domingo, 21 de fevereiro de 2010

Feminismo versus feminismo

A filósofa e feminista Elisabeth Badinter não é nunca consensual. Seu novo livro não para de despertar polêmica em Paris. Le conflit. La femme et la mère (editora Flammarion) é uma denúncia do que ela chama de “ofensiva naturalista” que, a seu ver, é um retrocesso na luta pela emancipação das mulheres e pela igualdade de direitos entre homens e mulheres.
A filósofa, especialista do século XVIII francês, já tinha provocado grande polêmica na década de 80 ao escrever um livro para defender a tese de que o “instinto materno não existe”. L’amour en plus: l’histoire de l’amour maternel (1980) é um marco no feminismo francês. Seu novo livro se insurge contra as pressões sobre as mulheres para terem filhos, serem “boas mães” e amamentarem o maior tempo possível.
Há, segundo ela, uma tendência na sociedade em considerar anormais as mulheres que não querem ter filhos. Ela denuncia, ainda, a ideologia naturalista que tenta impor o aleitamento materno como a única opção aceitável para uma “boa mãe”. Badinter mostra que de 1980 para cá aumentou muito o número de mulheres que amamentam na França, onde 70% das mulheres deixam a maternidade amamentando o bebê. Com o incentivo ao aleitamento materno vindo de todos os lados, as que preferem dar a mamadeira se sentem culpadas.
A vida profissional das mulheres é a primeira coisa a ser sacrificada em nome da nova forma de ser mãe, segundo Badinter, que dá exemplos recentes de políticas francesas que incentivam o aleitamento e até mesmo, em nome da ecologia, as fraldas não-descartáveis. Segundo ela, essa ideologia naturalista acrescenta uma nova tarefa ao cotidiano das mulheres pois ela não vê nenhum homem disposto a lavar fraldas de pano depois de chegar do trabalho. Detalhe : na França a classe média não tem empregada doméstica e muitas vezes nem mesmo uma faxineira semanal.
“O feminismo está dividido em dois desde os anos 80: há o feminismo naturalista, diferencialista, vitimizado, que se impôs na sociedade ocidental. O tema da independência econômica das mulheres não se impõe mais e o feminismo que defende a igualdade parece estar adormecido” constata Elisabeth Badinter em entrevista ao Le Monde.
Os principais jornais e revistas abriram suas páginas para entrevistas com Badinter e deram voz às feministas que dela discordam. E são muitas a discordar. Libération publicou um texto assinado por quatro mulheres (uma engenheira, uma jornalista, uma assistente de direção e uma editora) cujo título não podia ser mais claro : “O feminismo de Badinter não é o nosso”.
Quanto a Belinda Cannone, uma pensadora do feminismo, ela lançou um livro chamado La tentation de Pénélope no qual atesta essa valorização da maternidade, uma “velha armadilha” e diz que a atual geração de mulheres se vê tentada a desfazer o que a outra geração construiu com lutas e longos combates. La tentation de Pénélope defende o universalismo, “que suspende toda diferença entre os seres para fazer deles cidadãos e pessoas, livres e iguais em direito”. Para Belinda Cannone, se as mulheres têm um útero, elas têm antes de tudo um cérebro. Cannone argumenta que quando podem exercer o poder, as mulheres nem sempre o fazem diferentemente dos homens. “Quando as mulheres fazem parte do exército elas não manifestam necessariamente virtudes morais superiores”. Quem não lembra da foto da jovem soldada pisando em prisioneiros nus e amarrados como cachorros na prisão iraquiana de Abou Ghraib?

