do artista, o escritor foi retratado em diversos quadros, dois dos quais dois estão na exposição « Cézanne et Paris »,  mostra excepcional recém-inaugurada no Musée du Luxembourg, que pode ser vista até 26 de fevereiro. São 79 obras, 77 de Cézanne, uma de Armand Guillaumin e uma de Pierre Bonnard. Entre as obras de Cézanne expostas, todas foram pintadas em suas diferentes temporadas parisienses e estão espalhadas por museus e coleções particulares do mundo inteiro. Duas delas, « Paul Alexis lendo para Emile Zola » e « O negro Cipião », vieram do MASP de São Paulo.
Em Paris, onde passou a metade de sua vida artística, Cézanne frequentou a Académie Suisse, de Charles Suisse, onde posavam modelos vivos masculinos e femininos. Mas além do atelier com os modelos, o pintor precisava da proximidade do Louvre, onde ia com frequência se impregnar da beleza e da técnica dos grandes mestres. No templo da arte parisiense, Cézanne desenhava em seus carnets cópias de Delacroix, Poussin, Rembrandt. Ele se inspira no movimento e na cor de Rubens, Véronèse, Ticiano e Signorelli.  « O Louvre é o livro onde aprendemos a ler » escreveu um ano antes de sua morte, em 1906. A única obra que Cézanne conservou toda a vida foi uma aquarela de Delacroix, que considerava  « o grande mestre ».  
No entanto, nenhum ícone da capital foi imortalizado por Cézanne em suas diversas temporadas parisienses, que ele alternava com viagens pela região de Aix-en-Provence, onde pintou soberbas paisagens da montanha Sainte Victoire. Não pintou Notre Dame, não se interessou senão em poucos quadros por uma rua de Montmartre ou pelos tetos de Paris. « Cézanne nunca se tornou um parisiense. Ele não construiu laços afetivos com a cidade que lhe é indispensável mas estrangeira. Ele nunca fez um retrato emblemático da cidade, ao contrário de outros artistas de sua geração », escreve a curadora da exposição Maryline Assante di Panzillo.
Mas o artista se interessava pela região em torno de Paris, que retratou magnificamente : Fontainebleau, as margens do Sena, do rio Oise ou do rio Marne. Com o amigo e pintor impressionista Pissarro, ele se instala mais de um ano em Auvers-sur-Oise. Depois, acompanha o pintor e amigo Armand Guillaumin a Issy-les-Moulineaux e adota a técnica divisionista de seus colegas que serão chamados de « impressionistas ». « Quando passa um ano sozinho em Melun, perto de Paris, em 1879-1880 e pinta « Le Pont de Maincy » (A ponte de Maincy), Cézanne encontra seu caminho. Ele fará do impressionismo, que depois abandona, uma arte sólida e durável », ressalta a curadora.  
Na exposição, pode-se admirar um quadro de Guillaumin ao lado da cópia feita por Cézanne. O primeiro pintou as margens do Sena em  « Le Quai de Bercy ». Cézanne refaz a mesma cena com um tratamento « impressionista » no quadro « La Seine à Bercy ». Um deleite para os admiradores do artista. A curadora analisa : « Cézanne não copia, ele toma emprestado ao amigo um motivo e o interpreta à maneira « construtivista » que está elaborando ».
Quando, em 1895, Cézanne faz sua primeira exposição individual, na galeria de Ambroise Vollard, já era um pintor conhecido e respeitado por seus pares, mas o artista não deixa Aix-en-Provence para vir a Paris. No mesmo ano, é o marchand Vollard quem faz a viagem ao sul para visitar Cézanne. Em 1894, Monet organizara uma recepção em homenagem a Cézanne, em Giverny, na presença de Clemenceau, Rodin e do crítico Gustave Geffroy. Em 1898 e 1899, Cézanne realiza duas novas exposições na galeria de Ambroise Vollard.
Mas até alcançar a glória de ter uma sala inteira do Salon d’Automne dedicada à sua obra, em 1904, o inspirador de Picasso e de Matisse teve quadros recusados em oito Salões parisienses, de 1865 a 1876. Cézanne estava em boa companhia : Manet foi recusado em 1866 e, em 1867, além das duas telas de Cézanne recusadas, o júri recusou outras de Guillemet, de Sisley, de Bazille e de Renoir. Apesar de ser no Salão de Outono e no Salão dos Independentes que os novos artistas podiam mostrar obras modernas, o academicismo imperava no establishment e as obras de Picasso, Cézanne, Matisse, Monet, Degas e Gauguin ainda causavam escândalo.  Daí a importância do Salon des Refusés, criado para mostrar obras de vanguarda recusadas.
