sábado, 5 de junho de 2010

“Estado-pirata”



Para quem não leu os jornais franceses, vale a pena citar dois títulos da terça-feira, 1° de junho, dia seguinte ao ataque pelo exército de Israel à frota humanitária, que transportava remédios e produtos de primeira necessidade para furar o bloqueio de Gaza.

O jornal comunista L’Humanité deu a seguinte manchete da primeira página: “Terrorisme d’Etat en haute mer”.
No Libération, o título principal era: “Israël, Etat pirate”. Os subtítulos de ambos contextualizavam o ataque, condenado e debatido no mundo inteiro.

Para nós, jornalistas, é reconfortante saber que os jornalistas do Libération ainda definem a linha editorial, apesar de o jornal ter entre os acionistas Édouard Rothschild (38% do capital) e Bernard-Henri Lévy, ambos judeus franceses. Apesar de muito criticado pelos intelectuais de esquerda, Lévy assinou em maio deste ano o documento Jcall (European Jewish call for reason) em que judeus franceses de centro-esquerda (mais de centro que de esquerda) pedem negociações de paz urgentes para a criação de um Estado Palestino, para a própria segurança e no interesse de Israel.

O editorial do Libération desse 1° de junho, assinado por François Sergent, intitulado Règles (Regras) era claro e categórico na condenação da ação brutal do exército israelense que custou a vida de 9 militantes pacifistas:

“Nada pode justificar a operação israelense ao largo de Gaza (em águas internacionais). As explicações do Estado hebreu são patéticas. (...) Em vez de se explicar, ou melhor ainda, de se desculpar, o governo israelense mente. Como pode-se pensar que o exército mais poderoso da região não teve outros meios senão a força bruta e cega para interceptar os navios em águas internacionais? De novo Tel-Aviv se encontra acima das leis e de novo as vítimas são civis.
Israel acusa os militantes turcos de ações ilícitas mas o embargo (bloqueio) de Gaza que a frota queria interromper não é ele mesmo considerado ilegal por toda a comunidade internacional?
Na questão de Gaza, na questão nuclear ou na ocupação da Cisjordânia, o Estado hebreu se recusa a submeter-se às regras do direito, sempre em nome de sua segurança. (...) Se Israel quer pertencer ao concerto das nações, deve respeitar as regras que regem esse concerto. A comunidade internacional deve, se necessário, impor essas regras, inclusive por sanções. Israel não pode continuar a gozar de uma impunidade incentivada pelo Ocidente, sobretudo pelos Estados Unidos, e utilizada pelo mundo árabe.
É necessário que uma investigação independente seja efetuada e Israel aceite as conclusões dessa investigação, contrariamente ao que sucedeu com o relatório Goldstone sobre a guerra em Gaza, recusado por Israel. A segurança do Estado hebreu não passa por um uso maciço de sua força mas por um respeito das obrigações internacionais comuns a todos os países.
Israel deve ser um Estado como os outros”.

Engana-se quem pensa que essa ação foi um ato impensado dos militares israelenses. O historiador palestino Elias Sanbar, representante da Palestina na Unesco, disse em entrevista ao L’Humanité : “ É fácil demais dizer que foi um ato de loucura. Isso dispensa uma análise. Trata-se de um ato calculado pelos militares para tornar toda e qualquer negociação impossível”.

A representante palestina em Paris, Hindi Khoury, concorda e acrescenta: “O governo israelense quis, com esse ato selvagem, sabotar a retomada das discussões de paz na véspera do encontro do presidente Obama com Netanyahou. Esse governo tenta empurrar a Turquia para o campo oposto, acusado de terrorismo, porque não se conforma com o papel desempenhado pela Turquia recentemente”.
O L’Humanité é uma leitura indispensável.

Gaza-strophe (Catastrophe)

Nesta quinta-feira, 3 de junho, no Senado francês, houve uma sessão-debate do documentário Gaza-strophe-le jour d’après, rodado em Gaza na semana que sucedeu à guerra de dezembro 2008-janeiro 2009. O documentário estava programado há mais de um mês. Quem convidava era a presidente do grupo de informação internacional France-Territoires Palestiniens, Monique Cerisier-ben Guiga, na presença dos autores do filme, Samir Abdallah e Khéridine Mabrouk.

Depois do filme extraordinário, desesperador e revoltante que mostra a destruição e a barbárie trazidas pelas bombas do Exército de Israel, houve um debate edificante na presença do Coronel Desmond Travers, do Exército Americano, que faz parte da Comissão Goldstone*** (do juiz Goldstone) que elaborou um relatório para a ONU denunciando os crimes de guerra de Israel na guerra contra Gaza.

