segunda-feira, 21 de junho de 2010

Elegia à Europa

Forever Godard

Leneide Duarte-Plon
Publicado originalmente na revista Trópico em 15/6/2010

“Filme Socialismo”, o novo longa do diretor, discute a decadência do continente e indaga sobre o futuro da política e do cinema

Um filme chamado “Film Socialisme”? Jean-Luc Godard, de 79 anos, não somente ousou no título, como realiza o seu longa-metragem mais nostálgico, uma verdadeira elegia à Europa. Segundo ele mesmo, é o seu último filme.

A derradeira frase da biografia de Godard por Antoine de Baecque, lançada há dois meses em Paris, faz sentido, depois de vermos “Film Socialisme” (“Filme Socialismo”). Diz o historiador: “Aos 30 anos, como aos 80, Jean-Luc Godard foi e continua sendo um homem do presente. Ele é nosso contemporâneo: seu cinema permanece até hoje”.

“Film Socialisme”, como quase tudo de Godard, é cinema para iniciados. Segundo o próprio diretor, apenas dez mil pessoas na França estão interessadas em ver e discutir seus filmes. Os distribuidores franceses não se arriscam a programar um filme dele em muitas salas.

Em Paris, somente quatro cinemas fizeram a estréia, após o longa ter sido lançado no Festival de Cannes. Quem quer ver filmes para pensar, decifrar as citações, identificar as fontes de inspiração e, enfim, se sentir totalmente idiota por não entender o significado do asno ou da lhama que aparecem nas imagens? Poucos, muito poucos.

“Film Socialisme” se passa em parte num grande navio que faz um cruzeiro pelo Mediterrâneo, o “mare nostrum” dos antigos romanos. Filmado pelo cineasta, o oceano nunca foi tão belo.

O cruzeiro é um ambiente de classe média, com aposentados em toda parte, seja no restaurante ou na boate, seja numa missa. Mas há personagens a quem o cineasta empresta sua voz. Uma jovem russa diz: “Eu não quero morrer sem ter revisto a Europa feliz”.

Godard procura “recolocar a realidade na realidade” (como diz outro dos personagens), filmando simplesmente turistas em trânsito ou uma criança que acaricia os cabelos da mãe e elaborando quadros vivos muitas vezes magníficos.

O filme faz sentido para quem busca sentido. A forma é godardiana: uma sinfonia em três movimentos, uma sucessão de imagens que começam no navio, colagens de frases, de citações cinematográficas, literárias, musicais. Uma desconstrução radical e genial da narrativa.

Godard continua a inventar um cinema total, que integra literatura, pintura e música. “O filme é cinema ou uma instalação de arte moderna?”, perguntou uma espectadora, à saída da sessão. Para dar conta da dimensão artística de Godard, o biógrafo De Baecque precisou compará-lo a Picasso e a Lévi-Strauss.

O filósofo Alain Badiou faz uma aparição rápida no filme. Filmado num enorme auditório totalmente vazio, ele lê um texto sobre a geometria grega. Depois, aparece numa cabine do navio, escrevendo. O historiador palestino Elias Sanbar e a cantora Patti Smith também são personagens do filme, em rápidas aparições. Godard fala de geometria, de poesia e da Palestina, mas sobretudo da Europa. Há diálogos em russo, em alemão, em inglês e em francês.

“Pus no filme cinco ou seis lugares que participaram de minha formação: a África, a Palestina, a Revolução Russa, Odessa, a Grécia, a Itália e a Espanha. E juntei histórias em alemão, porque a Alemanha foi importante na minha vida”, explicou Godard numa longa entrevista a Daniel Cohn-Bendit, na revista “Télérama”.

O cineasta toma emprestado um plano de Agnès Varda no qual dois acrobatas se revezam no trapézio: ouve-se a voz de uma moça que canta o Talmud e a de outra, que canta o Alcorão. A Palestina é uma das obsessões do cineasta que voltam neste filme. No navio, de noite, uma moça diz a um rapaz, com quem ela passeia: “Por que a luz?”. Ele responde: “Por causa das trevas”.

O diretor Jérôme Plon, grande conhecedor da obra de Godard, vê no filme “uma densidade comparável apenas à sua aspereza”. “É preciso ver o filme três vezes: uma pela imagem, uma pelo som e outra para compreender. A primeira parte, absolutamente genial, é como uma arca de Noé, uma sonda Júpiter para as futuras gerações”, resume Plon.

O filme pode ser visto como uma elegia, um poema a uma Europa ameaçada de desaparecer. Na vida real, a Grécia, o berço da civilização europeia, está à beira do abismo. O socialismo dito “real” desmoronou. Toda a Europa está desmoronando. Também na vida real, Godard desfaz seu escritório-estudio de Rolle, na Suíça, onde se refugiou há 40 anos. Acaba de vender todos os seus equipamentos e móveis e a um egípcio.

“O filme iria se chamar ‘Socialisme’, mas esse título me pareceu ter uma conotação muito forte. ‘Film Socialisme’ é diferente: um filósofo me escreveu uma carta de 12 páginas, dizendo que é maravilhoso juntar ‘filme’ e ‘socialismo’ porque isso significa outra coisa: quer dizer ‘esperança’”, comentou Godard.

Para ele, o cinema é coisa do passado. Ele fala da “sétima arte” no pretérito. Na entrevista a Cohn-Bendit, resumiu: “Você é para a política o que eu fui para aquilo que chamávamos de cinema”.

O cinema e o mesmo socialismo conseguirão ser reinventados por uma nova geração de cineastas e de políticos? Eis a questão crucial do novo filme de Godard.

Leneide Duarte-Plon é jornalista e vive em Paris.



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