Nessa Paris do início do século XX, os irmãos Stein, Leo, Gertrude e Michael, além da mulher deste, Sarah, vindos de São Francisco, descobrem em 1903 uma efervecência cultural e artística que vão viver, incentivar e divulgar. A exposição « L’aventure des Stein : Matisse, Cézanne, Picasso… », que pode ser vista até 16 de janeiro de 2012 no Grand Palais, conta a fabulosa história da coleção de arte de quatro americanos ricos, que se instalam em Paris onde se tornam colecionadores e incentivadores de artistas desconhecidos como Picasso e Matisse, que estavam inventando a arte moderna. Como Gertrude explica a Hemingway _ que frequentou open houses que ela promovia na Rue de Fleurus, onde artistas, escritores e colecionadores passavam para ver a coleção, falar de arte e encontrar a fina flor da vanguarda parisiense  _ comprar quadros era para ela e seus irmãos uma prioridade que vinha antes de tudo.
Os estudiosos e apreciadores de Cézanne têm a oportunidade extraordinária de ver nas duas mostras mais de oitenta quadros do artista, pertencentes a museus do mundo todo e a coleções particulares: são 77 obras na exposição do Musée du Luxembourg e outras 9 que fizeram parte da fantástica coleção Stein, na mostra do Grand Palais, que reúne 248 pinturas, esculturas, desenhos, litografias, impressos e fotografias. Um dos textos da exposição informa que a descoberta de Cézanne por Leo Stein, que veio para Paris para se tornar artista, foi uma « revelação » que questionou «  tudo o que ele pensava saber sobre a pintura ». Seu irmão Michael e sua mulher Sarah se tornam amigos de Matisse, de quem adquirem grande número de quadros. Graças ao casal, a obra do artista é exposta nos Estados Unidos.

Iniciada por Leo, Gertrude frequenta os salões de arte parisienses e descobre Cézanne. Como Picasso, de quem se torna amiga, colecionadora e incentivadora, Gertrude tem verdadeira veneração pelo mestre de Aix-en-Provence de quem adquire « Portrait de Madame Cézanne à l’éventail » (Retrato de Madame Cézanne com leque). Ela conta que foi admirando esse quadro que escreveu  « Three lives ». Gertrude dizia que queria escrever como Cézanne e Picasso pintavam. Para isso, ela tentava subverter a sintaxe, como Picasso subverteu a pintura e, inspirando-se de Cézanne, criou o cubismo.
Depois de ver as duas exposições, ler tudo o que curadores e críticos escreveram sobre os fabulosos colecionadores que foram os Stein, sobre os artistas que frequentavam os salões de Gertrude, Leo, Michael e Sarah, sobre a fabulosa aventura existencial daqueles americanos cultos e refinados, sofisticados e loucos na Paris do início do século XX, um programa urgente se impõe : rever « Midnight in Paris », reler « Paris é uma festa » e ler a obra de Gertrude Stein.

Sobre o conceito de rosto do filho de Deus 

Leneide Duarte-Plon, de Paris (Publicado na revista Carta Capital)
Do fundo do palco, o enorme retrato de Cristo do artista italiano Antonello da Messina, do século XV, fita os espectadores nos olhos. Em cena, o esfincter incontinente de um homem velho vem perturbar a saída do filho para o trabalho. O rosto de Cristo é onipresente durante os 50 minutos de duração da peça do dramaturgo italiano Romeo Castellucci, 51 anos, « Sul concetto di volto nel figlio di Dio » (Sobre o conceito do rosto do filho de Deus). O espetáculo causa polêmica na França, desde julho, quando foi apresentada no Festival de Teatro de Avignon, onde suscitou reações indignadas da parte de grupos integristas católicos, que tentaram impedir algumas apresentações.
Em Paris, onde esteve em cartaz de 20 de outubro a 6 de novembro, a peça, toda falada em italiano sem legendas, se transformou num acontecimento cultural em si, pela controvérsia que despertou, comparável à que suscitou, em 1966, a peça « Paravents », de Jean Genet, vítima dos grupos de extrema direita que viam nela uma ofensa à França e a seu exército.
O Théâtre de la Ville, em Paris, passou a ser protegido todas as noites por um impressionante esquema de proteção policial, com blindados de tropas de choque formando um cordão de segurança em todo o quarteirão para impedir a entrada dos grupos de integristas que gritavam slogans contra a « cristianofobia » da peça. Para entrar, os espectadores tinham de passar por um esquema de controle de bolsas e apalpação do corpo digno de um aeroporto moderno. Dentro da sala de espetáculo, havia dezenas de policiais em roupas civis, prontos para dominar espectadores exaltados, que tentaram interromper algumas representações do espetáculo.
