Henri Salvador: “Sou apenas um pequeno compositor comparado a Jobim”
Leneide Duarte-Plon
Morreu Henri Salvador. O cantor e compositor francês tinha 90 anos. Era um artista talentosíssimo, tinha grande presença no palco e ocupou um espaço importante por 60 anos na história da música francesa.
Entrevistei-o no ano passado. Foi uma espécie de obrigação que me impus para desmascarar a grande impostura do artista, responsável pelo mito que toda a imprensa francesa divulga de que ele foi o “criador da bossa nova brasileira”.
A primeira vez que vi essa história ligando seu nome à Bossa Nova foi quando Henri Salvador foi apresentado no ano passado num especial ao vivo da TV sobre a canção francesa (direto do Zenith ) como o "inventor da bossa nova brasileira". Ao chegar ao palco e conversar com a apresentadora ele disse que sua música Dans mon île, de 1957, foi usada num filme e "serviu de inspiração para Tom Jobim, que foi ver o filme, para criar a bossa nova". Salvador esqueceu de contar ao João Gilberto, o verdadeiro criador da batida da bossa nova, ao Ruy Castro e a todos os historiadores do movimento.
Na hora de cantar uma música no mesmo programa "especial sobre a canção francesa", Salvador canta em francês "Eu sei que vou te amar". Mas nem ele nem a apresentadora dizem que é de Tom Jobim e Vinícius de Moraes. Aplaudido de pé pelo auditório francês do Zenith, Salvador cantou Tom e Vinicius sem mencionar que ia cantar uma música que não era sua. Noventa e nove por cento daquele público, que desconhece nossa música como quase todos os franceses, devia jurar que ouvia o mais puro Henri Salvador um autêntico representante da "canção francesa". Ele aliás gravou no Brasil seu último disco, “Révérence”, lançado no ano passado em Paris.
Em outra reportagem no Le Monde há alguns meses ele já dissera que Dans mon île fora "a inspiração do Tom para ele desacelerar o tempo do samba."
Não é de admirar que na Wikipédia (enciclopédia virtual em que qualquer pessoa pode escrever) a informação persista. Ainda que no condicional.
Seu amigo Moustaki, que traduziu "Águas de Março" para o francês, com Tom Jobim, me disse: "Acho que Salvador acredita sinceramente nisso, mas não estou de acordo".
Com a morte do cantor e compositor, esse folclore de que ele foi o inventor da bossa nova voltou a ser repetido nos telejornais, nas rádios e nos jornais. Todos louvam o grande artista, “inventor da bossa nova brasileira”.
Abaixo um trecho da longa entrevista publicada na Folha de São Paulo em 16 de março de 2007. No diálogo que travamos consegui levá-lo a admitir o absurdo que é essa história que todos contam em Paris de que ele foi o “criador da bossa nova”.
Pena que os jornalistas franceses não lêem a Folha de São Paulo.
Folha - No especial de televisão para lembrar cem anos de canção francesa, você só cantou uma música, e foi "Eu Sei que Vou te Amar", de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, em versão de Georges Moustaki. Por que você escolheu esta canção num especial sobre a canção francesa?
Henri Salvador - Foi uma feliz coincidência. Quando eu fui ao Brasil, descobri essa canção, que eu não conhecia. Perguntei a Moustaki e ele me disse que ela é um enorme sucesso no Brasil. É uma bela composição que tem uma lógica musical muito linda.
Folha - E foi você quem a escolheu para a festa da canção francesa?
Henri Salvador - Sim. Eu escutei um disco de Jobim maravilhoso, super de vanguarda, com uma grande orquestra, quase sinfônico, formidável. Mas eu não sabia que ele tinha ido tão longe. Era realmente um maravilhoso compositor, lamento não tê-lo conhecido. Eu moro perto do Olympia e eles vieram aqui, Jobim, Vinicius e um grupo. E eu não pude ir.
Folha - Você não conheceu Tom nem Vinicius?
Henri Salvador – Não.
Folha - Mas você conhece João Gilberto?
Henri Salvador – Sim, fui vê-lo em Paris.
Folha - Você conhece também Caetano Veloso, que canta "Dans Mon Île" sempre que vem a Paris.
Henri Salvador - Sim, foi ele quem quis a canção "Eu Sei que Vou te Amar" no meu novo disco.
Folha - Numa longa matéria sobre a bossa nova, "Bossa nova, une passion française", o "Le Monde" escreveu: "Henri Salvador foi, como ele diz, o inventor da bossa nova com sua canção 'Dans Mon Île'? Tom Jobim teria tido a idéia de desacelerar o 'tempo' do samba depois de ter visto o filme italiano para o qual foi composto este bolero". O que você pensa dessa história e como você explica a batida da guitarra de João Gilberto e a harmonia ultra-sofisticada da bossa-nova, que Tom Jobim atribuía a uma mistura do samba-canção com o jazz?
Henri Salvador - Foi um grande músico brasileiro, cujo nome não lembro, quem me disse: "Você sabe que você está na origem da bossa nova?" Eu disse: "Não é possível". Ele me disse: "O Tom Jobim ouviu sua música 'Dans Mon Île' num filme italiano e disse: "É isso que tenho que fazer, desacelerar o “tempo” do samba".
Folha - Não seria um exagero dizer que você é o “inventor” da bossa nova?
Henri Salvador - Não sou o inventor. Foi Jobim quem inventou a bossa nova.
Folha - No início, foi João Gilberto quem inventou a batida do violão e uma nova maneira de cantar que foi batizada de bossa nova. Ele gravou um disco com Elizeth Cardoso e Tom Jobim, no qual tocava violão em duas faixas, de maneira totalmente nova.
Henri Salvador – Verdade? Eu não sabia.
Folha - A imprensa francesa repete muito essa história que atribui a você a invenção da bossa nova. Isso o incomoda?
Henri Salvador - Eles estão errados. Não posso me atribuir esse fato, não fui eu. Não gosto que digam que sou o inventor da bossa nova. Não sou capaz, sou apenas um pequeno compositor comparado a Jobim. É um exagero, sou um pequeno melodista da canção francesa. Jobim é um gigante. Fiquei contente quando fui ao Brasil no ano passado, ao ver que o aeroporto do Rio se chama Jobim. Nunca isso aconteceria na França... Mas tive um choque ao ouvir um saxofonista que tocava mas era uma ... merda. O aeroporto se chama Jobim e não se põe alguém que saiba tocar bem para executar as belas músicas de Jobim. Isso me deixou triste.
quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008
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