segunda-feira, 28 de junho de 2010
Um americano em Paris
Por Leneide Duarte-Plon
Publicado originalmente na revista Trópico online
Depois de 30 anos sem pisar na França, o linguista Noam Chomsky retorna ao país para conferências e encontros políticos
O linguista americano Noam Chomsky, de 81 anos, não vinha a Paris há quase 30 anos. Ele e os franceses são uma história de desencontros e malentendidos. A passagem do linguista por Paris, no final de maio, provocou uma afluência digna de superstar às suas conferências e aos seus debates públicos. A internet, mais que a grande imprensa, se encarregou de divulgar o evento, esperado há muitos anos.
Chomsky incomoda os donos do poder. No dia 16 de maio, ele foi proibido pelo governo israelense de entrar na Cisjordânia, onde era convidado de uma universidade palestina. Chomsky comentou: “O governo israelense não gosta da forma como falo dele. Eu perguntei a eles: Vocês conhecem um país cujo governo goste da forma como falo dele?”.
Na terra de Voltaire, o intelectual respeitado no mundo inteiro é vítima de verdadeira “omertà”, a lei mafiosa do silêncio. Como o filósofo francês do Iluminismo, Chomsky defende a liberdade de expressão até para os adversários. E sobretudo para eles. E isso alguns intelectuais franceses não lhe perdoam.
“Stalin e Hitler defendiam a liberdade de expressão para os que pensavam como eles”, argumenta o lingüista, para justificar a defesa que fez da liberdade de expressão para Robert Faurisson, um pesquisador que nega o Holocausto judeu. Chomsky foi acusado de apoiar o autor negacionista e também foi taxado de antissemita por intelectuais _inclusive judeus, como ele.
“Poucos intelectuais foram, recentemente, difamados intelectual e moralmente da forma como ele continua a ser”, escreveu o filósofo Jacques Bouveresse, no prefácio de um livro de Chomsky, recém-lançado na França, “Raison & Liberté - Sur la Nature Humaine, l’Education et le Rôle des Intellectuels” (Razão e Liberdade – Sobre a Natureza Humana, a Educação e o Papel dos Intelectuais”, Ed. Agone).
Condenado ao ostracismo na França, Chomsky, que se tornou ao longo dos anos um crítico implacável da política externa americana, devolve o desprezo dos franceses com uma dose de indiferença em relação à cultura do país. Esnobou, inclusive, “Le Monde”, ao qual se recusou a dar uma entrevista.
Mesmo sem ter a entrevista, o jornal dedicou duas páginas e a capa do suplemento literário para debater a teoria do linguista e seus engajamentos políticos. E aproveitou para criticar seus erros de avaliação da cultura francesa, a “French theory”, que ele sempre desprezou. Segundo o jornal, para Chomsky, Derrida, Deleuze, Foucault ou Lacan não passam de produtores de um “bavardage” (tagarelice) sem interesse.
Hoje, o linguista é mais conhecido por suas críticas ao poder das finanças, do controle da mídia pelo grande capital e da política externa dos Estados Unidos. Por isso, ele se tornou uma espécie de consciência moral da esquerda do mundo inteiro, espécie de papa do “altermundialismo”.
No Collège de France
Chomsky veio a Paris por poucos dias (de 28 de maio a 2 de junho) para uma verdadeira maratona de encontros, que incluía conferências em torno de sua obra. Falou inclusive no Collège de France, no colóquio intitulado “Racionalidade, Verdade e Democracia: Bertrand Russell, George Orwell, Noam Chomsky”.
O auditório, de mais de 400 lugares, foi pequeno para acolher todos os que desejavam ouvir o professor americano. Um grande número de interessados foi barrado à porta. Os que entraram, ganharam almoço de graça, oferecido pela instituição, para garantirem seus lugares na parte da tarde e não se arriscarem a perdê-los ao sair para a refeição. Chomsky leu em inglês, sem tradutor, a conferência “Power-hunger tempered by self-deception” (A sede de poder temperada pela auto-decepção).
Situando-se na linhagem do filósofo Bertrand Russell, Chomsky pautou sua conferência nas ideias de "racionalidade, verdade e democracia", que davam título ao colóquio, comparando sua própria crítica ao capitalismo àquelas feitas por Orwell e por Russell.
