sexta-feira, 25 de abril de 2008

Paris-Pequim: a corrida de obstáculos

As imagens são impressionantes : a bandeira tricolor (bleu, blanc, rouge) com o símbolo nazista é queimada diante de vários supermercados Carrefour, na China. Chineses gritam, indignados, slogans anti-franceses. Na web, outros incitam ao boicote dos produtos franceses.

Depois que a tocha olímpica passou por Paris e foi alvo de manifestações hostis de tibetanos, de franceses pró-Tibet e de militantes da ONG Réporters sans Frontières, que chegou a colocar uma grande bandeira na fachada da Notre-Dame com os anéis olímpicos com a forma de algemas, o clima entre a China e a França ficou sujeito a chuvas e trovoadas. No dia do desfile, o percurso da tocha encurtou, ela passou parte do tempo escondida num ônibus, que seguia os policiais e o aparato de carros para protegê-la.

Mas a proteção de milhares de policiais franceses espalhados por Paris não impediu as manifestações pró-Tibet. E os chineses se sentiram ultrajados.

Os chineses de Paris fizeram diversas manifestações públicas, com bandeiras e slogans, em defesa do governo chinês e das olimpíadas. Eles culpam os franceses pelo fiasco da festa da tocha na cidade-luz. E em toda a China, patriotas melindrados começaram a conclamar ao boicote dos produtos franceses, através da internet, para responder aos franceses que pregam o boicote aos jogos olímpicos. O supermercado Carrefour, que tem dezenas de pontos de venda em todo o país, é o mais atingido pela campanha de hostilidades.

A situação começou a ficar tão séria que Sarkozy mandou dois emissários a Pequim, o ex-primeiro ministro Jean-Pierre Raffarin e o presidente do Senado, com cartas pessoais ao presidente da República e à atleta chinesa paraplégica, que desfilou em Paris com a chama na mão, protegendo-a com seu próprio corpo no mometo em que um tibetano tentou arrancá-la de suas mãos. Ela se tornou uma heroína do dia para a noite na China.

Raffarin levou ao presidente chinês a biografia do General De Gaulle, o presidente que reconheceu a China Comunista, com a dedicatória de Sarkozy.

Para piorar o clima de tensão, Bertrand Delanoë, o prefeito de Paris recém-reeleito, propôs o título de cidadão de Paris ao Dalai Lama e ao dissidente chinês Hu Jia. Foi a gota d’água. De um lado o presidente francês tenta acalmar os ânimos, do outro lado o socialista Delanoë homenageia um dissidente e o Dalai Lama.

Os chineses, pouco acostumados ao debate de opiniões e à liberdade de posições divergentes coexistindo num mesmo país, consideraram a homenagem uma provocação e uma interferência nos negócios internos chineses.

Na China, há uma grande manifestação anti-francesa programada para o dia 1° de maio.
Será que as chinesas emergentes vão deixar de comprar suas caras bolsas Louis Vuitton e seus perfumes Chanel n° 5 em protesto contra o país que pretende dar lições de direitos humanos à China?

Sarkozy tem 28% de aprovação

Nicolas Sarkozy está no mais baixo nível de aprovação de um presidente francês, no fim do primeiro ano de mandato: 72% dos franceses desaprovam sua ação, segundo pesquisa publicada esta semana.

O jornal de direita Le Figaro prefere dar a seus leitores a informação pelo ângulo positivo. Diz que 28% dos franceses aprovam o governo Sarkozy.

Nesta quinta-feira à noite, o presidente falou aos franceses num debate com cinco jornalistas representando diversos canais de televisão. Ele tentou explicar suas opções e justificar por que os franceses têm o sentimento de que as promessas eleitorais não transformaram suas vidas.
A inflação e a queda do poder aquisitivo é o assunto diário na mídia francesa e “le moral des ménages” (o moral das famílias) só faz se degradar. A inflação de 2007, a maior dos últimos anos, vai fazer com que o governo antecipe a revalorização do salário mínimo (Smic), feita todos os anos em 1° de julho. Este ano, dia primeiro de maio, o Smic será aumentado de 2,3%, o que não chega a cobrir a inflação oficial, que foi de 2,6% em média.

No bolso dos dois milhões de assalariados franceses que ganham o salário mínimo a inflação foi sentida como bem maior pois o básico, isto é, os alimentos, o gás, a eletricidade e a gasolina tiveram aumentos bem acima da taxa média da inflação.

Mitterrand e o fantasma de Vichy

Na terça-feira, o canal France 2 (estatal) levou ao ar o “docu-fiction” (um filme de ficção baseado em fatos reais, geralmente tirado de um livro ou entrevistas) “Mitterrand em Vichy”.

Trata-se do período de um ano em que o jovem Mitterrand, aos 24 anos, passou na cidade de Vichy, onde estava instalado o governo colaboracionista do general Pétain, depois da rendição aos alemães. Mitterrand acabava de voltar da Alemanha, depois de se evadir de um campo de soldados franceses prisioneiros.

Essa passagem da vida do presidente socialista esteve ocultada até 1994, dois anos antes de sua morte, quando o jornalista Pierre Péan lançou o livro “Une jeunesse française”, que repercutiu como uma bomba entre amigos e inimigos do velho presidente.

Era o último ano do mandato de Mitterrand, que governou por 14 anos a França. O presidente veio a público explicar como e por que motivos trabalhou como documentarista para o governo de Vichy até cair na clandestinidade e se entregar corpo e alma à Resistência e à libertação da França.

O nome Vichy na França ficou conotado para sempre. A elegante e hoje démodée cidade de estação de águas virou sinônimo do governo colaboracionista. Seu nome ficou ligado ao crime do Estado francês que entregou os judeus, nascidos na França ou vindos de outros países europeus, ao ocupante nazista. A grande maioria não voltou dos campos de concentração.

Chirac, em um discurso memorável, reconheceu a responsabilidade da França na prisão e deportação dos judeus franceses para os campos de concentração nazistas. Mitterrand sustentava que não era a França a responsável por esse crime, mas um grupo de franceses que governou o país sob ocupação.