As cenas de destruição são insuportáveis, a morte se espalhou por Gaza como na passagem do anjo do Apocalipse. As infra-estruturas de água e de luz foram destruídas. Os relatos das pessoas que perderam filhos, pais, casas, tudo, são o horror da guerra em estado puro. Os desenhos das crianças que viram os pais assassinados por soldados ou pelas bombas, os relatos de mulheres que se veem com seus filhos e mais as crianças orfãs para cuidar torna as imagens mais que revoltantes. A emoção sobe à garganta. Os pássaros sumiram, o gado morreu. As bombas de fósforo trouxeram destruição e morte e continuam a fazer mutilados e espalhar doenças. Os soldados executaram civis desarmados, independentemente da idade. Há relatos de uma barbárie inimaginável.

“O filme incomoda profundamente. Mas a situação atual é pior do que a mostrada no documentário. Os problemas de falta de alimentos, remédios, casas para abrigar os desalojados pelas bombas só fizeram piorar. E vão num crescendo enquanto o bloqueio de Gaza não for suspenso”, disse o Coronel Travers. Ele contou os horrores do que viu e se disse horrorizado e chocado com a ação dos israelenses contra a frota humanitária que se dirigia a Gaza, na semana passada.

A representante da Palestina em Paris, a diplomata Hindi Khoury, que deixa o posto este mês, perguntou qual era a possibilidade de haver justiça para os palestinos. O militar respondeu que a ONU tem até julho para se manifestar sobre o relatório Goldstone.

No final da projeção, o cineasta Samir Abdallah convidou os franceses interessados em integrar uma equipe humanitária que se dirigirá a Gaza na semana que vem.
Um dos ativistas ligados ao movimento Free Gaza informou esta semana que haverá novo navio saindo da França em direção a Gaza em breve.

Quem quiser saber mais sobre o filme GAZA-strophe- Le jour d’après, pode ir ao site www.gaza-strophe.com

*** A Comissão Goldstone foi criada em abril de 2009 depois da ofensiva israelense contra Gaza (dezembro de 2008-janeiro 2009) pelo Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas. Dirigida pelo juiz sul-africano Richard Goldstone. Israel se recusou a colaborar. Publicado em setembro de 2009, o relatório foi recusado por Israel e pelo Hamas. Rejeitado também pelo Congresso americano, este relatório foi aprovado pelo Parlamento europeu.


Silvio Tendler, um humanista

Recebi de alguns amigos cariocas uma carta assinada pelo cineasta Silvio Tendler. Eu, que já admirava a inteligência e as posições políticas do cineasta, li com prazer, mas sem surpresa, sua “Carta ao governo Israelense”, que reproduzo abaixo:
“ Srs. que me envergonham:
Judeu identificado com as melhores tradições humanistas de nossa cultura, sinto-me profundamente envergonhado com o que sucessivos governos israelenses vêm fazendo com a paz no Oriente Médio.
As iniciativas contra a paz tomadas pelo governo de Israel vem tornando cotidianamente a sobrevivência em Israel e na Palestina cada vez mais insuportável.
Já faz tempo que sinto vergonha das ocupações indecentes praticadas por colonos judeus em território palestino. Que dizer agora do bombardeio do navio com bandeira Turca que leva alimentos para nossos irmãos palestinos? Vergonha, três vezes vergonha!
Proponho que Simon Peres devolva seu prêmio Nobel da Paz e peça desculpas por tê-lo aceito mesmo depois de ter armado a África do Sul do Apartheid.
Considero o atual governo, todos os seus membros, sem exceção, merecedores por consenso universal do Prêmio Jim Jones por estarem conduzindo todo um pais para o suicídio coletivo.
A continuar com a política genocida do atual governo nem os bons sobreviverão e Israel perecerá sob o desprezo de todo o mundo.
O Sr., Lieberman, que trouxe da sua Moldávia natal vasta experiência com pogroms, está firmemente empenhado em aplicá-la contra nossos irmãos palestinos. Este merece só para ele um tribunal de Nuremberg.
Digo tudo isso porque um judeu humanista não pode assistir calado e indiferente o que está acontecendo no Oriente Médio. Precisamos de força e coragem para, unidos aos bons, lutar pela convivência fraterna entre dois povos irmãos.
Abaixo o fascismo!
Paz Já!
Silvio Tendler - Cineasta

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