Na área econômica, Chomsky criticou o fracasso total da “ortodoxia cega” e citou a crítica de Joseph Stiglitz à “religião do mercado”. Essa ortodoxia foi incapaz de prever que a bolha imobiliária iria explodir, causando uma crise financeira que passou muito perto da depressão. “Mas quando se segue uma religião, pouco importa os fatos”, ironizou Chomsky.
"Os mercados não-regulados não são eficazes e se caracterizam por um desemprego em massa permanente, ao contrário do que afirma a ortodoxia”, resumiu o filósofo, que criticou a experiência “quase religiosa” da racionalidade econômica.
Chomsky analisou, ainda, a desastrosa herança dos dois mandatos de Reagan, transformado pelos marketeiros num mito que deixou um legado inestimável para a história dos Estados Unidos. “Na realidade, Reagan legou ao mundo a proliferação nuclear, guerras imperiais e uma grande responsabilidade no desenvolvimento da ‘guerra santa’ dos extremistas islâmicos”, resumiu.
Concluiu sua crítica ao capitalismo com a apologia do socialismo democrático e da gestão das fábricas pelos trabalhadores, tal como defendia Bertrand Russell, citado na frase que encerrou a conferência: “Nossa breve passagem pela Terra é apenas um pesadelo que passará. A paz não virá enquanto as tendências atuais persistirem e não houver uma mudança radical”.
Com os jovens de Clichy
Em sua jornada parisiense, Chomsky também falou na Mutualité (que cobrou ingressos: 18 euros), no CNRS (Centre National de la Recherche Scientifique) e foi ao bairro Clichy-sous-Bois, onde ocorreu manifestações populares em 2005.
No encontro com jovens de Clichy, Chomsky declarou que estava lá para aprender e não para dar soluções. “O que vocês me dizem poderia ser ouvido de jovens dos bairros populares de Boston ou da Argentina. Na minha cidade, Boston, não há cobertura da imprensa dos bairros populares a não ser para falar de confrontos e de agressões. A mídia representa a elite”, disse.
Na Mutualité, Chomsky previu estagnação econômica para a maioria da população americana e um crescimento radical das desigualdades, “com consequências potencialmente explosivas”. “O poder político das instituições financeiras bloqueia qualquer regulamentação séria, e as crises financeiras regulares que conhecemos nos 30 últimos anos tendem a se tornar mais graves”, afirmou o professor do Massachusetts Institute of Technology (MIT).
“Os sistemas de poder contam com especialistas em gestão de doutrina, que se encarregam de demonstrar que o que fazem os fortes é nobre e justo e que os fracos sofrem por culpa deles mesmos. Trata-se de uma tendência que envergonha a história intelectual e tem origens na Antiguidade”, ensinou Chomsky a um público atento.
Ao analisar a campanha ocidental anti-Irã, foi contra a corrente: “O mundo se opõe majoritariamente ao duríssimo regime de sanções que os Estados Unidos querem ainda aumentar. A oposição não inclui apenas os dissidentes iranianos mas também as potências regionais, como a Turquia e a Liga Árabe. Essa oposição também inclui o Brasil, talvez o país mais respeitado do Hemisfério Sul, que, como signatário do Tratado de Não-Proliferação (TNP) apoiou claramente o direito de o Irã enriquecer seu urânio. É preciso um certo esforço para esquecer que três Estados nucleares se recusaram a assinar o TNP: o Paquistão, a Índia e Israel, todos eles aliados dos Estados Unidos, cujos programas nucleares se beneficiam da assistência americana”.
Ele interpretou a história recente da dominação americana, explicando como o golpe militar no Brasil, em 1964, representou a primeira etapa de uma reação do império americano a “esta grave heresia que constituía a teologia da libertação”.
Ele disse que a famosa School of the Americas (Escola das Américas) “treinou matadores da América Latina e chega a anunciar com orgulho em sua mensagem publicitária como a teologia da libertação foi vencida com a ajuda do exército americano e uma mãozinha do Vaticano, que usou de meios mais amenos: a expulsão e a autocensura”.
A passagem de Chomsky por Paris foi pretexto para a programação de algumas sessões do excelente documentário “Chomsky & Cia.”, de Daniel Mermet e Olivier Azam, seguidas de debate com o cineasta.
Na linhagem de um grande filósofo como Bertrand Russell, Chomsky explica o controle das mídias pelo poder de produzir o que ele chama “fábrica de consenso”: “Nas sociedades mais democráticas, o recurso à força deve ser substituído por uma propaganda eficaz na batalha eterna para controlar o cérebro dos homens e para fabricar o consenso graças a ilusões necessárias e por uma simplificação extrema, emocionalmente poderosa”.