O filme foi seguido de um documentário em que jornalistas como Edwy Plenel e intelectuais como Edgar Morin e Jean Lacouture discutiam o passado vichysta de Mitterrand e o choque que as revelações do livro provocaram na época.

Aposentadoria

Na semana passada uma pessoa ganhou sozinha o prêmio da loteria chamada Euromilhões, vendida em vários países da Europa.

Era um francês.

O prêmio dá para resolver os problemas da maioria das pessoas. Com 58.367.681,00 de euros na conta corrente qualquer um pode se aposentar com tranqüilidade.

sábado, 19 de abril de 2008


Charles Aznavour : a vitória do talento contra o “físico difícil e a voz ingrata”*

Leneide Duarte-Plon, de Paris


Ele é o último “monstro sagrado” da canção francesa. Aos 82 anos, Charles Aznavour, que morou com Edith Piaf sem, no entanto, ter tido um caso de amor com ela, visita o Brasil pela “quinta ou sexta vez” para cantar em diversas capitais. “As pessoas que se dão bem não devem necessariamente passar pela cama”, diz explicando a amizade que o uniu a Piaf, que ele define como “cúmplice” de um mesmo amor pela música.
O cantor, que no início da carreira ouvia o comentário de que tinha “um físico difícil e uma voz ingrata” conseguiu impor um estilo de cantor-ator, considerado pouco comercial quando começou.
Baixo, feio e com a voz “ingrata” que a natureza lhe deu, Charles Aznavour tem uma presença mágica em cena, que o transformou num ídolo da canção mundial. Ele já vendeu 100 milhões de discos e lota as salas de espetáculos das principais capitais do mundo há 50 anos.
Em 2004, Aznavour escreveu sua autobiografia, “Le temps des avants », sem nenhum “negro” por trás do texto, conta orgulhoso. A autobiografia já foi traduzida em 12 línguas e só em francês vendeu mais de 250 mil exemplares. O compositor prefere ser chamado de “escritor de canções” em vez de “autor de canções”.
Um problema de audição que faz com que ouça uma tonalidade diferente em cada ouvido quase o afastou dos palcos. Mas com a tenacidade de sempre ele conseguiu contornar a dificuldade e continuar cantando.
Nessa entrevista exclusiva à Folha de São Paulo, dada na sede de sua gravadora, em Paris, Aznavour conta como numa mesma noite, ciceroneado pela cantora Marlene, de quem Piaf era fã, ele conheceu todos os grandes nomes da música brasileira, na primeira viagem que fez ao Brasil.



Folha - Qual sua relação com o público brasileiro e como você o define ?

Charles Aznavour : Eu não vivo no Brasil, logo não posso dizer qual minha relação com o público brasileiro. Fui cinco ou seis vezes ao Brasil e sempre foi muito agradável. Acho que o Brasil tem uma população que entende o francês e esses fazem parte do meu público. Outros vêm por curiosidade.

Folha - Você gravou em inglês, italiano, espanhol e alemão. Nunca se sentiu tentado pelo português nem pelas canções brasileiras ?

Aznavour : Eu canto as minhas canções, por isso não canto canções brasileiras. Nunca tive contato com tradutores para o português de minhas canções. Os tradutores me enviavam traduções de minhas canções em alemão, espanhol, italiano e inglês e trabalhávamos juntos. Nunca me propuseram traduções em português. E eu nunca forcei.

Folha – Você é apresentado no estrangeiro como o último dos monstros sagrados da canção francesa. Você acha que a canção francesa vive um período de crise?

Aznavour : A canção francesa atual é menos conhecida no estrangeiro. Mas ela é importante e temos jovens que fazem coisas muito boas.

Folha – Mas são pouco conhecidos no estrangeiro…

Aznavour : De fato, não são muito conhecidos. São também canadenses do Quebec que são conhecidos na França, na Bélgica, na Suiça, no Líbano, onde a língua francesa é importante.

Folha – No início de sua carreira, dizia-se que você tinha “um físico difícil e uma voz ingrata”. Diziam também que seu estilo de cantor-ator era pouco comercial. Como você conseguiu impor seu estilo?

Aznavour : Ele se impôs sozinho, não fiz nada. Continuei, não quis mudar, não quis ser diferente do que eu era. Não se pega um trem andando. Eu não tentei fazer yé-yé-yé, rock ou rap. Fiz o que fiz e isso se tornou uma espécie de clássico. As pessoas vêm me ouvir como um show clássico, com uma diferença, eu tenho mais público que os músicos que fazem música clássica.

Folha – Você cantou em São Paulo e no Rio umas cinco ou seis vezes. Você cantou em outras cidades brasileiras?

Aznavour : Cantei também em Brasilia e este mês vou cantar numas seis cidades inclusive Recife e Brasília. Não tenho certeza. O que sei é ir cantar e visitar a cidade depois e fazer fotos.

Folha – Você gosta de visitar as cidades onde canta ?

Aznavour : Gosto muito da América do Sul, da América Central. E gosto muito também dos países orientais. Os outros me interessam menos. Na Ásia, não há muita coisa a descobrir além da tecnologia. Enquanto nos países da América Latina e no Oriente Médio há muita coisa a descobrir.
Folha - Você conhece a música brasileira ?
Aznavour : Sim, conheci muito bem. Quando fui a primeira vez ao Brasil, havia uma cantora chamada Marlene que tinha cantado no programa de Edith Piaf no Bobino de Paris por muito tempo e de quem Piaf gostava muito. E a conheci porque eu morava na casa de Piaf. E quando cheguei ao Brasil Marlene me disse: “Preparei uma surpresa para você, vou te mostrar o que há de mais novo aqui”. Ela tinha preparado uma noite com Jobim, João Gilberto, Elizeth Cardoso. Em uma noite, conheci o Brasil. Havia também um rapaz chamado Santos que morreu num desastre de avião e que cantava maravilhosamente bem...

Folha - Agostinho dos Santos …

Aznavour : Isso mesmo. Ele cantava uma das maravilhosas canções que ouvi nessa noite. Tinha uma que se chamava qualquer coisa do sol. Era assim. La la la la ...

Folha – Estrada do Sol ?

Aznavour – Isso mesmo. Conheci outras cantoras mas não pessoalmente. Maysa, Simone, todas as pessoas que cantam bem.