Atenção, moedas falsas

Quando o euro foi lançado, surgiram álbuns especiais para colecionadores. Ganhei um deles e comecei uma coleção que já tem quase todas as moedas de dois euros, um euro e as diversas de centavos organizadas por país. As mais difíceis de se encontrar em circulação são as de três países europeus insignificantes geograficamente mas que “fabricam” seus próprios euros: Vaticano, San Marino e Mônaco.
Outro dia, meu marido chegou com um euro totalmente novo para minha coleção. Ele o viu rapidamente e pensou que eu não tinha. Me pareceu tão estranho que olhei duas vezes para saber de que país ele vinha. E descobri: de Botsuana, país que ainda não entrou para a União Europeia por vários motivos. O primeiro deles é não estar na Europa.
A moeda tem um número 5 mas foi dada como sendo um euro, com a qual tem alguma semelhança. Conversando outro dia com a caixa de uma loja, ela me disse que existem várias moedas parecidas com o euro que são postas em circulação por espertos de diversas latitudes.
Como a moeda de Botsuana não deve valer grandes coisas, quem recebe uma no lugar do euro sai sempre perdendo. A não ser que seja colecionador de moedas exóticas...

sábado, 13 de fevereiro de 2010

Um jornalista israelense contra a indiferença do mundo



"Eu amo Gaza".

Essa frase não saiu da boca de nenhum membro do Hamas. É o título do prefácio escrito por Gideon Levy para a edição francesa de uma coletânea de seus artigos publicados na coluna Twilight Zone, no Haaretz, jornal de Israel do qual ele é um dos principais jornalistas. O livrinho se chama “Gaza – articles pour Haaretz – 2006-2009”, publicado pela editora La Fabrique de Eric Hazan.

“Eu me considero um patriota israelense”, diz Levy ao leitor francês. “Acho que os verdadeiros amigos de Israel são os que protestam contra sua política, contra a ocupação, contra o bloqueio e contra a guerra. A verdadeira amizade não consiste em dar sempre mais dinheiro ao drogado mas a estimulá-lo à desintoxicação”.

No prefácio, Gideon Levy (membro da conferência antiimperialista Axis for Peace organizada pelo Réseau Voltaire) conta que desde 2006 ele e todos os jornalistas israelenses estão proibidos de ir a Gaza, pelo bloqueio midiático imposto por Israel. Por isso, nem ele nem qualquer outro jornalista do mundo pôde cobrir a guerra de dezembro de 2008/janeiro de 2009 de Israel contra Gaza (“Plomb durci”), uma guerra “abominável, inútil, sem nenhum objetivo mas apoiada por uma sociedade entregue a uma onda de nacionalismo, militarismo, lavagem cerebral, mentiras, denegações e dissimulação”.


“Uma guerra que não foi uma guerra pois do outro lado não havia praticamente nenhuma resistência, nenhum combate. Foi uma ofensiva selvagem dirigida contra a população mais impotente do mundo, cercada e prisioneira, que não tinha para onde fugir, nem mesmo para o mar. Bombas de fósforo que queimam em carne viva, bombas de fragmentação que dispersam pregos para todos os lados, aviões com ou sem piloto, que lançam mísseis, bombardeios em todo o território, centenas de inocentes mortos simplesmente pelo fato de serem de Gaza. Os habitantes de Gaza, que são na maior parte filhos de refugiados que já viveram antes o terrível drama da criação de Israel, acabam de viver mais um episódio da tragédia que é suas vidas no dia-a-dia. Neste grande campo de concentração que é a Faixa de Gaza, eles são muito pobres, mas continuam humanos e calorosos. São prisioneiros mas continuam abertos aos outros”.


Talvez os leitores deste blog reajam dizendo que essa guerra desigual e injustificada foi condenada pela comunidade internacional. Como? Onde? Quem condenou? Bush nos extertores de seu (des)governo deu o sinal verde aos israelenses e fez um silêncio ensurdecedor à invasão e bombardeio de Gaza. Quanto à União Europeia, Gideon Levy relembra, para quem esqueceu, que no momento mais duro da guerra, quando choviam bombas destruindo tudo em Gaza (2400 casas destruídas, 30 mesquitas, 121 fábricas, 29 escolas, entre elas uma sob a proteção da ONU) uma delegação da presidência da União europeia foi a Jerusalém para dar o apoio da UE ao primeiro ministro Ehoud Barak! Em nome de todos os europeus, que não foram ouvidos para saber se estavam de acordo !

