Nos tempos de anticomunismo visceral, que vigorou no
Brasil depois da fracassada revolução comunista de 1935, que a direita chama de
« Intentona », o « ouro de Moscou » era a expressão
pejorativa usada para designar o dinheiro que os comunistas recebiam da União
Soviética para financiar a revolução.
Mudaram os tempos. Hoje o dinheiro que jorra de Moscou
está nas mãos de uma oligarquia que gasta a rodo nos hotéis cinco estrelas de
Paris e passeia nas capitais europeias em Ferrari, entre outros sinais
exteriores de uma extravagante riqueza.
No lançamento do i-phone 5 na loja parisiense dos
Champs Elysées, muitos fanáticos da marca fizeram fila durante a noite para
serem dos primeiros a possuir o gadget tecnológico. Os jornais franceses
contaram que entre os adoradores da marca da maçã havia ricos russos que vieram
de Moscou a Paris comprar seu novo aparelho. Mas como cada pessoa que se
aproximava do objeto do desejo só podia adquirir duas unidades, os russos
alugaram SDFs (sans domicile fixe) franceses, os pobres moradores de rua, para
fazerem fila. Assim, puderam comprar um número maior de aparelhos para levar
para Moscou.
Herbert
Marcuse reconheceu que havia subestimado a capacidade do sistema sócio-político
em desenvolver formas de controle social cada vez mais eficazes. Entre essas
formas de controle, está a produção de bens supérfluos cada vez maior, para
redirecionar necessidades de prazer e satisfação da população
O ouro de Moscou serviu outros tempos para alimentar o
ideal de igualdade e justiça social. A sociedade
de consumo devorou o sonho.
O ouro do Qatar
Qual o país que mais vezes teve representantes
recebidos no Palácio do Eliseu depois que François Hollande assumiu ? Nem a
Alemanha, nem os Estados Unidos, nem a Inglaterra. Foi o Qatar. De uns anos
para cá, o pequeno emirado do Golfo entrou definitivamente na lista dos amigos
da França. Dono de 100% do Paris
Saint-Germain desde junho quando comprou os restantes 30% do capital do clube que pertenciam ao fundo americano Colony Capital,
o Qatar tornou-se um aliado de primeiro time. O emir tem palácios na França e
foi recebido com pompa e circunstância por Sarkozy. Agora é a vez de Hollande. Et
pour cause. A França é o principal fornecedor de armas do Qatar e a empresa
francesa de petróleo Total tem uma posição de primeiro plano no emirado.
Agora, o Qatar lançou um plano para incentivar
pequenas empresas nas banlieues francesas através de financiamento de projetos
inovadores de jovens futuros empresários. A identidade árabe dos filhos de
imigrantes da periferia das grandes cidades francesas é vista com desconfiança
na França enquanto os qataris os vêem como jovens que devem ser estimulados e
financiados na sede de criar empresas e empregos.
Em tempo de crise e desemprego, o ouro do Qatar é mais
que bem-vindo.
Carta a
Gramsci
O historiador marxista Eric Hobsbawn, que morreu em
Londres aos 95 anos, enviou uma vídeo-carta ao filósofo Antonio Gramsci na qual
dizia : « Você morreu há sessenta anos mas vive no coração dos que desejam
um mundo onde os pobres tenham a possibilidade de tornar-se verdadeiros seres
humanos ».
Se eu fosse cartunista, desenharia o encontro dos dois
numa nuvem, com Hobsbawm perguntando a Gramsci : « Recebeu minha
carta ? »
Kadhafi eliminado
por Sarkozy ?
Quem matou Kadhafi ? Alguém que preferia vê-lo
morto pois ele sabia demais e diante da Corte Penal Internacional podia contar
coisas comprometedoras para alguns poderosos. O jornal italiano Corriere della Sera revelou que Mahmoud
Jibril, ex-primeiro ministro do governo de transição líbio e hoje presidente do
Conselho executivo do Conselho Nacional de Transição, disse ao canal egípcio Dream que « o presidente Sarkozy tinha
razões de sobra para fazer com que Kadhafi se calasse ».