Folha – Você conheceu Edith Piaf, diz que morou na casa dela, mas não teve uma relação amorosa com ela. Você pode contar por quê?

Aznavour : Eu era cúmplice dela. Na época, eu estava apaixonado e vivia um outro amor. Não se abandona a vida que a gente tem para viver com uma pessoa famosa por puro interesse, por carreirismo. Eu não sou um carreirista. Há muitas mulheres que eu amei, muitas, com quem não tive uma vida sexual. Edith Piaf e Amália Rodrigues são duas delas. Conheci muito bem Amália, tínhamos uma grande cumplicidade, eu a via menos que Piaf, claro, mas penso que as pessoas que se dão bem não devem necessariamente passar pela cama. Nós éramos cúmplices, gostávamos das mesmas coisas.

Folha – Você fez 60 filmes e compôs mais de mil canções. Há um sonho de artista que não pôde realizar? Qual?

Aznavour : Não, tive um sonho que era nadar e não sei nadar bem. Meu sonho mesmo era escrever. E isso sempre fiz. Mesmo quando me contestavam todas as outras coisas, nunca tiveram nada a dizer quanto ao que eu escrevia. E talvez seja o único cantor que escreveu sua biografia sozinho. Na França, descobriram que eles tiveram sempre um “negro”, menos eu. Não porque eu seja melhor que os outros, mas porque amo escrever. Não vou dar o trabalho que gosto de fazer a outra pessoa. Minha autobiografia vendeu 250 mil exemplares na França e foi traduzida em doze línguas.

Folha – « Hier encore », « La bohème », « Que c’est triste Venise », « La mamma » são canções que ajudaram muitos estrangeiros a se interessar pela língua francesa. Quais seus poetas favoritos?

Aznavour : Gosto muito de um poeta armênio que leio em francês e de poetas iranianos que leio em francês, também. Leio também Fernando Pessoa. Tenho uma canção na qual falo de Pessoa, que muita gente não conhece. Talvez eu seja o único francês que escreveu fados. O último se chama “Fado fado” e nele tento explicar o que é o fado. Porque cada vez que se pergunta o que é o fado, respondem “o fado é o fado”. Escrevei então esse fado em que falo de Pessoa e de Amália Rodrigues.

Folha – Existe uma canção de um outro compositor que você gostaria de ter feito?

Aznavour : Há muitas. Eu gostaria de ter escrito todas as belas canções do mundo.

Folha – E da canção francesa ?

Aznavour : « Il y a de la joie » e « La mer », ambas de Charles Trenet.

Folha – Charles Trenet é o maior de todos os compositores francese ?

Aznavour : Não gosto de classificar de maior, diria que é o « mestre ». Não se deve dizer o maior, deve-se dizer o mestre. Quando se vai à escola, tem-se muitos mestres e isso faz nossa cultura. Fiz minha cultura através dos mestres.

Folha – Você teve outros mestres ?

Aznavour : O mestre nos precede sempre. Meus mestres foram Victor Hugo, Racine, Molière e La Fontaine. Os mestres vêm antes de nós. Mas aprecio muitos compositores do mundo todo.

Folha – Qual foi o momento mais emocionante de sua carreira ?

Aznavour : Foi quando meus pais foram olhar um dia um grande cartaz de meu espetáculo da altura de um prédio de cinco andares, perto to Moulin Rouge e ficaram olhando alguns minutos, completamente fascinados e felizes.

Folha – Você estava com eles ?

Aznavour : Não, eu os observava de longe. Esse foi o momento mais emocionante da minha vida, lá pela década de 50.

Folha – Era como um presente para eles ?

Aznavour : Era uma coisa formidável. Tinham dito a eles : “Seus filhos não vão ser nada”. Eram pessoas que vieram para a França como imigrantes e nem falavam francês, aprenderam depois. Eles abandonaram seus sonhos para cuidar dos filhos. Isso foi o momento mais emocionante.

Folha – Você cantou na maioria das cidades importantes do mundo. Qual o público mais difícil ou mais exigente? E o mais caloroso?

Aznavour : O mais difícil é o público esnobe. Ele pode ser de qualquer país. Aplaude com as pontas dos dedos ou com luvas. Viram tudo, ouviram tudo, conhecem tudo. Esse público pode dar opinião sobre tudo e sempre uma opinião crítica. Esse é o público ruim.

Folha – Você teve muitas vezes um público assim?

Aznavour : Tive. Mas esse mesmo público mudou depois. Quando voltei já não era o mesmo. Foi em Monte Carlo quarenta anos atrás. A gente tinha a impressão de que eles estavam sentados sobre as mãos.

Folha - E qual o público mais caloroso ?

Aznavour : Em todos os lugares. O público que gosta do artista é sempre caloroso. Ele é caloroso de maneira diferente nos diferentes países, é normal. Não é o mesmo entusiasmo em Buenos Aires ou em Nova York. Mas ele é entusiasmado cada um a seu modo. São maneiras diferentes de demonstrar. Minha mulher é sueca. A primeira vez que fui cantar na Suécia ela me preveniu : “Os suecos não são como os franceses, não fique chateado se eles forem frios”. E eles foram como os outros. Eu então disse a ela: “ Você vê, era preciso que um armênio-francês viesse para que eles mudassem”.

Folha – Qual é o segredo para conquistar um público ?

Aznavour : Não tem segredo.

Folha – É o talento?

Aznavour : Acho que é a verdade que passa. Ou se pensa que um artista é fabricado ou a gente o vê como verdadeiro. Hoje, há poucos artistas fabricados porque os jovens se entregam cada vez mais a esse métier. É a verdade que faz o sucesso e depois é a sinceridade que o mantém.

Folha – Você teve uma das carreiras mais longas e mais importantes da canção francesa. Vai poder realmente parar depois dessa turnê?

Aznavour : Eu sou obrigado a parar.

Folha – Por quê?

Aznavour : Porque num dado momento não poderei mais subir num palco.

Folha – Mas esse momento pode ir sendo adiado, não?