Na verdade, a peça, uma profunda reflexão filosófico-teológica sobre a condição humana, desorienta o espectador do início ao fim. Hipnotizados pelo olhar do Cristo de Antonello da Messina, vemos em cena um homem idoso que se desfaz em uma diarreia incessante, inoportuna para seu filho, jovem executivo que se prepara para ir trabalhar, deixando o pai sozinho em casa. A peça dura apenas uma hora e tem poucos diálogos entre os dois personagens : o filho que se apressa em limpar o pai incontinente e este, que não para de se desculpar pelo transtorno. O filho é atencioso e se apieda sinceramente do estado de miséria física em que vê o pai, dependente e enfraquecido.
Em longa entrevista ao Le Monde, Castelucci disse que os integristas protestavam sem terem visto a peça, que pode ser analisada como « um canto de amor ao Cristo ». De fato, é assim que a vêem alguns espectadores. A frase em ingles, « You are my shepherd », que aparece no final da representação no fundo do palco onde o retrato do Cristo se encontrava (ele é rasgado e destruído) torna o espetáculo uma obra aberta pois a palavra « not » depois do verbo se ilumina e se apaga intermitentemente. Essa frase é uma variante do primeiro versículo do Salmo 23, atribuído ao rei Davi, “O Senhor é o meu pastor”.
Castellucci é um erudito leitor da Bíblia, apesar de se dizer ateu. Ele conta que procurou atingir a metafísica e o espiritual a partir de uma cena hiperrealista em que discute Deus em sua dimensão total, onde o sublime do olhar de Cristo coexiste com a miséria da condição humana em sua expressão mais dramática, na cena que se desenrola no palco. « A partir dessa situação hiperrealista, o espetáculo se torna pouco a pouco uma metáfora da perda de substância, da perda de si, como a condição do Cristo que aceitou se esvaziar de sua substância divina para integrar a condição humana até o fim, inclusive nos nossos excrementos ».  
Segundo o diretor, depois da primeira representação da peça, o ator que representa o pai saiu de cena e chorou durante duas horas. Provavelmente, sendo idoso, se projetou no destino de seu personagem. « Mostrar o rosto do filho de Deus é mostrar o rosto do Homem, Ecce Homo, visto no momento de fragilidade que precede a Paixão. Ele nos precede no sofrimento em geral e no sofrimento da carne, em particular”, diz Castellucci.
Diante da tentativa abortada dos integristas católicos de impedir na Justiça as apresentações em Paris, formou-se um « Comitê de apoio à liberdade de representação do espetáculo de Romeo Castellucci » que publicou em página inteira de vários jornais um texto de defesa da liberdade de expressão, assinado pela fina flor dos intelectuais parisienses.
A peça de Romeo Castellucci começou sua carreira em Essen, na Alemanha, no Festival Theatre des Welt, 2010, o mais importante festival de teatro do país. Antes de estrear em Paris, onde foi vista por 8100 pessoas em duas semanas, "Sobre o conceito do rosto do filho de Deus" tinha sido apresentada com sucesso e sob protestos de católicos integristas no Festival de Teatro de Avignon, na França, em julho deste ano.
Antes da França, a peça já fizera uma carreira de sucesso na Alemanha, Bélgica, Noruega, Inglaterra, Espanha, Rússia, Holanda, Grécia, Suíça, Itália e Polônia. Em nenhum desses países houve qualquer tentativa de impedir a representação como aconteceu em Paris e em Avignon, uma prova de que os católicos integristas franceses são muito mais integristas que os da Itália e mesmo da Espanha. Não é de admirar no país que produziu o reacionaríssimo Monsenhor Lefebvre, que se opôs ao concílio Vaticano II e foi excomungado por Roma.
No final da temporada parisiense, dia 6 de novembro, a peça prosseguiu sua carreira em Munique, no Spielart Festival, dias 24 e 25 de novembro, no Münchner Kammerspiele ; em Villeneuve d'Asq,  29 et 30 de novembro ; em Milão, será vista de 24 a 28 de janeiro de 2012 ; em Antuérpia, de 1 a 5 de fevereiro de 2012. Em março, a peça volta à Itália e será apresentada em Casalecchio dias 17 e 18 de março.
Não há previsão de apresentações no Brasil.

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