O debate também revelou um novo engajamento de Chomsky: o ecológico. “Eu disse que a proliferação das armas nucleares é um dos dois desafios que põem literalmente em perigo a sobrevivência de nossa espécie. Essa questão não é levada em conta apesar da impressionante retórica empregada. O mesmo ocorre com a segunda ameaça: a destruição do meio ambiente”, afirmou o filósofo.
Publicado em 15/6/2010
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Leneide Duarte-Plon
É jornalista e vive em Paris.
segunda-feira, 21 de junho de 2010
Elegia à Europa
Forever Godard
Leneide Duarte-Plon
Publicado originalmente na revista Trópico em 15/6/2010
“Filme Socialismo”, o novo longa do diretor, discute a decadência do continente e indaga sobre o futuro da política e do cinema
Um filme chamado “Film Socialisme”? Jean-Luc Godard, de 79 anos, não somente ousou no título, como realiza o seu longa-metragem mais nostálgico, uma verdadeira elegia à Europa. Segundo ele mesmo, é o seu último filme.
A derradeira frase da biografia de Godard por Antoine de Baecque, lançada há dois meses em Paris, faz sentido, depois de vermos “Film Socialisme” (“Filme Socialismo”). Diz o historiador: “Aos 30 anos, como aos 80, Jean-Luc Godard foi e continua sendo um homem do presente. Ele é nosso contemporâneo: seu cinema permanece até hoje”.
“Film Socialisme”, como quase tudo de Godard, é cinema para iniciados. Segundo o próprio diretor, apenas dez mil pessoas na França estão interessadas em ver e discutir seus filmes. Os distribuidores franceses não se arriscam a programar um filme dele em muitas salas.
Em Paris, somente quatro cinemas fizeram a estréia, após o longa ter sido lançado no Festival de Cannes. Quem quer ver filmes para pensar, decifrar as citações, identificar as fontes de inspiração e, enfim, se sentir totalmente idiota por não entender o significado do asno ou da lhama que aparecem nas imagens? Poucos, muito poucos.
“Film Socialisme” se passa em parte num grande navio que faz um cruzeiro pelo Mediterrâneo, o “mare nostrum” dos antigos romanos. Filmado pelo cineasta, o oceano nunca foi tão belo.
O cruzeiro é um ambiente de classe média, com aposentados em toda parte, seja no restaurante ou na boate, seja numa missa. Mas há personagens a quem o cineasta empresta sua voz. Uma jovem russa diz: “Eu não quero morrer sem ter revisto a Europa feliz”.
Godard procura “recolocar a realidade na realidade” (como diz outro dos personagens), filmando simplesmente turistas em trânsito ou uma criança que acaricia os cabelos da mãe e elaborando quadros vivos muitas vezes magníficos.
O filme faz sentido para quem busca sentido. A forma é godardiana: uma sinfonia em três movimentos, uma sucessão de imagens que começam no navio, colagens de frases, de citações cinematográficas, literárias, musicais. Uma desconstrução radical e genial da narrativa.
Godard continua a inventar um cinema total, que integra literatura, pintura e música. “O filme é cinema ou uma instalação de arte moderna?”, perguntou uma espectadora, à saída da sessão. Para dar conta da dimensão artística de Godard, o biógrafo De Baecque precisou compará-lo a Picasso e a Lévi-Strauss.
O filósofo Alain Badiou faz uma aparição rápida no filme. Filmado num enorme auditório totalmente vazio, ele lê um texto sobre a geometria grega. Depois, aparece numa cabine do navio, escrevendo. O historiador palestino Elias Sanbar e a cantora Patti Smith também são personagens do filme, em rápidas aparições. Godard fala de geometria, de poesia e da Palestina, mas sobretudo da Europa. Há diálogos em russo, em alemão, em inglês e em francês.
“Pus no filme cinco ou seis lugares que participaram de minha formação: a África, a Palestina, a Revolução Russa, Odessa, a Grécia, a Itália e a Espanha. E juntei histórias em alemão, porque a Alemanha foi importante na minha vida”, explicou Godard numa longa entrevista a Daniel Cohn-Bendit, na revista “Télérama”.
O cineasta toma emprestado um plano de Agnès Varda no qual dois acrobatas se revezam no trapézio: ouve-se a voz de uma moça que canta o Talmud e a de outra, que canta o Alcorão. A Palestina é uma das obsessões do cineasta que voltam neste filme. No navio, de noite, uma moça diz a um rapaz, com quem ela passeia: “Por que a luz?”. Ele responde: “Por causa das trevas”.