Aznavour : Quando tive um grande problema de ouvido disse que pararia. E então consegui me disciplinar para que meu ouvido só ouvisse o que era preciso. Mas foi muito difícil e continua sendo. De um ouvido ouço um tom diferente que do outro. Isso é terrível. De repente, o violino que deve tocar ao mesmo tempo que o piano os ouço com dois tons diferentes.

Folha – E o que acontece?

Aznavour : Eu me disciplinei. Passei a ouvir apenas o que quero ouvir, apenas o que tenho necessidade de ouvir. Mudei introduções, há instrumentos que tive que tirar pois não dava para mantê-los.

Folha – E quando você pretente parar de vez de cantar?

Aznavour : Quando eu tiver totalmente destruído. (Risos).

Folha – Quando você encerra essa turnê?

Aznavour : Não faço mais turnê. Para ir à América do Sul, sou obrigado a fazer uma viagem mais longa, não posso fazer duas cidades e voltar. Mas na França não faço mais turnê. Na Europa também não. Vou à Itália e volto. Vou à Alemanha e volto. Vou ao Oriente Médio e volto. Só viagens curtas e fáceis. As longas são difíceis. Volto da América do Sul no mês de maio e não trabalho até o mês de julho quando vou ao Québec para cantar um dia somente.

*Entrevista publicada originalmente na Folha de São Paulo de 11 de abril de 2008

sexta-feira, 11 de abril de 2008

A tocha olímpica em Paris





A tocha olímpica passou por Paris dia 7 de abril, uma segunda-feira de uma primavera bastante fria. A cidade despertou com uma fina camada de neve, rara nessa época do ano, que se dissipou logo que a temperatura aumentou um pouco. Fora de Paris, havia muita neve em todo o norte da França. Depois, durante o dia, os parisienses viram uma chuva de gelo se alternar com ligeiras aparições do sol.


Num ambiente tenso, os chineses comandaram o espetáculo do desfile pela cidade. Mas a chama olímpica só foi mostrada aos curiosos em poucos momentos do longo percurso. Na maior parte do tempo, ela desfilou dentro de um ônibus, cercado de policiais franceses e chineses que deslizavam em patins.


O aparato policial que cercou o desfile da tocha olímpica foi comparável ao que acompanha as visitas de chefes de Estado em Paris. Milhares de policiais, de gendarmes e de CRS se espalharam pela cidade, fechando as ruas e impedindo que as pessoas se aproximassem do cortejo. Os militantes da causa do Tibet e manifestantes da ONG Repórteres sem Fronteiras, que reproduziram em bandeiras e t-shirts os anéis olímpicos como algemas, fizeram manifestações. Grupos de chineses e grupos de tibetanos ou pró-Tibet se enfrentaram verbalmente em vários momentos. Em alguns pontos, a polícia interveio para impedir que os militantes pró-Tibet se aproximassem demais da tocha que eles queriam apagar.


Quando a tocha passou no Boulevard Raspail, só se soube que ela estava desfilando pelo aparato policial chinês e francês. Ninguém pôde vê-la pois estava dentro do ônibus. A etapa de troca de atleta diante do Hôtel de Ville (a prefeitura de Paris) foi anulada por ordem dos chineses, irritados com as manifestações pró-Tibet.


Resta saber se Nicolas Sarkozy vai anular sua ida a Pequim para a abertura dos jogos olímpicos. Hoje, a imprensa inglesa confirma que Gordon Brown não irá.

Aznavour no Brasil

Fui entrevistar Charles Aznavour para a Folha de São Paulo. Ele canta no Brasil na semana que vem. Aos 82 anos, Aznavour é o último monstro sagrado da canção francesa. Depois de Aznavour, sobrará um grande número de jovens que fazem uma música simpática mas sem grande interesse.


Aznavour teve uma carreira brilhante, escreveu canções maravilhosas e fez um sucesso planetário. Quem não conhece pelo menos um punhado delas como “La bohème”, “Que c’est triste Venise”, “La mamma” ou “She”? O velho compositor confessou que tem um problema de audição que, no entanto, não o impede de cantar e encher as casas de espetátulo por onde passa. Ele vendeu mais de 100 milhões de discos, compôs mais de mil canções e cantou em diversas línguas suas próprias composições. Perguntei a ele por que apesar de ter vivido na casa de Piaf (para quem compôs e de quem foi muito amigo) não teve nenhum envolvimento amoroso com ela. Ele respondeu que nem toda amizade deve necessariamente passar pela cama. “Éramos cúmplices”, disse.


No fim da entrevista, feita na sede de sua gravadora, ele posou para mim diante de um cartaz de Piaf, que os franceses chamavam “La môme” (a guria, a garota), nome do filme que deu o Oscar a Marion Cotillard.

Liceus novamente nas ruas






Balzac assistiu a tudo impassível. Ele estava numa posição privilegiada, diga-se de passagem.
Toda a “manif” de mais de 30 mil jovens dos liceus e centenas de professores passaram diante dele. Ou do que Rodin imaginou que fosse o verdadeiro Balzac. Essa escultura do gênio feita por outro gênio fica no canteiro central do Boulevard Raspail, olhando para o Boulevard du Montparnasse, por onde mais uma vez desfilaram em passeata os alunos dos liceus públicos de Paris e da banlieue. Raspail cruza o boulevard du Montparnasse no carrefour que outrora se chamou Vavin e hoje se chama Pablo Picasso, como diz a placa. Mas os parisienses ignoram a mudança e continuam a chamar de Carrefour Vavin a Place Pablo Picasso.
Era a segunda manif pelo mesmo boulevard em uma semana. Pela quinta vez em um mês, os lycéens foram nesta quinta-feira, dia 10, às ruas de Paris para protestar contra a supressão de cargos no ensino público. Eles pensam que essa diminuição do número de professores vai ocasionar a queda na qualidade do ensino. O governo nega. Não a supressão. A perda da qualidade.
Na quinta, como na terça-feira, eles desfilaram durante mais de duas horas pelo Boulevard du Montparnasse, vindos do Luxembourg. Para mim, é um prazer sempre renovado ver as passeatas em Paris. Desci para ver e fotografar. Fiz fotos dos estudantes e dos “flics” (policiais, na gíria) que fecharam o Boulevard Raspail com os carros da polícia e faziam um cordão de isolamento. Eles ficam olhando o cortejo passar, protegidos por escudos transparentes, prontos para intervir. Quando me aproximei um pouco mais para fotografar, um deles me disse: “Cuidado, madame, não se aproxime muito pois a senhora pode receber algum projétil”.
De vez em quando, a coisa degenera e os provocadores que vêm da banlieue com o único objetivo de fazer baderna, quebrar vitrines e tumultuar, muitas vezes se divertem agredindo os policiais com pedras ou outros objetos.
Como as “manifs” em Paris fazem concorrência umas às outras, 30 mil jovens nas ruas desfilando para pedir a manutenção da qualidade do ensino público não passa de uma foto-legenda na maioria dos jornais.
Para mim é um deleite. Aproveito para fazer fotos.