Gideon Levy diz que hoje a ocupação é mais “brutal, perversa e desumana do que nunca”. Mas quando Israel se retirou de Gaza ele não acreditou em mudança, como acreditara nos acordos de Oslo na década de 90. Sabia que com a retirada dos judeus de Gaza “a ocupação apenas mudava de forma. O carcereiro tinha saído da prisão e agora ia fechá-la pelo lado de fora. Gaza continuava sendo a maior prisão, o campo de torturas mais cruel do mundo”.

Levy conta que um dia, estava em Gaza quando encontrou um colega da TF1 francesa fazendo uma matéria (antes, pois, de 2006). Eles foram ver a casa de uma palestina paralítica que perdera a filha que cuidava dela, vítima de uma bomba israelense. Ele disse ao colega francês: “Nesses momentos tenho vergonha de ser israelense porque esse míssil foi jogado em meu nome”. O colega lhe telefonou depois para dizer que teve de cortar seu depoimento pois a TV francesa não poderia mostrar um israelense dizendo isso. Os telespectadores poderiam ficar furiosos. Gideon Levy conta que lamentou profundamente pois tudo o que escreve e diz é justamente para despertar alguma reação. Ele quer que os israelenses se indignem com o que é feito em nome deles, que não venham a dizer no futuro que não sabiam das atrocidades praticadas hoje.


Na última vez que foi a Gaza, Gideon Levy viu o corpo de uma professora da escola Indira Gandhi. A moça de trinta anos jazia coberta de sangue, cercada pelas crianças da escola maternal. As crianças viram quando a bomba matou a professora. Desenharam o que viram, uma pessoa deitada no chão coberta de sangue, com as crianças em torno do corpo e um tanque de guerra israelense no fundo. A bomba tinha sido atirada do tanque contra a jovem professora que estava não muito longe de suas crianças.

“O mundo continua a ignorar Gaza e a olhar em outra direção”, diz Levy. “Por isso, o Haaretz é um raio de sol no meio das trevas que engoliram Israel”.

Algum jornal brasileiro já teve a ideia de publicar os artigos de Gideon Levy? Algum editor brasileiro pensará em traduzir esse livro?

Provavelmente, não. Quanto ao “filósofo” Bernard-Henri Lévy, o midiático BHL, a imprensa brasileira o trata como um grande intelectual. Seus livros são traduzidos e devem ter leitores, pois os editores não editariam para perder dinheiro. BHL não incomoda. É um aliado incondicional dos EUA e de Israel, perfeito para nossa imprensa e nossos formadores de opinião.

Nenhum jornal francês resenhou o livro de Gideon Levy, a não ser o L’Humanité que deu duas páginas de entrevista com o jornalista. Na França, o jornal comunista é o único a tratar do Oriente Médio com isenção. Nem mesmo o Le Monde, conhecido como “quotidien de référence” falou do livro de Gideon Lévy até hoje.

Em compensação, os dois livros de BHL lançados esta semana (uma coletânea de artigos e um texto sobre uma aula de filosofia) tiveram resenhas em todas as revistas semanais e nos principais jornais (inclusive Libération, do qual o rico “filósofo” é acionista).