O diretor Jérôme Plon, grande conhecedor da obra de Godard, vê no filme “uma densidade comparável apenas à sua aspereza”. “É preciso ver o filme três vezes: uma pela imagem, uma pelo som e outra para compreender. A primeira parte, absolutamente genial, é como uma arca de Noé, uma sonda Júpiter para as futuras gerações”, resume Plon.
O filme pode ser visto como uma elegia, um poema a uma Europa ameaçada de desaparecer. Na vida real, a Grécia, o berço da civilização europeia, está à beira do abismo. O socialismo dito “real” desmoronou. Toda a Europa está desmoronando. Também na vida real, Godard desfaz seu escritório-estudio de Rolle, na Suíça, onde se refugiou há 40 anos. Acaba de vender todos os seus equipamentos e móveis e a um egípcio.
“O filme iria se chamar ‘Socialisme’, mas esse título me pareceu ter uma conotação muito forte. ‘Film Socialisme’ é diferente: um filósofo me escreveu uma carta de 12 páginas, dizendo que é maravilhoso juntar ‘filme’ e ‘socialismo’ porque isso significa outra coisa: quer dizer ‘esperança’”, comentou Godard.
Para ele, o cinema é coisa do passado. Ele fala da “sétima arte” no pretérito. Na entrevista a Cohn-Bendit, resumiu: “Você é para a política o que eu fui para aquilo que chamávamos de cinema”.
O cinema e o mesmo socialismo conseguirão ser reinventados por uma nova geração de cineastas e de políticos? Eis a questão crucial do novo filme de Godard.
Leneide Duarte-Plon é jornalista e vive em Paris.
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Leneide Duarte-Plon
Publicado originalmente na revista Trópico em 15/6/2010
“Filme Socialismo”, o novo longa do diretor, discute a decadência do continente e indaga sobre o futuro da política e do cinema
Um filme chamado “Film Socialisme”? Jean-Luc Godard, de 79 anos, não somente ousou no título, como realiza o seu longa-metragem mais nostálgico, uma verdadeira elegia à Europa. Segundo ele mesmo, é o seu último filme.
A derradeira frase da biografia de Godard por Antoine de Baecque, lançada há dois meses em Paris, faz sentido, depois de vermos “Film Socialisme” (“Filme Socialismo”). Diz o historiador: “Aos 30 anos, como aos 80, Jean-Luc Godard foi e continua sendo um homem do presente. Ele é nosso contemporâneo: seu cinema permanece até hoje”.
“Film Socialisme”, como quase tudo de Godard, é cinema para iniciados. Segundo o próprio diretor, apenas dez mil pessoas na França estão interessadas em ver e discutir seus filmes. Os distribuidores franceses não se arriscam a programar um filme dele em muitas salas.
Em Paris, somente quatro cinemas fizeram a estréia, após o longa ter sido lançado no Festival de Cannes. Quem quer ver filmes para pensar, decifrar as citações, identificar as fontes de inspiração e, enfim, se sentir totalmente idiota por não entender o significado do asno ou da lhama que aparecem nas imagens? Poucos, muito poucos.
“Film Socialisme” se passa em parte num grande navio que faz um cruzeiro pelo Mediterrâneo, o “mare nostrum” dos antigos romanos. Filmado pelo cineasta, o oceano nunca foi tão belo.
O cruzeiro é um ambiente de classe média, com aposentados em toda parte, seja no restaurante ou na boate, seja numa missa. Mas há personagens a quem o cineasta empresta sua voz. Uma jovem russa diz: “Eu não quero morrer sem ter revisto a Europa feliz”.
Godard procura “recolocar a realidade na realidade” (como diz outro dos personagens), filmando simplesmente turistas em trânsito ou uma criança que acaricia os cabelos da mãe e elaborando quadros vivos muitas vezes magníficos.
O filme faz sentido para quem busca sentido. A forma é godardiana: uma sinfonia em três movimentos, uma sucessão de imagens que começam no navio, colagens de frases, de citações cinematográficas, literárias, musicais. Uma desconstrução radical e genial da narrativa.
Godard continua a inventar um cinema total, que integra literatura, pintura e música. “O filme é cinema ou uma instalação de arte moderna?”, perguntou uma espectadora, à saída da sessão. Para dar conta da dimensão artística de Godard, o biógrafo De Baecque precisou compará-lo a Picasso e a Lévi-Strauss.
