sexta-feira, 9 de abril de 2010

Lucian e Sigmund

“Quando a gente procura trabalho e é uma mulher, o melhor é ser bonita. Não sendo bonita, o melhor é ser homem”. Frase ouvida nos Estados gerais da mulher, organizado em março deste ano, em Paris, pela revista Elle, para comemorar os 40 anos do Mouvement de Libération des Femmes.

Freud, Lucian – o iconoclasta


O pintor inglês Lucian Freud, de 88 anos, pinta como seu avô abriu caminho para a descoberta da psicanálise: derrubando tabus. “Eu quero que a pintura seja carne”, diz o artista. Em sua pintura, o retrato não é sublime nem sublimado, os retratados são circunspectos, quase melancólicos. O nu em Lucian Freud é cru, muitas vezes chocante. E os modelos, longe de representarem ideais de beleza, são pessoas comuns, representados no atelier do artista em poses não convencionais em que os órgãos sexuais não se escondem pudicamente, a cena parece um instantâneo. Os quadros refletem a relação que existe entre Lucian Freud e seus personagens.
A maior exposição já feita em Paris de Lucian Freud, que veio de Londres para a inauguração, está no Beaubourg (Centre Georges Pompidou) até o dia 19 de julho. O portrait que o artista fez da rainha Elizabeth II não está na exposição de cerca de 50 quadros.

Freud, Sigmund – o visionário

A pedido de leitores, volto à famosa carta do criador da psicanálise sobre o sionismo.
Freud, que manteve uma longa correspondência com Einstein sobre a guerra e as pulsões que levam os homens a matar e exterminar seus semelhantes, nunca defendeu o sionismo. Ao contrário, manifestou-se contra a criação de um Estado para os judeus na Palestina. Uma carta na qual ele expressa claramente sua pouca simpatia pelo projeto sionista foi escondida deliberadamente pelos defensores da causa sionista até poucos anos atrás.
As cartas de Freud são um capítulo à parte em sua obra. A maior parte delas é conhecida e estudada exaustivamente. Outras, cerca de um terço, classificadas como confidenciais por seus descendentes e herdeiros, fazem parte do “Arquivo Freud” e encontram-se na Biblioteca do Congresso, em Washington.

A carta em que Freud faz restrições ao sionismo foi escrita em 26 de fevereiro de 1930 e endereçada a Chaim Koffler, membro da Fundação para a Reinstalação dos Judeus na Palestina (Keren Hayesod). Koffler havia pedido a Freud, como a outros intelectuais judeus, um texto de apoio à causa sionista. Traduzida por Jacques Le Rider para o francês, ela foi publicada pela revista Le Nouvel Observateur em dezembro de 2004, depois de ter sido publicada pelo jornal italiano Corriere della Sera, em julho de 2003. Em 1978, foi citada em inglês num artigo dedicado a Freud e a Herzl e em 1991, depois de ter sido mencionada em uma revista semanal argelina para mostrar que Freud não tinha simpatia pelo sionismo. A carta foi traduzida em inglês integralmente pelo psicanalista americano Peter Loewenberg para provar que Freud fora vencido pela História.
O texto da carta mostra o quanto Freud era cético em relação ao projeto sionista de reinstalação dos judeus na Palestina. Por isso mesmo, ela foi cuidadosamente escondida por tanto tempo para cumprir a promessa de Abraham Schwadron a Koffler de que “nenhum olho humano a veria”. Dada a autoridade moral do autor, a carta poderia ser uma pedra no caminho dos que construíam o projeto sionista.
Em um dos trechos, Freud diz: “não penso que a Palestina possa vir a tornar-se um Estado judaico”. Como lembra a historiadora da psicanálise Elisabeth Roudinesco, Freud combatia todas as formas de religião, inclusive o judaísmo. “Ele aceitava dificilmente a idéia de um Estado judaico viável pois tal Estado feito por e para os judeus não poderia ser, no seu entender, um Estado secular”. No final da carta, Freud fala do sionismo como de “uma esperança injustificada” e diz que não se sente capaz de exercer o papel de consolador de um povo “perturbado” por essa esperança.
Eis o texto que traduzo para o português a partir da tradução francesa de Le Rider:

