sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010
Véu e erotismo
Tarde de verão em Montreux, Suiça
Foto de Leneide Duarte-Plon
O véu das mulheres muçulmanas continua a ser debatido na França. Três centenas de mulheres que usam o véu integral (nicab, chamado indevidamente de burca por alguns jornais) servem de pretexto para desviar o debate dos reais problemas do país : o desemprego, a falta de habitações decentes para todos os franceses e um certo desencanto com os políticos, a um mês das eleições regionais. Nessa eleição de março, os franceses vão eleger os presidentes das 22 regiões. Atualmente, 20 dos presidentes são socialistas.
Segundo Georges Vigarello, grande especialista da história do corpo, autor do livro “Love me”, nos países muçulmanos sempre existiu uma estética do véu, da retirada do véu, do erotismo do rosto e do olhar. Pelo olhar, tudo pode ser dito. Daí a preocupação de algumas seitas muçulmanas de cobrirem totalmente as mulheres, inclusive os olhos.
Um dado curioso: a República islâmica do Irã, onde as mulheres só podem mostrar em público as mãos e o rosto, tem o mais alto índice de operações plásticas do nariz do mundo. Já que só resta o rosto, as iranianas se maquiam muito e fazem o que podem para valorizá-lo.
Depois que recebeu o relatório da comissão parlamentar que estudou o problema, o governo francês pretende editar uma lei para proibir o uso do véu integral no espaço público. Mas vai com calma para não correr o risco de votar uma lei que pode vir a ser considerada inconstitucional pelo Conselho Constitucional, guardião da Constituição.
A propósito: o prêmio Nobel da paz de 2006, o indiano Muhammad Yunus, criador do microcrédito, é contra a proibição. O jornal Libération, o convidou, como já fez outras vezes com filósofos como Alain Badiou, a participar da edição do jornal de 4 de Janeiro. Todas as páginas tinham um comentário de Yunus sobre a principal notícia da página. Ele conta que no início de sua atividade com o microcrédito, em Bangladesh, só emprestava a mulheres.
“Todo mundo era contra e dizia que eu iria destruir a cultura de Bangladesh. Depois, ganhei o Nobel. Não compreendo que a França queira proibir o véu integral. Para mim, a mulher deve ter a liberdade de escolher”.
Arte islâmica e sonho de paz
Até o dia 14 de março quem passar por Paris pode ver uma das mais maravilhosas exposições dos museus franceses: Arts de l’Islam, no Instituto do Mundo Árabe, cujo prédio de Jean Nouvel já vale a visita. Todas as obras expostas pertencem à coleção do milionário Nasser David Khalili, um judeu iraniano que vive na Inglaterra desde 1978. O milionário colecionador possui 20 mil objetos em sua coleção de arte islâmica, milita para a paz e a compreensão entre judeus e muçulmanos e para isso criou a Fundação Maimônidas.
A exposição Artes do Islã consta de 500 obras de arte da coleção Khalili provenientes de diversos países islâmicos : desenhos, objetos de uso quotidiano, como vasos, cofres, jóias, ligados ou não à religião muçulmana (há também muitas cópias ilustradas do Corão, datando de diversos séculos com iluminuras absolutamente fantásticas). Os objetos são provenientes da Síria, do Irã, do Iraque, do Afeganistão, da Tunisia, do Marrocos e da Argélia, entre outros. Para os curadores da mostra, Aurélie Clémente-Ruiz e Eric Delpont, duas obras já valeriam a visita: o Shah Namah, Livro dos Reis, a grande epopéia persa, de 60 mil versos e 258 miniaturas realizadas entre 1520 e 1540 pelos melhores artistas e notável pela precisão do desenho, infinita nuance de cores e sutileza das sombras.
O outro é o manuscrito original da história universal de Rashid-Al-Din (1247-1318), um judeu de Hamadan, que se converteu ao Islã para ser vizir. Al-Din era um estudioso de teologia, história e agricultura e é o autor do Jami al-tazarikh, “o compilador da História”, escrito em persa e publicado em Tabriz, no Irã, em 1314-1315. As páginas expostas são da edição original e tratam dos costumes, da geografia, guerras, mitologias e crenças. As cenas ilustradas tratam da vida de Buda e da Bíblia : a Arca de Noé, Jonas e a baleia ou a morte de Moisés no monte Nebo.
Guerre en Orient ou paix en Méditerranée ?
O filósofo Etienne Balibar e o físico Jean-Marc Lévy-Leblond assinaram um texto com esse título no Le Monde em 2006, antes, portanto, da guerra que Israel fez contra Gaza, para aproveitar os últimos dias de governo do “padrinho” da colonização, George Bush, em dezembro de 2008 e começo de 2009.