O filósofo Alain Badiou faz uma aparição rápida no filme. Filmado num enorme auditório totalmente vazio, ele lê um texto sobre a geometria grega. Depois, aparece numa cabine do navio, escrevendo. O historiador palestino Elias Sanbar e a cantora Patti Smith também são personagens do filme, em rápidas aparições. Godard fala de geometria, de poesia e da Palestina, mas sobretudo da Europa. Há diálogos em russo, em alemão, em inglês e em francês.
“Pus no filme cinco ou seis lugares que participaram de minha formação: a África, a Palestina, a Revolução Russa, Odessa, a Grécia, a Itália e a Espanha. E juntei histórias em alemão, porque a Alemanha foi importante na minha vida”, explicou Godard numa longa entrevista a Daniel Cohn-Bendit, na revista “Télérama”.
O cineasta toma emprestado um plano de Agnès Varda no qual dois acrobatas se revezam no trapézio: ouve-se a voz de uma moça que canta o Talmud e a de outra, que canta o Alcorão. A Palestina é uma das obsessões do cineasta que voltam neste filme. No navio, de noite, uma moça diz a um rapaz, com quem ela passeia: “Por que a luz?”. Ele responde: “Por causa das trevas”.
O diretor Jérôme Plon, grande conhecedor da obra de Godard, vê no filme “uma densidade comparável apenas à sua aspereza”. “É preciso ver o filme três vezes: uma pela imagem, uma pelo som e outra para compreender. A primeira parte, absolutamente genial, é como uma arca de Noé, uma sonda Júpiter para as futuras gerações”, resume Plon.
O filme pode ser visto como uma elegia, um poema a uma Europa ameaçada de desaparecer. Na vida real, a Grécia, o berço da civilização europeia, está à beira do abismo. O socialismo dito “real” desmoronou. Toda a Europa está desmoronando. Também na vida real, Godard desfaz seu escritório-estudio de Rolle, na Suíça, onde se refugiou há 40 anos. Acaba de vender todos os seus equipamentos e móveis e a um egípcio.
“O filme iria se chamar ‘Socialisme’, mas esse título me pareceu ter uma conotação muito forte. ‘Film Socialisme’ é diferente: um filósofo me escreveu uma carta de 12 páginas, dizendo que é maravilhoso juntar ‘filme’ e ‘socialismo’ porque isso significa outra coisa: quer dizer ‘esperança’”, comentou Godard.
Para ele, o cinema é coisa do passado. Ele fala da “sétima arte” no pretérito. Na entrevista a Cohn-Bendit, resumiu: “Você é para a política o que eu fui para aquilo que chamávamos de cinema”.
O cinema e o mesmo socialismo conseguirão ser reinventados por uma nova geração de cineastas e de políticos? Eis a questão crucial do novo filme de Godard.
Leneide Duarte-Plon é jornalista e vive em Paris.
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quarta-feira, 9 de junho de 2010
Ship to Gaza : a viagem de socorro humanitário que virou tragédia contada pelo escritor sueco Henning Mankell
O que acontecerá no ano que vem quando viermos com centenas de barcos ? Eles jogarão uma bomba atômica ?” Henning Mankell, escritor sueco que fazia parte do grupo de militantes pacifistas da frota interceptada por Israel em águas internacionais dia 31/05/10
O grande escritor sueco Henning Mankell, de 62 anos, estava num dos seis navios atacados por Israel em águas internacionais no dia 31 de maio deste ano. O jornal Libération datado de 5 e 6 de junho publicou quatro páginas do relato do escritor, parte de seu diário escrito no navio e depois na prisão israelense. Mankell é apresentado por Libération como “um humanista, coerente e consequente, para quem a situação dos palestinos parece uma injustiça insuportável”.
Desde 1985, ele vive seis meses por ano na Suécia e seis meses em Moçambique, onde dirige um teatro financiado por seus livros, a maioria grandes sucessos de vendas. Mankell viveu na África do Sul do tempo do apartheid e dessa experiência vem a comparação com a situação palestina.
Frases escolhidas do diário do escritor:
“A operação Ship to Gaza tem um objetivo claro: furar o bloqueio ilegal que Israel impõe a Gaza. Desde a guerra do ano passado, a existência dos palestinos que vivem em Gaza ficou cada vez mais intolerável.” (...) Nós agimos baseados na não-violência, sem armas, sem vontade de confronto. Se formos impedidos de prosseguir, tudo deve ser resolvido sem que a vida dos participantes seja posta em perigo”.
