Todas as pesquisas e projeções de
transferência de votos do primeiro para o segundo turno são passíveis de erro. Enquanto
o resultado oficial não for divulgado, às 20 horas deste domingo, dia 6, todos
os fantasmas são possíveis. O ator e diretor de cinema belga Lucas Belvaux disse
ao Libération que tem um pesadelo :
“neste domingo o presidente atual é reeleito com 50,001% dos votos”.
Os institutos de pesquisa erraram em 2002 e não previram o segundo turno com Jacques Chirac e Jean-Marie Le
Pen. Apontaram Chirac e Lionel Jospin no segundo turno. Num ímpeto de rejeição
das ideias fascistas de Le Pen e apoio aos valores republicanos representados
por Chirac, milhões de franceses de esquerda e de direita foram às ruas dia 1°
de maio de 2002 dizer « Não » às ideias do Front National. Foi um dia histórico e
emocionante.
O resultado todos conhecem :
Jacques Chirac foi eleito no segundo turno com 82% dos votos de todo o espectro
politico francês. Apesar de reeleito presidente com
votos de comunistas e socialistas que marcaram a rejeição a Le Pen, Chirac não
teve a grandeza de fazer um governo de união nacional. Em seu livro de memórias
lançado há dois anos ele disse lamentar esse erro. Continuou a governar com seu
clã, a direita republicana francesa, e preparou a eleição de 2007 de um de seus
ministros, o (espera-se) futuro desempregado Nicolas Sarkozy.
O 1° de Maio é de esquerda ou de direita ?
No dia 1° de maio em Paris o céu estava azul e o sol
brilhou o dia inteiro, apesar da temperatura amena. Na capital e nas principais
cidades da França, os franceses de esquerda festejaram, como de hábito, o dia
do trabalhador. Ou dia do trabalho, que tem uma história remota de lutas e
reivindicações dos trabalhadores.
Em Paris, a passeata organizada pelos sindicatos e partidos
de esquerda saiu de Denfert Rochereau e desceu os Boulevares Saint-Michel e
Saint-Germain para se dirigir à Place de la Bastille. As passeatas ou manifs são meticulosamente organizadas
com reivindicações de diferentes grupos da sociedade, e também de sindicalistas
de outros países. A manif é um
momento de reunião de gente de todas as origens e idades em torno da defesa dos
oprimidos do mundo inteiro, como os palestinos,
do ideal de justiça social e de reivindicações de liberté, égalité, fraternité. Na manif, o humor e a crítica espelham a criatividade dos franceses.
do ideal de justiça social e de reivindicações de liberté, égalité, fraternité. Na manif, o humor e a crítica espelham a criatividade dos franceses.
Todos os partidos de esquerda desfilaram com suas
bandeiras e seus slogans defendendo desde os sans-papiers até o povo sírio. As
diferentes « alas » desfilam com as bandeiras dos partidos, algumas
têm música, outras repetem slogans reivindicatórios. Este ano havia uma
batucada brasileira.
Como todos os anos, o Front National, o partido de
extrema-direita fundado por Jean-Marie Le Pen, fez uma grande festa-comício no dia 1° de maio,
para homenagear Joana d’Arc, que simboliza para eles a pátria, a nação
francesa.
Para não ficar ausente do primeiro de maio, Sarkozy
resolveu lançar um desafio à esquerda e convocou seus militantes a festejar o
dia do trabalho, mas do « verdadeiro trabalho » num comício na Place
du Trocadéro. Era uma maneira de declarar a guerra contra os sindicatos que em
sua maioria convocaram os eleitores a votar no PS no segundo turno « para
virar a página do sarkozysmo ».
O sentido do « vrai travail » passou a ser
comentado, analisado, dissecado por todos os jornalistas políticos e o
presidente e seus ministros tiveram que explicar que a expressão não foi das « mais
felizes ».