Viena, 19 Berggasse,
26 de fevereiro de 1930.
Caro Doutor,
Não posso fazer o que o senhor deseja. Minha dificuldade em despertar o interesse do público por minha personalidade é impossível de superar e as circunstâncias críticas atuais não me parecem favorer essa empreitada. Quem quer influenciar o maior número de pessoas deve ter algo de empolgante a dizer, e isso meu julgamento pouco entusiasmado pelo sionismo não me permite. Tenho com certeza os melhores sentimentos de simpatia pelos esforços consentidos livremente, sinto-me orgulhoso pela nossa universidade de Jerusalém e me regozijo da prosperidade dos estabelecimentos dos nossos colonos. Mas, por outro lado, não penso que a Palestina possa vir a tornar-se um Estado judaico nem que o mundo cristão, como o mundo islâmico, possam um dia estar dispostos a confiar seus lugares santos aos cuidados dos judeus. Me pareceria mais sensato fundar uma pátria judaica sobre um solo não conotado historicamente; decerto, sei que para um objetivo tão racional, jamais seria possível suscitar a exaltação das massas nem a cooperação dos ricos. Admito também, com pesar, que o fanatismo irrealista de nossos compatriotas tenha sua parte de responsabilidade no despertar da desconfiança dos árabes. Não posso ter a mínima simpatia por uma piedade mal interpretada que faz de um pedaço do muro de Herodes uma relíquia nacional e por causa dela desafie os sentimentos dos habitantes da região.
Julgue o senhor mesmo se, com um ponto de vista tão crítico, eu posso ser a pessoa certa para fazer o papel de consolador de um povo perturbado por uma esperança injustificada. Freud.


Dezessete anos depois de escrita a carta, o Estado de Israel deixou de ser um sonho dos sionistas para se tornar realidade.
Mas quem pode dizer que Freud não anteviu a catástrofe?
A historiadora da psicanálise Elisabeth Roudinesco assinala que “Freud teve a intuição magistral de que a questão da soberania dos lugares santos estaria um dia no centro de uma querela quase insolúvel, não somente entre os três monoteísmos mas entre os dois povos irmãos residentes na Palestina. Ele temia, com razão, que uma colonização abusiva acabasse por opor, em torno de um pedaço de muro idolatrado, os árabes fanáticos e anti-semitas aos judeus fundamentalistas e racistas”.
Mais recentemente, num magnífico artigo publicado no jornal Le Monde de 18 de agosto de 2006, o filósofo Etienne Balibar e o físico Jean-Marc Lévy-Leblond percorrem a história de Israel para analisar a atualidade política do Oriente Médio e todas as ameaças que pesam sobre o mundo, em função do barril de pólvora em que se transformou a região.
No terceiro parágrafo do brilhante texto, os dois intelectuais escrevem: “A segunda guerra mundial foi um ponto de ruptura: ela trouxe o enfraquecimento do império britânico e levou à Palestina centenas de milhares de pessoas que escaparam à exterminação dos nazistas. O que conferiu ao Estado de Israel, criado pela “partilha” de 1947, uma nova legitimidade moral, sancionada pelo reconhecimento internacional quase unânime e pela admissão às Nações Unidas. O que não impede que o Estado que se proclamou como “Estado judaico” (apesar da presença em seu seio de uma grande minoria árabe musulmana e cristã) e se deu por missão reunir no seu solo o maior número possível de judeus religiosos ou leigos do mundo inteiro (imigrantes recentes ou assimilados há muitos anos em seus países respectivos, vindos de culturas diversas e sendo vítimas de anti-semitismo em graus muito diferentes) tenha nascido na guerra e mesmo no terrorismo. Isso por causa da hostilidade irredutível (ao menos até a iniciativa do presidente Sadat) dos Estados árabes que o cercavam, por causa do próprio nacionalismo e panarabismo ascendente que os levavam a recusar a instalação de Israel na Palestina, depois a desejar sua destruição e ser alvo de intenção simétrica, mais ou menos confessada, de expulsão da população árabe autóctone. A frase de Golda Meir: “uma terra sem povo para um povo sem terra” _ em total contradição com a realidade _ trazia em si uma lógica de eliminação, que continha em germe os elementos da catástrofe atual. Essa lógica de eliminação foi imediatamente denunciada por certos intelectuais (como Einstein, Buber, Arendt ou o fundador da universidade hebraica de Jerusalém, Judah Magnes)”.

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