Segundo Jibril, quem matou o coronel Kadhafi foi um
agente secreto francês. A história, reproduzida pelo jornal L’Humanité, faz sentido pois depois
do começo da insurreição na Líbia e vendo a França intervir diretamente a favor
dos rebeldes, Kadhafi ameaçou tornar públicos os documentos provando que
enviara muitos milhões de dólares para a campanha do presidente francês em
2007. Antes da insurreição, Sarkozy sempre cortejou Kadhafi a ponto de tê-lo
recebido em Paris com pompa e circunstância em 2008. Para lhe agradecer os
milhões da campanha ? Sarkozy e seus mais próximos colaboradores levarão
esse segredo para o túmulo.
Parece impossível provar a
versão do assassinato de Kadhafi pelos serviços secretos franceses. Mas de
qualquer forma, sabe-se que as empresas francesas dividiram com outras
multinacionais o lucrativo mercado da reconstrução da infra-estrutura do país e
da exploração do petróleo líbio.
Israel-Palestina,
um conflito inexistente
O jornalista Alain Frachon, do Le Monde escreveu um artigo na semana passada que começava com a
afirmação um tanto provocadora : « O conflito israelo-palestino não
existe mais ». Não que tenha sido solucionado. Longe disso. Mas saiu completamente
do noticiário, como constatava Frachon. As grandes potências não se interessam
mais por ele. A intervenção de Mahmoud Abbas na Assembleia Geral da ONU deste
ano relembrando que a colonização israelense assimila a cada dia que passa um
pouco mais do território palestino, na Cisjordânia e na parte oriental de
Jerusalém, não teve eco na diplomacia mundial, nem nos Estados Unidos, nem na
Europa, nem na China, nem na Rússia.
Segundo o jornalista, o sentimento de humilhação, seja
legítimo ou não, alimenta no Oriente Médio um antiamericanismo latente, sempre
prestes a explodir.
FlaxFlu
melancólico
Recebi e repassei a amigos um texto de Leonardo Boff
publicado na revista Mirante (www.revistamirante.wordpress.com) sobre o julgamento do
chamado « mensalão”, intitulado « A espetacularização e a ideologização
do Judiciário”.
O editor Cesar Benjamin, um dos amigos a quem
enviei, me escreveu a seguinte resposta, que me autorizou a publicar :
« Vergonha, Leneide,
vergonha. É o que sinto por essa esquerda brasileira hoje, que ocupa um espaço
nobre na casa-grande (aliás, junto com Fernando Collor e outros) e não
aceita que sua corrupção (GIGANTESCA, e não me refiro somente ao chamado mensalão)
seja julgada conforme a lei. Ninguém pode ser socialista se é antirrepublicano.
Aliás, devo lhe dizer, que o clamor, por aqui, é para que o STF siga em frente.
A máscara mais produzida para o próximo carnaval é a do rosto do Joaquim
Barbosa, e as redes sociais estão repletas de apoio.
Quanto aos assinantes do tal manifesto, todos os que
conheço têm um carguinho, um financiamentozinho, um projetinho, um DASzinho,
sem falar de umas indenizações bem gordinhas... Sinto vergonha por um dia
ter sido próximo a essa gente que perdeu completamente a referência republicana e
a ética do trabalho. Vivem de « bicos » políticos e querem
impunidade. Cesar.
PS. Além do cinismo, é claro. Ou você acha que se os
políticos julgados agora fossem do PSDB (chegará a vez deles) algum desses
picaretas estaria fazendo denúncias? O negro
Joaquim Barbosa estaria sendo endeusado. Você duvida disso? Política, no
Brasil, virou Fla-Flu. Dos mais melancólicos.
“Dá o fora, rico babaca”
Com a chegada dos socialistas ao poder na França, os
ricos começaram a fugir para a acolhedora Suíça ou a tolerante Bélgica, que abriga muitos
milionários refugiados do rigor fiscal francês. O mais rico e mais conhecido
dos milionários franceses pediu a nacionalidade belga um mês atrás. E ao dar a
notícia, o jornal Libération não
poupou Bernard Arnault.
A capa do jornal gozando o homem mais rico da França e da Europa, não
agradou nada ao dono das marcas Louis Vuitton e Dior, entre outras mais de 60
pepitas de sua propriedade. Bernard Arnault aparecia com uma mala na mão e a
frase “Casse-toi riche con” (Dá o fora rico babaca). O jornal fazia um genial trocadilho
com uma frase dita anos atrás por Nicolas Sarkozy a um rapaz que recusou lhe
dar a mão num lugar público : « Casse-toi pauvre con » (Dá o
fora, babaca). Nesse caso, o adjetivo « pauvre » é apenas um reforço
para « con ».