Ao me dedicar o jornal Siné mensuel, o cartunista Mric resolveu gozar Sarkozy : desenhou uma caricatura de Sarko dizendo que « Lula c’est pas du vrai ». O velho e combativo Siné, que estava na manif autografando seu jornal, e se locomove com um respirador ligado no aparelho de oxigênio, apenas assinou e desenhou um coração.
Casse-toi, pov’
con
Logo no início de seu mandato, um dia o presidente
Sarkozy estava no Salão da Agricultura, uma passage obrigatória para os presidentes
franceses e tentou dar a mão a alguém que retirou a mão. Sem se dar conta que estava acompanhado de
jornalistas, câmeras e microfones, ele disse uma frase grosseira : « Casse-toi
pauvre con » (Dá o fora, cretino).
Essa frase se voltou contra ele pois passou a ser
usada em todas as manifestações com uma ortografia que reproduz a linguagem
falada : « Casse-toi pov’ con »
Companheira
de e não mulher de
Caso se confirmem as pesquisas e François Hollande seja eleito, ele será
o segundo socialista a ocupar o Palácio do Eliseu durante a Quinta República
(que começou em 1958). François Mitterrand, que governou por dois mandatos de
sete anos, é a grande referência do virtual presidente que, se eleito,
governará por cinco anos, a atual duração do mandato presidencial.
Os tempos mudaram. Se eleito, Hollande será o primeiro presidente francês
a tomar posse tendo ao lado uma mulher com quem não é casado oficialmente.
Ciosos de precisão, os franceses, tanto na imprensa quanto em conversas
privadas, somente chamam de femme de
ou mari de uma pessoa que é casada
oficialmente. A atual compagne de
François Hollande é a jornalista Valérie Trierweiler. François Hollande também
viveu maritalmente por mais de vinte anos com Ségolène Royal, com quem teve
quatro filhos, sem ser casado. Ele deve ser alérgico a casamento.
Outro sinal dos tempos : Sarkozy foi o primeiro presidente francês a
se divorciar e a se casar no exercício do mandato. E foi também o primeiro
presidente eleito a ter pai e mãe vivos. Foi também o primeiro presidente a ser
pai durante o mandato. Sua filha com Carla Bruni-Sarkozy nunca foi fotografada,
o que não causa nenhuma surpresa num país em que a vida privada dos políticos não
interessa a ninguém.
Aliás, li ontem que Vladimir Putin tem duas filhas que nunca apareceram
em público. Os anglo-saxãos estão no extremo oposto dos russos e dos franceses
pois não somente exibem suas mulheres e filhos como os utilizam para construir
uma imagem de proximidade e identificação com os eleitores.
Contre-verité :
suave eufemismo para men-ti-ra
No debate entre François Hollande e Nicolas Sarkozy, na quarta-feira, dia
2 de maio, visto por mais de 17 milhões de franceses, o futuro homem de
negócios (ele disse que se perdesse iria « faire de l’argent », com
toda a vulgaridade que lhe é própria) distorceu a verdade e desmentiu Hollande
quando este dizia a verdade. Enfim, desenrolou argumentos de um típico homem de
direita, tentando assustar seus eleitores com o futuro negro que espera a França,
caso os franceses elejam um socialista neste domingo. No debate, Sarkozy
mentiu. Mentiu muito. Distorceu os fatos e tentou torpedear o programa de
Hollande já que sua herança é indefensável. Tentou convencer os franceses que tudo
o que fez foi magnífico e o que não foi
feito foi culpa da crise mundial.
No dia seguinte, os jornais mais sérios dedicaram grande espaço para
colocar o pingo nos is. Rue89, um excelente
site jornalístico fez uma matéria especial com as pequenas e as grandes
mentiras do debate. Libération, Le Monde e
L’Humanité fizeram o mesmo.