***Fotos de Leneide Duarte-Plon da passeata contra a guerra de Israel em Gaza, janeiro de 2009, Paris. Na terceira foto, a polícia francesa faz a proteção aos manifestantes com carros blindados. O cartaz da última foto diz: "Aqui as crianças perdem seus ursinhos. Em Gaza, são os ursinhos que perderam suas crianças".


sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Véu e erotismo



Tarde de verão em Montreux, Suiça
Foto de Leneide Duarte-Plon



O véu das mulheres muçulmanas continua a ser debatido na França. Três centenas de mulheres que usam o véu integral (nicab, chamado indevidamente de burca por alguns jornais) servem de pretexto para desviar o debate dos reais problemas do país : o desemprego, a falta de habitações decentes para todos os franceses e um certo desencanto com os políticos, a um mês das eleições regionais. Nessa eleição de março, os franceses vão eleger os presidentes das 22 regiões. Atualmente, 20 dos presidentes são socialistas.
Segundo Georges Vigarello, grande especialista da história do corpo, autor do livro “Love me”, nos países muçulmanos sempre existiu uma estética do véu, da retirada do véu, do erotismo do rosto e do olhar. Pelo olhar, tudo pode ser dito. Daí a preocupação de algumas seitas muçulmanas de cobrirem totalmente as mulheres, inclusive os olhos.
Um dado curioso: a República islâmica do Irã, onde as mulheres só podem mostrar em público as mãos e o rosto, tem o mais alto índice de operações plásticas do nariz do mundo. Já que só resta o rosto, as iranianas se maquiam muito e fazem o que podem para valorizá-lo.
Depois que recebeu o relatório da comissão parlamentar que estudou o problema, o governo francês pretende editar uma lei para proibir o uso do véu integral no espaço público. Mas vai com calma para não correr o risco de votar uma lei que pode vir a ser considerada inconstitucional pelo Conselho Constitucional, guardião da Constituição.
A propósito: o prêmio Nobel da paz de 2006, o indiano Muhammad Yunus, criador do microcrédito, é contra a proibição. O jornal Libération, o convidou, como já fez outras vezes com filósofos como Alain Badiou, a participar da edição do jornal de 4 de Janeiro. Todas as páginas tinham um comentário de Yunus sobre a principal notícia da página. Ele conta que no início de sua atividade com o microcrédito, em Bangladesh, só emprestava a mulheres.
“Todo mundo era contra e dizia que eu iria destruir a cultura de Bangladesh. Depois, ganhei o Nobel. Não compreendo que a França queira proibir o véu integral. Para mim, a mulher deve ter a liberdade de escolher”.

Arte islâmica e sonho de paz

Até o dia 14 de março quem passar por Paris pode ver uma das mais maravilhosas exposições dos museus franceses: Arts de l’Islam, no Instituto do Mundo Árabe, cujo prédio de Jean Nouvel já vale a visita. Todas as obras expostas pertencem à coleção do milionário Nasser David Khalili, um judeu iraniano que vive na Inglaterra desde 1978. O milionário colecionador possui 20 mil objetos em sua coleção de arte islâmica, milita para a paz e a compreensão entre judeus e muçulmanos e para isso criou a Fundação Maimônidas.
A exposição Artes do Islã consta de 500 obras de arte da coleção Khalili provenientes de diversos países islâmicos : desenhos, objetos de uso quotidiano, como vasos, cofres, jóias, ligados ou não à religião muçulmana (há também muitas cópias ilustradas do Corão, datando de diversos séculos com iluminuras absolutamente fantásticas). Os objetos são provenientes da Síria, do Irã, do Iraque, do Afeganistão, da Tunisia, do Marrocos e da Argélia, entre outros. Para os curadores da mostra, Aurélie Clémente-Ruiz e Eric Delpont, duas obras já valeriam a visita: o Shah Namah, Livro dos Reis, a grande epopéia persa, de 60 mil versos e 258 miniaturas realizadas entre 1520 e 1540 pelos melhores artistas e notável pela precisão do desenho, infinita nuance de cores e sutileza das sombras.
O outro é o manuscrito original da história universal de Rashid-Al-Din (1247-1318), um judeu de Hamadan, que se converteu ao Islã para ser vizir. Al-Din era um estudioso de teologia, história e agricultura e é o autor do Jami al-tazarikh, “o compilador da História”, escrito em persa e publicado em Tabriz, no Irã, em 1314-1315. As páginas expostas são da edição original e tratam dos costumes, da geografia, guerras, mitologias e crenças. As cenas ilustradas tratam da vida de Buda e da Bíblia : a Arca de Noé, Jonas e a baleia ou a morte de Moisés no monte Nebo.

