sexta-feira, 5 de março de 2010

BHL, a loucura de Kant e o botulismo


O poder midiático do filósofo Bernard-Henri Lévy (BHL para a imprensa) na França é inesgotável e se afirma a cada novo livro. Dessa vez, porém, ele não podia prever o desastre.
Em fevereiro, ele reafirmou seu talento para ocupar a mídia: lançando De la guerre en philosophie e Pièces d’identité (coletânea de artigos) todos os principais jornais, revistas, programas de rádio e televisão convidaram BHL para falar de seus livros. Se não fosse uma revelação desconcertante do Nouvel Observateur BHL estaria no melhor dos mundos.
Na página 122 do primeiro livro, ele trata da “loucura” de Kant se apoiando no livro de um filósofo kantiano, um certo Jean-Baptiste Botul, autor de La vie sexuelle d’Emmanuel Kant. Detalhe: Botul (cujo nome é propositalmente próximo da palavra “botulismo”, doença mortal provocada por uma toxina) é um personagem de ficção do jornalista do Canard Enchaîné, formado em filosofia, Frédéric Pagès. O conteúdo do livro, assim como o autor Botul, é uma criação da imaginação de Pagès e não uma biografia sexual de Kant. Nessa biografia imaginária de Kant, inventada em 1996 por Pagès, informa-se que Botul fez uma série de conferências, logo depois da segunda guerra mundial, aos neokantianos do Paraguai (!). A Associação dos Amigos de Botul, que organiza conferências e leituras ajudou a perpetuar a ficção.
As conferências aos neokantianos do Paraguai não despertaram nenhuma suspeita no pobre BHL, descrito por um jornalista parisiense como “um dândi riquíssimo que vive em hotéis de luxo e viaja em jatos particulares”. Os detratores de Lévy, que não são poucos, receberam o furo do Nouvel Observateur como um presente dos deuses. O filósofo mais adulado pela imprensa francesa, não o mais respeitado por seus pares, caiu numa cilada e incluiu em sua bibliografia um livro sobre Kant escrito por um filósofo que nunca existiu ! Ele ja citara o mesmo Jean-Baptiste Botul na conferência que deu origem ao livro, na École Normale Supérieure, onde Lévy foi aluno de Jacques Derrida e Louis Althusser.
A imprensa do mundo inteiro comentou a gafe monumental do filósofo. Desapontado, Lévy tentou minimizar o iceberg no qual seu Titanic naufragou. Depois, irritado, disse que essa história só foi engraçada no início.
Difícil acreditar. BHL se leva muito a sério para rir do seu ridículo.

Escravidão light
24 horas sem eles



Eles são os novos párias do mundo globalizado. A ilusória liberdade de ir e vir termina quando resolvem morar num país estrangeiro sem papeis, isto é na clandestinidade, e, cúmulo dos cúmulos, decidem trabalhar para comer e morar! Eles são milhões em todo o mundo e a França é um dos países europeus onde as leis repressivas se sucedem cada vez mais duras para facilitar a expulsão de estrangeiros (29 mil expulsos no ano passado) e reprimir qualquer ajuda a esses homens e mulheres “sem papeis” (sans papiers).
O estrangeiro sem papeis é o novo pária do mundo globalizado. No ano passado, para fugir ao controle da polícia que batia à sua porta, uma chinesa se jogou pela janela em Paris. O Estado francês economizou uma vaga no avião que levaria chineses de volta à China. O filme Welcome mostra como os cidadãos franceses que ajudam ou acolhem esses estrangeiros são passíveis de controle policial e estão sujeitos a sanções. As associações de ajuda aos estrangeiros apelidaram esse delito de “délit de solidarité”.
No dia 1° de março deste ano, dia de entrada em vigor na França da Lei Ceseda (Code de l’entrée et du séjour des étrangers et du droit d’asile) um coletivo de imigrantes resolveu parar por 24 horas : não trabalharam nem consumiram nada. Em Paris onde o movimento fez passeata com a imagem de um santo chamado “Saint Papier”, muitos cidadãos com papeis se solidarizaram: também não trabalharam nem compraram nada naquele dia.
Essa paralisação, que se estendeu a Roma, Nápoles, Bolonha e Lyon, tinha como objetivo mostrar o peso dos imigrantes na economia. Segundo dados do recenseamento de 2007, 2,4 milhões de imigrantes residentes na França trabalhavam ou se declaravam desempregados. Eles representam 8,6% da população ativa.