Balibar e Lévy dizem em certo trecho: “O Estado sionista desenvolveu uma forma de democracia política (regime parlamentar, garantias constitucionais, liberdade de opinião) e atinge, apesar de grandes desigualdades sociais, um nível de sucesso econômico e cultural elevado (graças também a uma ajuda americana maciça e permanente como nenhum outro Estado jamais teve). Mas ele instituiu nos diferentes territórios que controla uma forma de apartheid (que o geógrafo Oren Yiftachel chama de etnocracia) cuja condição de existência é a completa prisão das populações dominadas, o controle de seus recursos materiais, a destruição progressiva de suas instituições culturais e a violência assassina contra suas ações de resistência mesmo não-violentas e contra suas direções políticas autônomas”.
Esta semana, o jornal L’Humanité (comunista) publicou uma longa entrevista com Gideon Levy, jornalista do jornal israelense Haaretz, de passagem por Paris para lançar um livro com suas crônicas. O título da entrevista era: “Como falar de paz e construir colônias?”.
Comentário e trechos da entrevista ficam para a semana que vem.
Água, um bem comum da humanidade
Vi Danièle Mitterrand sendo entrevistada na TV sobre seu último livro. Que mulher admirável. A viúva de François Mitterrand criou a ONG France Libertés que milita no mundo inteiro por um mundo mais justo, a começar pelo direito de todo ser humano de acesso à água potável, como um direito inalienável. A luta de Danièle Mitterrand é no sentido de fazer com que os que vivem da exploração da água como uma mercadoria cessem de ganhar dinheiro com o que ela considera um bem comum da humanidade.
Os principais pontos dessa luta são: a instauração de um governo público internacional para a gestão e o acesso à água para todos; auxílio a todas as prefeituras que quiserem aderir a essa gestão pública democrática e transparente da água.
Aos 86 anos, Danièle Mitterrand continua sua militância política pela justiça social.
O bonapartismo de Sarkozy
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Véu integral : proibido proibir
Mulheres que se escondem por trás de alguns metros de tecido podem representar uma ameaça à République Française? Quem são? Perigosas terroristas? Não, apenas poucas centenas de mulheres muçulmanas que usam o véu integral chamado indistintamente de burqa (burca) ou niqab (nicab) pela imprensa. Muitos dos articulistas chamados a escrever sobre o tema na mídia francesa veem no debate uma islamofobia que não é admitida por quem defende uma lei que proibirá o uso do véu integral. Os defensores da lei alertam contra o fundamentalismo islâmico do qual essas mulheres seriam a ponta do iceberg.
Burca é o véu total, aquele que faz uma muçulmana parecer um fantasma com uma pequena tela no lugar dos olhos. Esse é o “uniforme” das mulheres do Afeganistão, quase sempre azul, imposto pelos fundamentalistas talibãs. Nicab é outro tipo de véu muçulmano total, em geral preto, que cobre o corpo e a cabeça, deixando uma fina abertura para os olhos. Até mesmo as mãos são cobertas com luvas pretas. Nenhum centímetro de pele pode estar à mostra.
A imprensa francesa e os políticos resolveram batizar o nicab definitivamente de “burca” e foi essa denominação que se impôs para designar o véu negro que deixa apenas os olhos de fora. Mas a verdadeira burca afegã é tão rara na França quanto um urso polar nas ruas do Rio de Janeiro.
No ano passado, os políticos franceses, sob a iniciativa de um deputado comunista, resolveram criar uma comissão parlamentar para estudar o assunto e discutir a oportunidade de uma lei proibindo o véu total (nicab), rebatizado de “burca”.
A comissão parlamentar se reuniu durante seis meses (de junho de 2009 a 26 de janeiro de 2010), audicionou mulheres muçulmanas, teólogos, sociólogos, associações feministas e imãs (religiosos muçulmanos). No dia 26 de janeiro, a comissão divulgou um relatório que preconiza uma lei proibindo o véu integral nos serviços públicos e nos transportes.
Durante seis meses os jornais e as revistas não pararam de discutir o uso da “burca” nos espaços públicos (escolas, universidades, transportes públicos). Não havia crise, desemprego, nada se passava de importante no país. O futuro da França depende de uma lei proibindo a burca.
Há argumentos para proibir o véu total: a segurança pública, a dignidade e a liberdade das mulheres. E há argumentos para liberar seu uso : a liberdade individual de se servir de símbolos religiosos para professar uma fé, o caráter inofensivo do uso de uma determinada vestimenta.