“Os palestinos, obrigados pelos israelenses a viver na miséria, precisam saber que não estão sozinhos e que o mundo não os esqueceu. É preciso que a existência deles seja lembrada ao mundo. E aproveitamos esse momento para levar a eles alguns produtos básicos: medicamentos, material para a dessalinização da água e cimento”.
“Fomos atacados em pleno mar, em águas internacionais. Isso significa que os israelenses se comportaram como piratas, nem melhor nem pior que os que atacam ao largo da Somália. Desde o momento em que eles assumiram o comando dos navios e começaram a se dirigir para Israel, pode-se dizer que fomos sequestrados”.
“Entre os soldados há também soldadas. Elas parecem deslocadas, desapontadas. Quem sabe vão fazer parte daqueles e daquelas que fogem para Goa para se drogar até morrer, logo depois que o serviço militar termina. Isso acontece muito.”
“Um mito cai por terra : o do soldado israelense corajoso e sem mácula. Agora pode-se dizer que eles são desprezíveis ladrões. Não fui o único a ter tudo confiscado: dinheiro, cartão de crédito, roupas, telefone celular, computador. Nossos pertences foram confiscados de todos nós de madrugada por soldados encapuzados que não eram senão falsos piratas”.
“Vou fazer o possível para que meus livros não sejam mais traduzidos para o hebraico”.
Muitas das 682 pessoas que estavam nos seis navios testemunharam na Europa que seus pertences não foram devolvidos por Israel. Na frota de seis navios havia 380 turcos, 38 gregos, 31 britânicos, 30 jornanianos, 28 argelinos, 11 suecos, 9 franceses, 7 irlandeses, 6 italianos e 3 canadenses.
Para ler o relato integral de Mankell :
http://www.liberation.fr/monde/0101639686-henning-mankell-recit-de-l-ecrivain-embarque
Expulsar ou libertar?
Os leitores inundaram os jornais franceses de cartas defendendo Israel ou criticando o “ato de pirataria” do comando israelense. Numa das cartas, pude ler uma argumentação que nenhum jornal teve o cuidado de fazer : o vocabulário de propaganda tem que ser “traduzido” para fazer sentido.
O leitor François Demay escreveu ao Le Monde: Quando a mídia diz que “Israel acelera a expulsão dos ativistas estrangeiros capturados por seus comandos” precisamos fazer uma distinção. Em vez dessa frase os jornais do mundo inteiro deveriam ter escrito: “Israel acelera a libertação dos ativistas estrangeiros capturados por seus comandos militares”.
Como argumenta Demay, não se trata de expulsão. As pessoas em questão não pediram para entrar no território de Israel mas foram sequestradas em águas internacionais. Israel apenas deixou partir as pessoas presas ilegalmente por suas forças armadas nos barcos da frota.
Todos sabemos que a primeira providência de um governo para buscar um consenso é adaptar a língua e a semântica a seus objetivos de propaganda. Isso foi feito pelos nazistas, pelos militares brasileiros e por todos os governantes que pretendem controlar as mentes de seus governados.
Lembremos da frase de Chomsky : “Nas sociedades mais democráticas, o recurso à força deve ser substituído por uma propaganda eficaz na “batalha eterna para controlar o cérebro dos homens” e para “fabricar o consenso” graças a “ilusões necessárias” e por uma “simplificação extrema, poderosa emocionalmente”.
David Grossman, uma consciência crítica
Na revista Le Nouvel Observateur, o escritor israelense David Grossman escreveu:
“O embargo de Gaza fracassou. Faz mais de quatro anos que ele não funciona. Ele não se tornou simplesmente imoral mas também impraticável. Ele só faz piorar a situação e ainda por cima vai contra os interesses vitais de Israel”. (...)
Sobre a operação do exército israelense que resultou na morte de pacifistas, Grossman escreve:
“Mais que tudo, essa operação insensata dá a medida do declínio de Israel. Nem é preciso demonstrar. Todos podem ver com seus próprios olhos. Alguns entre nós tentam justificar o injustificável e fazer com que o resto do mundo endosse a culpa de Israel. Por esse motivo, nossa vergonha será mais pesada ainda”.