Bernard Arnault resolveu
responder com suas armas. Suas marcas cortaram todas as publicidades programadas
para Libération até o fim do ano. Com
a solidariedade de classe que lhes é peculiar, outros ricos resolveram retirar
seus anúncios de produtos de luxo. Resultado : Libération estima que vai perder cerca de 700 mil euros de
publicidade de setembro até o fim do ano.
Mas graças àquela capa as vendas da edição foram 27%
maiores e nunca se falou tanto do jornal em todos os meios de comunicação.
First girlfriend
Valérie Trierweiler, a bela companheira do presidente
Hollande, quer o bolo e quer comer o bolo. Ela contesta o papel de « primeira
dama » concebido classicamente mas ainda não descobriu onde deve se
posicionar na nova vida que tem desde maio. Quer continuar a trabalhar como
jornalista, « meus filhos são sustentados por mim », mas também quer
manter um escritório no Palácio do Eliseu.
Por enquanto, ele assina uma crítica literária na
revista Paris Match onde trabalha há
vinte anos e onde era repórter política, especilização à qual teve que
renunciar. Depois do tweet apoiando o concorrente de Ségolène Royal (dizem que Valérie
e Ségolène se detestam) nas eleições legislativas, a gaffe do ano, Valérie se
recolheu, fechou sua conta e parou de twitar. Mas nem por isso, a « first
girlfriend » como a chama a imprensa americana traduzindo sua condição de “compagne”
do presidente François Hollande, parou de falar. Deu uma entrevista na semana
passada a um jornal regional de sua cidade natal Angers, na qual disse lamentar
o fatídico tweet. Além disso, afirmou que precisa continuar a trabalhar por
causa dos filhos. Na mesma semana, apareceu radiante no desfile de Saint
Laurent, no Grand Palais.
Hollande vem despencando nas pesquisas de opinião. E a
culpada não é unicamente a crise. Os franceses detestam a mistura de gêneros,
vida pública e vida privada. Com o tweet de Trierweiler o presidente, que
sempre quis manter sua vida privada longe dos holofotes, apareceu para a
opinião pública como uma homem fraco que não consegue controlar nem mesmo sua « compagne ».
A direita francesa se delicia com o vaudeville que tem
como cenário o Palácio do Eliseu, onde pela primeira vez na história habita um
presidente não casado com a mulher com quem vive.
As charges de Charlie Hebdo : pode-se zombar de
Maomé ?
Leneide Duarte-Plon, de
Paris*
*Publicado no Observatório da
Imprensa em 25 de setembro de 2012
O
mínimo que se pode dizer das caricaturas de Maomé publicadas pelo jornal
satírico francês Charlie Hebdo é que
a maioria delas não prima pela genialidade. E que são inúteis.
Por
que motivo os chargistas de Charlie Hebdo
precisam provar que a França é um país onde reina a liberdade de expressão,
expondo as escolas e embaixadas francesas dos países muçulmanos à vendetta dos
radicais islâmicos, que o diretor do
jornal, o chargista Charb, chama « les fascistes de Dieu » ?
Publicadas
num contexto explosivo depois que alguns manifestantes haviam, na Líbia,
invadido um consulado americano e matado o embaixador dos Estados Unidos, entre
outras pessoas, essas charges satíricas soaram para muitos na França, como uma
provocação. O ministro das Relações
Exteriores, Laurent Fabius, comparou :
«É como botar óleo no fogo ». O editorial do jornal Le Monde, publicado no dia seguinte à
edição de Charlie Hebdo tem como
título “Integrismo : é necessário botar óleo no fogo?” O
jornal considerou as charges “de mau gosto e mesmo constrangedoras”. Mas diz
que não se pode colocar no mesmo nível a crítica a Charlie Hebdo e a seus inquisidores. « De um lado, querem
fazer rir. Do outro, lançam anátemas ».
A
capa de Charlie Hebdo era uma grande
charge de Charb mostrando um rabino empurrando um mollah numa cadeira de rodas
com a bolha « Não se deve debochar ». O título « Intouchables
2 » era uma alusão ao filme « Intouchables », no qual um jovem
negro da periferia de Paris se emprega como acompanhante de um milionário
paraplégico. A comédia lançada no ano passado foi o maior sucesso de bilheteria
da história do cinema francês.