Confesso que ao ver uma mulher totalmente escondida sob um manto preto tenho pena dela por ter interiorizado a mentalidade misógina da religião muçulmana. Mas e a misoginia da religião judaica que relega a mulher a um papel subalterno? Não foi o judaísmo que criou Eva, o agente da tentação de Adão? E a misoginia da igreja católica que afastou as mulheres de toda participação na hierarquia da igreja e que impede as mulheres de dirigirem uma missa? A misoginia precisa ser combatida com pedagogia e não com leis restritivas. As mulheres devem se libertar pela razão, pelos estudos, pela argumentação. Proibir o véu é proibir a proibição de mostrar o corpo feminino ao olhar masculino.
Não seria mais fácil fazer pedagogia para libertar as mulheres do jugo machista de todas as religiões mostrando que o véu já é ele mesmo uma proibição ao olhar masculino? Esse mesmo machismo original de todos os mitos e interditos que veem na mulher e no seu corpo a origem de todo mal? O corpo da mulher causa medo aos homens e por isso é preciso escondê-lo. Para quem se interessa pelo assunto recomendo o excelente livro “La psychanalyse à l'épreuve de l'Islam”, do psicanalista Fethi Benslama.
O presidente Sarkozy chegou a declarar que “a burca não tem seu lugar na França em nome da dignidade das mulheres”. Em nome da liberdade e da dignidade da mulher muitas associações feministas se declaram favoráveis à lei proibindo o véu. As mulheres que usam o véu integral são vistas como oprimidas por fundamentalistas islâmicos.
Para combater o fundamentalismo islâmico, a França pode tomar a pior decisão. Ao proibir o uso do véu total, a lei pode impor a prisão domiciliar a muitas mulheres que se recusarem a retirar o véu. Muitas declaram que preferem não mais sair de casa a retirar o véu. Outras falam em emigrar para países islâmicos. Outras, como Oum Aldina recorrerão ao Parlamento Europeu contra uma lei que julgam liberticida:
“A lei pode ser votada mas não tirarei meu véu”, diz essa muçulmana que mora na França e usa o nicab que só deixa os olhos à mostra. Por cima, ela ainda usa um outro véu de tecido negro muito fino. Oum Aldina promete ir buscar Justiça no Parlamento Europeu pela liberdade de usar o véu integral. “Ninguém pode me impedir de me vestir como eu decidi”.
O “New York Times” fez um editorial criticando a possível adoção de uma lei francesa. Certamente ela não vai passar despercebida pelos fundamentalistas islâmicos que terão mais um motivo para se sentirem perseguidos no Ocidente.
Daniel Bensaïd
Ele pertenceu a uma geração militante que participou ativamente de maio de 68 na França. O filósofo marxista Daniel Bensaïd morreu este ano em Paris, aos 64 anos sem ter abandonado a bandeira da resistência, foi até morrer um defensor do marxismo e um crítico do capitalismo. Autor de diversos livros sobre marxismo, um dos fundadores com Alain Krivine da “Liga Comunista Revolucionária”, rebatizado no ano passado de Novo Partido Anticapitalista, Bensaïd mereceu um elogio de meia hora no seminário mensal de duas horas que o filósofo Alain Badiou dá na Ecole Normale Supérieure. Badiou saudou a coerência do “companheiro distante”, a inteligência e a luta do filósofo desaparecido. Badiou foi maoísta na juventude e Bensaïd, trotskista.
Um dos últimos trabalhos de Daniel Bensaïd foi o livro “Un nouveau théologien B-H Lévy”, uma resposta ao livro de Bernard-Henri Lévy “Ce grand cadavre à la renverse”. Além disso, ele escreveu o prefácio da nova edição do livro de Karl Marx “Sur la question juive” (Sobre a questão judaica, La Fabrique, Paris, 2009).
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Um comentário:
Eu venho acompanhando esse debate sobre a burca desde o começo e achava que era uma coisa muito grave. Mas depois que apareceu esse numero de que somente 300 mulheres na França toda usam a burca, pensei que eles estavam fazendo tempestade em copo d'agua. A questão é mais simbolica do que pratica. De qualquer forma, sou contra a proibição, porque as mulheres que usam burca fazem isso pra provocar a sociedade acima de tudo. Muito mais do que religioso, esse é um problema social. E quanto mais proibirem, mais mulheres vão protestar pelo direito de se vestir como quiser. Eu particularmente acho que essas pessoas se preocupam demais em desafiar a sociedade francesa enquanto muçulmanas e esquecem de uma luta muito maior, a das mulheres. Elas pisam em todos os direitos feministas que conseguimos ao longo dos séculos.
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