A caça aos “sans papiers” faz nova vítima

Baba Traoré tinha 29 anos e tinha vindo à França para doar um rim à irmã. Depois de expirar sua autorização de permanência no território francês, Baba Traoré foi ficando e fazendo pequenos biscates. Um controle policial inesperado numa estação de trem numa cidade de banlieue perto de Paris levou Baba Traoré a uma fuga desesperada. A perseguição terminou com a morte por afogamento do jovem, que se jogou no Rio Marne sem saber nadar.
Mais uma vítima mortal da caça aos estrangeiros ilegais.
No domingo, milhares de pessoas foram às ruas em Lyon protestar contra a caça aos “sans papiers”, esse flagelo que matou recentemente em Paris uma chinesa que se atirou pela janela quando os policiais bateram à sua porta.

Gil dá nota sete a Lula

O nosso ministro da Cultura passou por Paris, onde se apresentou no sábado e no domingo (5 e 6 de abril) na Cité de la Musique. O jornal Libération publicou matéria do enviado especial a Bruxelas. Além da capital belga, o ministro se apresentou em Londres, Rotterdam, Paris e deve continuar sua turnê pela Suiça, Espanha e Tunísia. O jornalista Edouard Launet diz que quando se trata de política, o ministro responde sempre evasivamente, mas faz questão de dizer que quando está em turnê “tira férias não remuneradas do ministério”.
No verão europeu passado, fiz para a Folha de São Paulo uma matéria sobre a apresentação do ministro no Festival de Jazz de Marciac, que festejava 30 anos de sucesso. A Folha publicou a matéria sobre o show e a entrevista que fiz com o ministro ficou inédita. Não pude deixar de perguntar sobre a passagem desastrosa de Pedro Correa do Lago pela direção Biblioteca Nacional, quando desapareceram fotos e gravuras de grande valor. Gilberto Gil respondeu diplomaticamente.
Abaixo, a íntegra da entrevista inédita, que fiz para a revista Trópico e que acabou não sendo publicada.

Gilberto Gil : “Nota sete para Lula, porque nada é perfeito”

Leneide Duarte-Plon, de Marciac

O Brasil é hoje um país melhor, mais justo, e o governo Lula merece nota sete (sobre dez). Quem garante é o ministro da Cultura, Gilberto Gil. “Menos de sete, para mim seria injusto”, dizia, dedilhando seu violão, com ar de quem não tem pressa, pouco antes de subir ao palco do Festival de Jazz de Marciac, na França, no verão passado. Mais cool, impossível.
De passagem pela Europa para a temporada dos festivais de jazz, Gilberto Gil deu uma entrevista exclusiva no seu camarim, no ritmo da Bahia, enquanto fora tudo era correria e nervosismo. Nela, aborda temas difíceis como o confronto entra a imprensa e o presidente Lula, a polêmica saída do presidente da Biblioteca Nacional, Pedro Correa do Lago e explica por que aceitou o convite de Lula para dirigir a cultura por mais quatro anos.
“Apesar das minhas ponderações junto ao presidente, do cansaço, da necessidade de me afastar para retomar mais diretamente as coisas relativas à minha vida artística e às minhas tarefas pessoais, acabei aceitando as ponderações do presidente”, diz o ministro-compositor detalhando essas ponderações.
Mesmo se referindo com respeito ao cantor e compositor Henri Salvador, Gil é categórico quanto à pretensão de Salvador de se atribuir a invenção da bossa nova: “A bossa nova propriamente foi criada lá no Brasil”.


LDP: Como fica a agenda do ministro quando o cantor-compositor viaja?

Gilberto Gil : A do ministério fica com o ministro interino que me substitui, que pode ser o número dois do ministério ou vários secretários que já foram chamados a assumir em diferentes momentos. Eu saio de férias, peço uma licença específica de férias. Tem sido assim durante os últimos 5 anos.

LDP: O que o presidente Lula fez para convencê-lo a aceitar uma segunda gestão no ministério?

Gilberto Gil : Ele ponderou muito, argumentou muito no sentido de que achava interessante, importante que nós déssemos continuidade ao trabalho à frente do ministério, pela liderança que tinha sido estabelecida, pelas relações especiais que foram estabelecidas com os colaboradores do ministério e também com a repercussão do trabalho do ministério, que acabou acolhido em setores amplos da população brasileira, com um desempenho pelo menos razoável. Apesar das minhas ponderações junto ao presidente, do cansaço, da necessidade de me afastar para retomar mais diretamente as coisas relativas à minha vida artística e às minhas tarefas pessoais, acabei aceitando as ponderações do presidente que eram também amparadas por uma certa manifestação razoavelmente ampla de setores culturais do Brasil e da população brasileira, no sentido de uma aprovação do trabalho que tinha sido feito e de uma reiteração para que uma continuidade se fizesse. Foi sso que me convenceu.

LDP: Que nota você daria ao governo Lula, de 1 a 10?

Gilberto Gil : Sete. Porque nada é perfeito. Nota dez é impossível, eu não daria a nenhuma gestão, nem pública nem privada. Mas a gestão do presidente Lula tem sido suficientemente eficaz para pautar de uma forma adequada as questões brasileiras internas, pautar de uma forma adequada as questões das relações do Brasil com o mundo, as questões da inserção do Brasil na mundialização para especialmente pautar as questões brasileiras com a reconhecida dívida social histórica que o país tem através de políticas públicas novas ligadas ao social, criativas com resultados que os números e as estatísticas confirmam como sendo exitosos. Então, menos do que nota sete, para mim seria injusto.