Quem pode dizer que ele exagera?
sábado, 5 de junho de 2010
“Estado-pirata”
Para quem não leu os jornais franceses, vale a pena citar dois títulos da terça-feira, 1° de junho, dia seguinte ao ataque pelo exército de Israel à frota humanitária, que transportava remédios e produtos de primeira necessidade para furar o bloqueio de Gaza.
O jornal comunista L’Humanité deu a seguinte manchete da primeira página: “Terrorisme d’Etat en haute mer”.
No Libération, o título principal era: “Israël, Etat pirate”. Os subtítulos de ambos contextualizavam o ataque, condenado e debatido no mundo inteiro.
Para nós, jornalistas, é reconfortante saber que os jornalistas do Libération ainda definem a linha editorial, apesar de o jornal ter entre os acionistas Édouard Rothschild (38% do capital) e Bernard-Henri Lévy, ambos judeus franceses. Apesar de muito criticado pelos intelectuais de esquerda, Lévy assinou em maio deste ano o documento Jcall (European Jewish call for reason) em que judeus franceses de centro-esquerda (mais de centro que de esquerda) pedem negociações de paz urgentes para a criação de um Estado Palestino, para a própria segurança e no interesse de Israel.
O editorial do Libération desse 1° de junho, assinado por François Sergent, intitulado Règles (Regras) era claro e categórico na condenação da ação brutal do exército israelense que custou a vida de 9 militantes pacifistas:
“Nada pode justificar a operação israelense ao largo de Gaza (em águas internacionais). As explicações do Estado hebreu são patéticas. (...) Em vez de se explicar, ou melhor ainda, de se desculpar, o governo israelense mente. Como pode-se pensar que o exército mais poderoso da região não teve outros meios senão a força bruta e cega para interceptar os navios em águas internacionais? De novo Tel-Aviv se encontra acima das leis e de novo as vítimas são civis.
Israel acusa os militantes turcos de ações ilícitas mas o embargo (bloqueio) de Gaza que a frota queria interromper não é ele mesmo considerado ilegal por toda a comunidade internacional?
Na questão de Gaza, na questão nuclear ou na ocupação da Cisjordânia, o Estado hebreu se recusa a submeter-se às regras do direito, sempre em nome de sua segurança. (...) Se Israel quer pertencer ao concerto das nações, deve respeitar as regras que regem esse concerto. A comunidade internacional deve, se necessário, impor essas regras, inclusive por sanções. Israel não pode continuar a gozar de uma impunidade incentivada pelo Ocidente, sobretudo pelos Estados Unidos, e utilizada pelo mundo árabe.
É necessário que uma investigação independente seja efetuada e Israel aceite as conclusões dessa investigação, contrariamente ao que sucedeu com o relatório Goldstone sobre a guerra em Gaza, recusado por Israel. A segurança do Estado hebreu não passa por um uso maciço de sua força mas por um respeito das obrigações internacionais comuns a todos os países.
Israel deve ser um Estado como os outros”.
Engana-se quem pensa que essa ação foi um ato impensado dos militares israelenses. O historiador palestino Elias Sanbar, representante da Palestina na Unesco, disse em entrevista ao L’Humanité : “ É fácil demais dizer que foi um ato de loucura. Isso dispensa uma análise. Trata-se de um ato calculado pelos militares para tornar toda e qualquer negociação impossível”.
A representante palestina em Paris, Hindi Khoury, concorda e acrescenta: “O governo israelense quis, com esse ato selvagem, sabotar a retomada das discussões de paz na véspera do encontro do presidente Obama com Netanyahou. Esse governo tenta empurrar a Turquia para o campo oposto, acusado de terrorismo, porque não se conforma com o papel desempenhado pela Turquia recentemente”.
O L’Humanité é uma leitura indispensável.
Gaza-strophe (Catastrophe)
Nesta quinta-feira, 3 de junho, no Senado francês, houve uma sessão-debate do documentário Gaza-strophe-le jour d’après, rodado em Gaza na semana que sucedeu à guerra de dezembro 2008-janeiro 2009. O documentário estava programado há mais de um mês. Quem convidava era a presidente do grupo de informação internacional France-Territoires Palestiniens, Monique Cerisier-ben Guiga, na presença dos autores do filme, Samir Abdallah e Khéridine Mabrouk.
Depois do filme extraordinário, desesperador e revoltante que mostra a destruição e a barbárie trazidas pelas bombas do Exército de Israel, houve um debate edificante na presença do Coronel Desmond Travers, do Exército Americano, que faz parte da Comissão Goldstone*** (do juiz Goldstone) que elaborou um relatório para a ONU denunciando os crimes de guerra de Israel na guerra contra Gaza.