Detalhe : a maioria dos jornalistas, prefere eufemisticamente falar
de « contre-vérité », em vez de « mensonge ». Não é o caso
do presidente Sarkozy que, sem nuances, acusou mais de uma vez seu debatedor de
mentir ou de ser mentiroso. Os jornais provaram que sua relação com a verdade é
… problemática. Aliás, em seus discursos, uma das frases preferidas desse conhecido
pinóquio é : « Je vais vous dire la vérité »
Sarkozy prefere « cães de guarda »
(texto publicado no
Observatório da Imprensa dia 4-05-2012)
Uma coisa é certa : se
François Hollande for eleito presidente dia 6 de maio, o audiovisual público
francês voltará a ser independente e a funcionar sem o contrôle total do
presidente da República.
Apesar
de a França não ser uma ditadura nem uma república de bananas, se o vencedor
for Nicolas Sarkozy (contrariando as pesquisas de opinião que o apontam como
vencido no segundo turno), tudo permanece como ele mesmo dediciu, isto é, o
presidente da República continuará a indicar o presidente da holding France
Télévision e das estações de TV, além do presidente de Radio France, que agrupa
todas as rádios públicas.
Por
que tanta certeza ? A revista
Télérama redigiu um Apelo pour um
audiovisual independente e o submeteu à assinatura dos dez candidatos ao
primeiro turno da eleição presidencial. Nove
assinaram o Apelo, menos um, Nicolas Sarkozy. Et pour cause, foi ele mesmo quem decidiu no seu primeiro mandato,
em março de 2009, subordinar a indicação e nomeação dos dirigentes do
audiovisual público ao presidente da República, fazendo dos jornalistas do
audiovisual verdadeiros « chiens de garde » de seus interesses. Recentemente,
um documentário extraordinariamente bem feito, « Les nouveaux chiens de garde »,
mostrou como funciona a conivência entre jornalistas e o poder no tratamento da
informação, de forma a que esteja sempre em sintonia com os interesses dos
donos do poder.
Télérama
considera que ao se recusar a assinar o apelo, Sarkozy prova que continua a « defender
uma concepção arcaica dos laços entre o executivo e as redes de TV e rádios que
pertencem ao Estado ». A revista critica a reforma do poderoso audiovisual
público francês feita por Sarkozy em 2009, por pensar que ela marcou « um
recuo das liberdades públicas e fez pairar uma suspeita permanente sobre
todas as decisões » tomadas pelos diretores nomeados, seja da TV seja das
rádios. O poderoso audiovisual público francês é composto por France Télévision
(que compreende os canais Outre-Mer 1ere, France 2, France 3, France 4, France
5 e France Ô, que representam 40% da audiência dos franceses) e Radio France
(cinco estações de rádio que estão entre as de maiores audiências do país),
além das estações de rádio que fazem programas em língua estrangeira (Radio
France Internationale) e o canal de TV all news intenacional (France 24).
A seguir, a íntegra do Apelo por
um audiovisual público independente, redigido em abril pela revista Télérama:
“O presidente da República
nomeia ele próprio o presidente de France Télévisions, de Radio France e do
Audiovisual Internacional da França (RFI e France 24), conforme a lei votada em
março de 2009. Télérama denuncia esta lei desde que foi adotada pois ela
restabeleceu, pela primeira vez desde 1982, um laço de dependência direta entre
o executivo e os dirigentes das redes de TV e das estações de rádios públicas. Esse modo de
nomeação constitui um recuo das liberdades públicas. Deve ser suprimido e
substituído por um outro processo que garanta a independência dos presidentes
do audiovisual público e das sociedades que eles dirigem. Tanto
na televisão quando no rádio ».
A vitória de François Hollande terá
como imediata consequência a total independência do audiovisual público
francês. E os atuais « chiens de garde », os jornalistas escolhidos
pelo próprio presidente para defenderem os interesses do hóspede do Palácio do
Eliseu, poderão ser substituídos por jornalistas pagos pelo dinheiro do
contribuinte para informar dentro da deontologia da profissão e para criticar,
inclusive o presidente da República e seus atos, quando julgarem conveniente. E os
que permanecerem em seus cargos não se sentirão mais, daqui para a frente, na
obrigação de dizerem « amém » a todos os atos e decisões do poder.
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