Milhares de trabalhadores sem papeis da França estão lutando há meses por meio de passeatas e greve (alguns estão em greve desde outubro) para terem direito ao título de permanência na França. Eles são assalariados, pagam impostos como qualquer trabalhador mas por serem ilegais são alvo de exploração de cerca de 2300 empresas. Por saberem da fragilidade dessas pessoas diante da lei, os empresários (donos de restaurantes, empresas de construção etc) oferecem salários mais baixos e se aproveitam da mão de obra barata que representam os sem papeis. Uma forma de escravidão light surgiu. Os sem papeis não podem denunciar a exploração dos patrões e em caso de desemprego não têm direito ao auxílio desemprego. E vivem dia e noite com o pavor da expulsão.
Alguns jovens afegãos recentemente foram expulsos de volta ao Afeganistão (o verbo expulsar é eufemisticamente transformado em reconduire à la frontière, ou seja, reconduzir à fronteira), apesar do protesto das associações humanitárias, que denunciam a ilegalidade da ação da polícia de Sarkozy. Deportar estrangeiros para um país em guerra é contrário às leis internacionais de direito de asilo.
Em janeiro, um documento assinado por intelectuais franceses foi enviado ao presidente Sarkozy pedindo o fim do Ministério da Identidade Nacional e da Imigração, criado em 2007. Ele chamava o ministério de “monstro administrativo que implantou a xenofobia de Estado e fez a França ultrapassar um limite simbólico na transformação de sua cultura política”.

Mães chimpanzés ou leite em pó?

As mulheres que acham que podem conciliar maternidade com aleitamento e vida profissional ativa não digeriram o último livro de Elisabeth Badinter, Le conflit: la femme et la mère. Numa das dezenas de entrevistas a jornais, revistas, rádio e televisão desde que o livro foi lançado, Elisabeth Badinter chegou a comparar o aleitamento materno a “uma redução da mulher ao estágio de uma espécie animal, como se fôssemos todas chimpanzés fêmeas”.
Há quem tenha se dado ao trabalho de buscar na biografia da filósofa feminista a causa de sua animosidade contra o leite materno e as fraldas de pano, que ela qualifica como “o retorno do naturalismo”, um retrocesso para as mulheres. Como ela é uma grande acionista da empresa de publicidade Publicis, da qual é presidente do conselho, há quem veja nas suas posições mais que a defesa da libertação das mulheres. Haveria um interesse em defender as fraldas descartáveis, o leite em pó e o alimento em pote para bebê.
Outras ressaltam que Badinter nunca se opôs à utilização da imagem da mulher nua ou com pouca roupa – a mulher objeto, em suma - para vender desde iogurtes a perfumes passando por lingerie e eletrodomésticos. A publicidade, lembram, nunca foi atacada por Badinter por usar o corpo da mulher de forma quase pornográfica. Et pour cause.
* Fotos de Leneide Duarte-Plon - Passeatas em Paris em 2010 e 2008

3 comentários:

Celso Japiassu disse...

Leneide:
Elizabeth Badinter não é apenas grande acionista do Grupo Publicis, responsável pela publicidade da Nestlé. Ela é a dona, na qualidade de filha e herdeira do fundador, Marcel Bleustein-Blanchet.

lea maria aarão reis disse...

Leneide: v. chutou a bola da Badinter e Celso arrematou.
Que belos passes!

Leneide Duarte-Plon disse...

Celso, eu sei que ela é a dona, acionista majoritària e presidente do conselho. Acho meio suspeita essa preocupação dela com o naturalismo das mulheres.
Leneide