As cenas de destruição são insuportáveis, a morte se espalhou por Gaza como na passagem do anjo do Apocalipse. As infra-estruturas de água e de luz foram destruídas. Os relatos das pessoas que perderam filhos, pais, casas, tudo, são o horror da guerra em estado puro. Os desenhos das crianças que viram os pais assassinados por soldados ou pelas bombas, os relatos de mulheres que se veem com seus filhos e mais as crianças orfãs para cuidar torna as imagens mais que revoltantes. A emoção sobe à garganta. Os pássaros sumiram, o gado morreu. As bombas de fósforo trouxeram destruição e morte e continuam a fazer mutilados e espalhar doenças. Os soldados executaram civis desarmados, independentemente da idade. Há relatos de uma barbárie inimaginável.
“O filme incomoda profundamente. Mas a situação atual é pior do que a mostrada no documentário. Os problemas de falta de alimentos, remédios, casas para abrigar os desalojados pelas bombas só fizeram piorar. E vão num crescendo enquanto o bloqueio de Gaza não for suspenso”, disse o Coronel Travers. Ele contou os horrores do que viu e se disse horrorizado e chocado com a ação dos israelenses contra a frota humanitária que se dirigia a Gaza, na semana passada.
A representante da Palestina em Paris, a diplomata Hindi Khoury, que deixa o posto este mês, perguntou qual era a possibilidade de haver justiça para os palestinos. O militar respondeu que a ONU tem até julho para se manifestar sobre o relatório Goldstone.
No final da projeção, o cineasta Samir Abdallah convidou os franceses interessados em integrar uma equipe humanitária que se dirigirá a Gaza na semana que vem.
Um dos ativistas ligados ao movimento Free Gaza informou esta semana que haverá novo navio saindo da França em direção a Gaza em breve.
Quem quiser saber mais sobre o filme GAZA-strophe- Le jour d’après, pode ir ao site www.gaza-strophe.com
*** A Comissão Goldstone foi criada em abril de 2009 depois da ofensiva israelense contra Gaza (dezembro de 2008-janeiro 2009) pelo Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas. Dirigida pelo juiz sul-africano Richard Goldstone. Israel se recusou a colaborar. Publicado em setembro de 2009, o relatório foi recusado por Israel e pelo Hamas. Rejeitado também pelo Congresso americano, este relatório foi aprovado pelo Parlamento europeu.
Silvio Tendler, um humanista
Recebi de alguns amigos cariocas uma carta assinada pelo cineasta Silvio Tendler. Eu, que já admirava a inteligência e as posições políticas do cineasta, li com prazer, mas sem surpresa, sua “Carta ao governo Israelense”, que reproduzo abaixo:
“ Srs. que me envergonham:
Judeu identificado com as melhores tradições humanistas de nossa cultura, sinto-me profundamente envergonhado com o que sucessivos governos israelenses vêm fazendo com a paz no Oriente Médio.
As iniciativas contra a paz tomadas pelo governo de Israel vem tornando cotidianamente a sobrevivência em Israel e na Palestina cada vez mais insuportável.
Já faz tempo que sinto vergonha das ocupações indecentes praticadas por colonos judeus em território palestino. Que dizer agora do bombardeio do navio com bandeira Turca que leva alimentos para nossos irmãos palestinos? Vergonha, três vezes vergonha!
Proponho que Simon Peres devolva seu prêmio Nobel da Paz e peça desculpas por tê-lo aceito mesmo depois de ter armado a África do Sul do Apartheid.
Considero o atual governo, todos os seus membros, sem exceção, merecedores por consenso universal do Prêmio Jim Jones por estarem conduzindo todo um pais para o suicídio coletivo.
A continuar com a política genocida do atual governo nem os bons sobreviverão e Israel perecerá sob o desprezo de todo o mundo.
O Sr., Lieberman, que trouxe da sua Moldávia natal vasta experiência com pogroms, está firmemente empenhado em aplicá-la contra nossos irmãos palestinos. Este merece só para ele um tribunal de Nuremberg.
Digo tudo isso porque um judeu humanista não pode assistir calado e indiferente o que está acontecendo no Oriente Médio. Precisamos de força e coragem para, unidos aos bons, lutar pela convivência fraterna entre dois povos irmãos.
Abaixo o fascismo!
Paz Já!
Silvio Tendler - Cineasta
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