LDP: O presidente Lula tem governado com a imprensa praticamente toda contra ele, fazendo campanha para afastá-lo. Como você avalia essa campanha?

Gilberto Gil : A imprensa brasileira não sei se pode ser responsabilizada por esse tipo de atitude. Setores da sociedade brasileira sim, se manifestam abertamente a favor de uma interdição, de um afastamento, seja ele de que maneira for. Já falaram até em impeachment num determinado momento. Mas a imprensa brasileira... eu não a responsabilizaria, a não ser aqui e ali, manifestações muito explícitas de algum jornalista contra o governo e a favor de uma interdição do governo. Mas no sentido geral, não arrolaria a imprensa brasileira nesse campo dos que efetivamente, explicitamente trabalham pelo afastamento do presidente Lula.

LDP: Você acha que hoje o Brasil é melhor ou pior do que há 5 anos ? Por quê?

Gilberto Gil : Acho que é melhor, porque o mundo é melhor, apesar de haver opiniões em contrário.

LDP: O Brasil é melhor por quê?

Gilberto Gil : Porque está no mundo e tem consciência clara dessa inserção no mundo, dialoga com essa dimensão das suas responsabilidades internacionais de uma forma muito importante, do ponto de vista da economia, do ponto de vista da política, do ponto de vista do respeito aos direitos, do ponto de vista da emergência de novos direitos, da condição cada vez mais difusa dos direitos que se espalham de muitas maneiras em muitos setores da vida, um país cada vez mais cioso da sua condição democrática, com um governo também muito cioso disso, que trabalha nessa direção e nessa proposta, apesar de tudo. Então, eu acho que é melhor, mesmo do ponto de vista das avaliações objetivas que se possa fazer, através dos índices, das estatísticas, dos indícios confirmáveis através de números. O país está melhorando.

LDP: Você nomeou Pedro Correa do Lago presidente da Biblioteca Nacional. Ele saiu no bojo de uma denúncia de desaparecimento de fotos e documentos históricos. Alguns jornalistas disseram que você teria colocado a raposa para tomar conta do galinheiro, já que ele é colecionador. Como ficou essa história?

Gilberto Gil : Nunca vi dessa maneira. A indicação do Pedro na ocasião veio de setores confiáveis ou pelo menos consideráveis do mundo cultural brasileiro. Eu tive na ocasião o cuidado de submeter o nome à apreciação de vários agentes culturais importantes do Brasil, não tive nenhuma contra-indicação.

LDP: As acusações contra ele não tinham cabimento?

Gilberto Gil : As acusações contra ele foram a posteriori, em relação à gestão dele. As áreas incomodadas ou afetadas por uma gestão supostamente incompetente dele tiveram amplo direito e amplas oportunidades de comprovar as suas teses contrárias à gestão dele. Nada o incriminou. O afastamento dele se deu por uma questão política, aí sim, exatamente por uma questão de instabilidade, da dificuldade de ambiente que se criou em relação à presença dele. Foi um afastamento de comum acordo.

LDP: O ano do Brasil na França foi um sucesso absoluto graças ao trabalho do seu ministério, à vontade política do governo e também dos franceses que investiram muito dinheiro, tempo e trabalho na realização de muitos eventos. A França vai fazer o ano da França no Brasil. Vai ser importante para o Brasil?

Gilberto Gil : Acho que sim. Não sei em que medida o governo brasileiro e mesmo a sociedade brasileira e o mundo empresarial teriam capacidade de investir na intensidade com que a sociedade francesa investiu para o ano do Brasil na França. Mas, de qualquer forma, nós já estamos trabalhando junto ao governo brasileiro para que haja dotações específicas de orçamento não somente na cultura mas em outras áreas para fazer face ao custo das iniciativas que terão de ser feitas.

LDP: O ano da França no Brasil é importante para o seu ministério?

Gilberto Gil : Acho muito importante porque a França é um berço da cultura universal com contribuições reconhecidas e indiscutíveis no campo das artes, das ciências sociais, no campo da política e mais recentemente no campo das técnicas, das indústrias, do comércio. E à semelhança do que foi o ano do Brasil na França, é um ano em que a dimensão cultural não é vista no sentido restrito daquilo que diz respeito apenas às artes, às manifestações puramente simbólicas. O papel da academia, o papel do mundo empresarial, da sociedade civil com suas iniciativas, com suas tecnologias sociais, tudo isso tem muita importância para o Brasil, para o mundo e para a francofonia de um modo geral. A França tem responsabilidades históricas com a África, com o Caribe, com setores considerados ainda não completamente incluídos na fruição da riqueza material e simbólica e, portanto, tem importância muito grande. Tudo o que o Brasil venha a fazer para estabelecer uma reciprocidade no ano da França no Brasil, à imagem do que tivemos no ano do Brasil na França, será feito.

LDP: Quando você se apresenta num festival de jazz leva em conta algum repertório especial ?

Gilberto Gil : Não necessariamente. Os festivais de jazz desde há alguns anos vêm ganhando uma abrangência maior do ponto de vista de gêneros e estilos. Não se restringem mais ao jazz como é conhecido. O Festival de Nice, o festival de Juan Les Pins, na França, o de Montreux, na Suíça, Peruggia, na Itália, o da Finlândia. Todos eles já vêm incorporando de há muito elementos do pop internacional, dos estilos mais ligados a determinadas regiões como a música cubana, a música brasileira, a música árabe. Como não sou propriamente um músico de jazz não me atenho ao sentido clássico ou convencional do jazz, faço meu trabalho. Faço o meu repertório da turnê.

LDP: O jornal Le Monde disse em uma reportagem sobre a bossa nova e freqüentemente a imprensa francesa também repete essa informação: Henri Salvador é o inventor da bossa nova. Ele já foi até apresentado na TV francesa assim. O que você acha desse mito?