Algumas
caricaturas mostravam Maomé nu, como quem espera ser sodomizado, com uma
estrela desenhada no ânus e o título « Maomé, nasce uma estrela ». Ou
nu de turbante, dizendo a um Jean-Luc Godard, que o olha por trás da câmera, a
frase de Brigitte Bardot no filme « Le Mépris » : « Et mes
fesses ? Tu les aimes mes fesses ? » (E minha bunda, você gosta
da minha bunda ?)
Charb
argumentou que todos os outros jornais falaram do filme anti-Islã. A forma que
seu jornal usa para tratar desse assunto é a charge. As caricaturas foram publicadas na semana
seguinte à morte do embaixador americano. Em diversos países muçulmanos houve
protestos contra os Estados Unidos, onde foi filmado o abacaxi do ano chamado
« A inocência dos muçulmanos » que joga lama sobre o profeta do
Islã.
Na
França, Charlie Hebdo esgotou-se em
um dia. Os 75 mil exemplares da primeira tiragem evaporaram na quarta-feira e
no dia seguinte as bancas de jornais já estavam com nova tiragem. Quem sabe, o lucro dessa edição compensa o
incêndio provocado na redação em novembro do ano passado, quando o jornal
publicara um número especial chamado « Charia Hebdo », zombando da
lei islâmica ? Até hoje uma investigação tenta estabelecer a
responsabilidade pelo incêndio.
Desde
a quarta-feira passada, quando saiu o número polêmico de Charlie Hebdo, os políticos, os comentaristas políticos, os
editorialistas, de direita como de esquerda, elegeram duas idéias básicas em
torno da qual passaram a debater : a liberdade de expressão, que de fato reina
na França, e a prudência. Até que ponto a liberdade de expressão deve ser
usada ? Num momento já naturalmente explosivo depois da divulgação do
filme americano, não seria mais prudente não provocar os fanáticos com
caricaturas de seu profeta ? Para que eleger Maomé como alvo ? Apenas
para cutucar os integristas da França e do estrangeiro e provar que aqui se tem
liberdade de expressão ? Não fazer novas caricaturas de Maomé representa
se curvar aos extremistas islâmicos ?
O Conselho Federal do Culto
Muçulmano condenou “esse novo ato islamofóbico” enquanto Charb defendia a iniciativa
em nome da sacrossanta “liberdade de expressão”. Os que criticavam o
jornal comparavam essa edição incendiária com a outra de 2006, quando Charlie Hebdo resolveu republicar as
caricaturas do jornal dinamarquês « Jyllands-Posten », que meses
antes tinha provocado a ira e a vingança de integristas muçulmanos em diversos
países.
A
diferença é que ao republicar as caricaturas do jornal dinamarquês, Charlie Hebdo se solidarizava com um
jornal atacado por fanáticos, que destruíram representações dinamarquesas em
diversos países e ameaçavam de morte os responsáveis pelo jornal. Naquele momento,
Charlie Hebdo militava pela ideia de
um laicismo absoluto e pela liberdade de expressão. E fez uma capa na qual um Maomé dizia,
desesperado : « É duro ser amado por babacas ». Aquele
número vendeu mais de 600 mil exemplares e valeu um processo feito por
organizações muçulmanas. O jornal acabou inocentado.
Agora, ao publicar novas caricaturas todas
« made in France » num contexto em que um filme de quinta categoria
vem zombar do profeta maior da religião muçulmana, o jornal quer apenas afirmar
que os integristas não fazem a lei na República Francesa.
A
quem acha que eles foram longe demais, Charb responde : « Criticamos
todos os extremismos. Em vinte anos, tivemos quatorze processos da extrema
direita católica e apenas um dos muçulmanos ». Agora serão dois pois uma
entidade muçulmana já entrou com novo processo contra o jornal.
Não
deixa de ser uma causa louvável afirmar a liberdade que reina nos países
ocidentais onde a religião e o Estado estão devidamente separados e o laicismo
é praticamente incontestável. Mas quem pagou a conta da proteção policial excepcional
nas Embaixadas e escolas francesas, além dos dois dias que ficaram fechadas
para prevenir ataques em vinte países muçulmanos, foi a République, isto é, o
contribuinte. Não foi Charlie Hebdo.
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