Gilberto Gil : Tem gente que de alguma maneira está na origem da bossa nova. Por ter sido um dos músicos que fora do Brasil teve mais influência na geração que acabou sendo responsável pela criação da bossa nova como Tom Jobim, João Gilberto, Baden Powell, Carlos Lyra, Roberto Menescal. Toda essa gente teve no Henri Salvador, com também eu e Caetano, uma referência importante pela procedência latina do trabalho. Henri Salvador é de origem antilhana e depois pela própria atitude cool, aquela forma tranqüila, quieta, calma, de encarar a música e a forma de emitir as sonoridades e escolher as canções.

LDP: Mas é um exagero da imprensa francesa atribuir a Henri Salvador a invenção da bossa nova, é um chauvinismo levado ao extremo, não?

Gilberto Gil : Acho que nem ele próprio tem essa presunção. Ele está muito ligado ao Brasil, passou muitos anos lá, numa fase importante da carreira dele, tem muitos amigos brasileiros, tem um carinho especial pela música brasileira. Mas o Chet Baker também foi considerado um dos inspiradores e padrinhos da atitude cool da bossa nova. Todos eles estariam no conjunto de referências importantes para a criação da bossa nova. A bossa nova propriamente foi criada lá no Brasil.

quinta-feira, 3 de abril de 2008

Manifs, um savoir-faire francês













Liceus descem às ruas

“Lycéens en colère”. Este é o leitmotiv das passeatas (manifestations) dos estudantes de liceus (segundo grau) que vêm acontecendo há vários dias aqui em Paris. Hoje, quinta-feira, dia 3 de abril, eles saíram novamente às ruas para protestar contra a supressão de mais de 11 mil cargos de professores em todo o país, a partir do próximo ano letivo que começa em setembro. Muitos professores também participaram das passeatas organizadas pelos estudantes para defender a qualidade do ensino público. A “manif” de hoje passou pelo Boulevard du Montparnasse e logo que ouvi a sirene dos carros de polícia desci para fazer fotos. Os cartazes diziam, entre outras coisas, “De l’argent pour nos cours, pas pour la guerre!”, uma alusão à decisão de Nicolas Sarkozy de diminuir despesas, ao mesmo tempo que envia mais soldados franceses ao Afganistão. Outros cartazes diziam: “A educação custa caro? Tentem a ignorância.”

A organização de passeatas na França é definida por normas legais que envolvem diversos órgãos públicos para organizar a logística do fechamento de ruas e bulevares, desviar o trajeto de ônibus etc. A polícia abre e fecha os cortejos, dando proteção aos manifestantes, aos comerciantes e passantes, garantindo a ordem pública. Manifestar é um direito democrático exercido pelos cidadãos franceses como o direito de respirar. Aqui se faz passeata contra tudo e por tudo. Em Paris, nas épocas mais movimentadas como a que vivemos pode haver mais de uma passeata por semana. E a polícia garante a ordem como mera espectadora, enquanto o desfile for pacífico. Se grupos de “casseurs” (baderneiros) começam a quebrar vitrines ou virar automóveis, ela intervém para reprimir. Mas em geral, os policiais chegam e partem sem precisar agir. A presença deles é meramente persuasiva. Hoje, aconteceu uma pequena agitação e os policiais tiveram que intervir.

Esta é a terceira “manif” dos estudantes de liceu (segundo grau) em um mês. Duas delas passaram pelo Boulevard Raspail e fotografei do alto. Inclusive, quando alguns provocadores viraram um dos carros estacionados no canteiro central do Boulevard Raspail e começou uma correria. Depois de pequeno suspense, a maioria voltou a se impor, o desfile recomeçou e tudo transcorreu em paz. Os policiais nem precisaram intervir.

Na “manif” de terça-feira, dia 1° de abril, fiz a foto do professor que desfilava com as notas do resultado do bac nada brilhante de Nicolas Sarkozy. O bac, como todos sabem, é o exame final de segundo grau que dá direito ao diploma de acesso imediato ao ensino superior na França. Os aprovados podem se inscrever diretamente na universidade, sem novo concurso.

O resultado pífio do jovem Sarkozy foi publicado durante a campanha presidencial. Todos ficaram sabendo que ele nunca foi muito chegado aos livros.

Sarkozy, o melhor amigo dos EUA?

Sobre a decisão do governo francês de enviar mais soldados ao Afeganistão, para lutar com americanos e ingleses contra os talibãs, o respeitado historiador e demógrafo Emmanuel Todd, autor do livro “Après l’empire” (Depois do império) diz que é um erro diplomático e estratégico. Ele pensa que se a França se tornar um vassalo dos EUA, o país corre o risco de perder todo seu peso político.
No Parlamento francês, a bancada socialista condenou unanimemente o alinhamento à política dos Estados Unidos. O Parlamento francês não foi chamado a opinar e só coube aos deputados de esquerda protestar contra novo envio de tropas. A decisão de enviar mais soldados franceses foi tomada pelo presidente Sarkozy, que também decidiu que o país voltaria a fazer parte da OTAN. O General De Gaulle havia retirado a França da OTAN em 1966.

A utopia de Barenboim e do Paz Agora contra a realidade da ocupação

O correspondente do Le Monde em Jerusalém, Michel Bôle-Richard, escreveu há um mês um texto em que comentava a posição de fraqueza de Ehoud Olmert, primeiro-ministro israelense, depois do fracasso da guerra de 34 dias contra o Hezbollah, em julho-agosto de 2006. O jornalista informava que a Anistia Internacional protestou contra o fato de a comissão Winograd, que fez um relatório sobre as causas da derrota de Israel, não ter denunciado “as violações pelo exército israelense das leis humanitárias internacionais bem como os crimes de guerra”. A Anistia Internacional menciona a utilização por Israel de bombas de sub-munição, que disseminaram 4 milhões de “mini-bombas” que ficam no solo e vão explodindo de vez em quando. Depois do fim da guerra, essas “mini-bombas” já mataram no sul do Líbano mais de quarenta civis, entre eles muitas crianças.
Enquanto essa notícia informava sobre bombas que vão explodir por muitos anos ainda, o maestro Daniel Barenboim, criador da orquestra Baremboin-Saïd, na qual tocam músicos judeus, palestinos e de vários países árabes, escrevia no mesmo dia um artigo no mesmo jornal para defender a dupla nacionalidade para israelenses e palestinos. E assinava, “Daniel Barenboim, israelense e palestino”.
Barenboim, filho de judeus nascido na Argentina, que tem a nacionalidade israelense, escreve: “Os israelenses devem estar preparados para a integração da minoria palestina, mesmo que seja revendo certos princípios do Estado de Israel; eles devem também compreender a necessidade e a legitimidade de um Estado palestino ao lado de Israel. Não somente não há alternativa, não há varinha mágica para fazer desaparecer a presença dos palestinos, mas essa integração é uma condição indispensável – moralmente, socialmente e politicamente – à sobrevivência de Israel”.
Barenboim termina seu artigo dizendo: “Em qualquer território ocupado, é o ocupante o responsável pela qualidade de vida do ocupado; no caso dos palestinos, os governos israelenses que se sucederam durante os últimos quarenta anos lamentavelmente falharam a essa tarefa. Os palestinos devem continuar a resistir à ocupação e a lutar contra as tentativas de negação de seus direitos e necessidades fundamentais. Mas, em seu próprio interesse, essa resistência não deve se expressar de forma violenta, que só pode trazer prejuízo à causa palestina. Por outro lado, os israelenses deveriam se mostrar tão preocupados com as necessidades e os direitos dos palestinos quanto são preocupados com os seus próprios. Nós que partilhamos uma mesma terra e um mesmo destino deveríamos todos ter a dupla nacionalidade”.
A utopia de Barenboim era dramaticamente desmentida no Le Monde de hoje. Segundo um relatório de 31 de março da organização não governamental israelense Paz Agora, depois da cúpula de Anápolis de novembro de 2007, na qual o primeiro-ministro de Israel Ehoud Olmert tinha se comprometido cessar totalmente a colonização, 495 novos prédios estão sendo construídos em 101 colônias.
O Paz Agora constata que as colônias continuam avançando por terras palestinas enquanto o presidente Abbas pede que cesse o processo de colonização que pode inviabilizar qualquer acordo de paz e de criação do Estado Palestino.
No início de seu mandato, o presidente Bush garantiu que antes de 2005 o Estado Palestino seria criado.

terça-feira, 1 de abril de 2008

Exposição leva música brasileira ao Quai Branly

Depois que o homem europeu inaugurou a primeira mundialização com as viagens dos descobridores portugueses e espanhóis, no século XV e XVI, a expansão européia deu início a novas culturas.
São essas culturas mestiças que interessam ao historiador Serge Gruzinski, um especialista do Novo Mundo, que se debruçou sobre séculos de trocas e interações de culturas para a extraordinária exposição aberta dia 18 de março, “Planète Métisse – To mix or not to mix” (Planeta mestiço – misturar ou não) no Musée du Quai Branly, inaugurado em 2006 com a maior parte do acervo do Musée de l’Homme. O próprio slogan do Musée du Quai Branly _ que prefere não usar a expressão “artes primitivas” para designar o que não é arte européia _ diz que é “lá que as culturas dialogam”. A exposição que inclui um ciclo de conferências, “Cidades mestiças”, e um ciclo de cinema “Mestiçagens da imagem, mestiçagens do olhar”, vai até julho de 2009.
“Objeto mestiço é a expressão de uma criação humana que surge na confluência do mundo europeu com o das sociedades da Ásia, da África e da América”, define Gruzinski. As sociedades que se construíram a partir da interação com os europeus produziram objetos e artes mestiças, frutos da colonização e da mundialização.
Concebida em espaços curvos divididos por finas correntes que formam uma espécie de cortina facilmente transposta com um movimento de mão, a exposição leva o visitante a abrir caminho para entrar e sair dos nichos. A própria concepção da mostra já é uma metáfora dos espaços geográficos que as culturas atravessam para formar uma nova cultura chamada mestiça, que subverte as noções de antigo, primitivo (primitif), neo-clássico ou primário (premier).
“Os objetos mestiços expostos são o resultado tangível do encontro das diferentes partes do mundo e das interações entre elas. Um bom exemplo é o Codex Borbonicus, um calendário que não é nem clássico, nem primitivo, nem étnico nem folklórico: é tudo isso pois pertence ao mundo dos antigos povos indígenas que habitavam o México e ao dos conquistadores espanhóis”, explica Serge Gruzinski, que fala fluentemente o português, já fez conferências na USP e ensina na Universidade Federal do Pará.
Outro exemplo são os objetos criados no Japão refletindo a fé católica introduzida pelos europeus: um altar móvel, o Cristo em marfim, a imagem de São Sebastião. Da Índia, vieram objetos também em marfim representando Cristo como o Bom Pastor mas lembrando, ao mesmo tempo, Krishna e Sidhaarta (Buda) meditando. Nessas representações de Goa, a arte cristã se mistura a tradições artísticas e iconográficas locais. Um dos objetos da exposição é uma escultura da Rainha Vitória feita por uma artista iorubá, na qual a soberana inglesa aparece com traços levemente africanizados.
O Brasil, uma das sociedades mais mestiças do planeta, não somente na constituição racial mas na cultura, faz a síntese das músicas mestiças, produto da herança índia, africana e européia. Numa sala, podem ser ouvidos alguns dos muitos gêneros musicais brasileiros, do lundu ao samba e à bossa-nova, passando pelo rock urbano e pelo afro-samba. O som “made in Brasil” monopoliza o ambiente, saindo de tubos iluminados em neon, verdes e amarelos. É só aproximar o ouvido da extremidade para ter uma amostra de um gênero musical brasileiro. Mas o catálogo da exposição é mais abrangente: ele explica que existem mais de 500 gêneros de música mestiça, entre elas a rumba, a salsa, o tango e o jazz. O ministro Gilberto Gil vai visitar a exposição dia 7 de abril.
O “Planeta mestiço” termina com as incríveis mestiçagens que o cinema foi capaz de realizar. As produções de Hollywood marcando o cinema asiático ou a América vista sob o olhar chinês : Wong Kar-wai recriando a Argentina a partir da China de Hong-Kong ou Ang Lee explorando os Estados Unidos a partir da China de Taiwan.