Guerre en Orient ou paix en Méditerranée ?

O filósofo Etienne Balibar e o físico Jean-Marc Lévy-Leblond assinaram um texto com esse título no Le Monde em 2006, antes, portanto, da guerra que Israel fez contra Gaza, para aproveitar os últimos dias de governo do “padrinho” da colonização, George Bush, em dezembro de 2008 e começo de 2009.
Balibar e Lévy dizem em certo trecho: “O Estado sionista desenvolveu uma forma de democracia política (regime parlamentar, garantias constitucionais, liberdade de opinião) e atinge, apesar de grandes desigualdades sociais, um nível de sucesso econômico e cultural elevado (graças também a uma ajuda americana maciça e permanente como nenhum outro Estado jamais teve). Mas ele instituiu nos diferentes territórios que controla uma forma de apartheid (que o geógrafo Oren Yiftachel chama de etnocracia) cuja condição de existência é a completa prisão das populações dominadas, o controle de seus recursos materiais, a destruição progressiva de suas instituições culturais e a violência assassina contra suas ações de resistência mesmo não-violentas e contra suas direções políticas autônomas”.
Esta semana, o jornal L’Humanité (comunista) publicou uma longa entrevista com Gideon Levy, jornalista do jornal israelense Haaretz, de passagem por Paris para lançar um livro com suas crônicas. O título da entrevista era: “Como falar de paz e construir colônias?”.
Comentário e trechos da entrevista ficam para a semana que vem.


Água, um bem comum da humanidade

Vi Danièle Mitterrand sendo entrevistada na TV sobre seu último livro. Que mulher admirável. A viúva de François Mitterrand criou a ONG France Libertés que milita no mundo inteiro por um mundo mais justo, a começar pelo direito de todo ser humano de acesso à água potável, como um direito inalienável. A luta de Danièle Mitterrand é no sentido de fazer com que os que vivem da exploração da água como uma mercadoria cessem de ganhar dinheiro com o que ela considera um bem comum da humanidade.
Os principais pontos dessa luta são: a instauração de um governo público internacional para a gestão e o acesso à água para todos; auxílio a todas as prefeituras que quiserem aderir a essa gestão pública democrática e transparente da água.
Aos 86 anos, Danièle Mitterrand continua sua militância política pela justiça social.


O bonapartismo de Sarkozy

ler em



Véu integral : proibido proibir

Mulheres que se escondem por trás de alguns metros de tecido podem representar uma ameaça à République Française? Quem são? Perigosas terroristas? Não, apenas poucas centenas de mulheres muçulmanas que usam o véu integral chamado indistintamente de burqa (burca) ou niqab (nicab) pela imprensa. Muitos dos articulistas chamados a escrever sobre o tema na mídia francesa veem no debate uma islamofobia que não é admitida por quem defende uma lei que proibirá o uso do véu integral. Os defensores da lei alertam contra o fundamentalismo islâmico do qual essas mulheres seriam a ponta do iceberg.
Burca é o véu total, aquele que faz uma muçulmana parecer um fantasma com uma pequena tela no lugar dos olhos. Esse é o “uniforme” das mulheres do Afeganistão, quase sempre azul, imposto pelos fundamentalistas talibãs. Nicab é outro tipo de véu muçulmano total, em geral preto, que cobre o corpo e a cabeça, deixando uma fina abertura para os olhos. Até mesmo as mãos são cobertas com luvas pretas. Nenhum centímetro de pele pode estar à mostra.
A imprensa francesa e os políticos resolveram batizar o nicab definitivamente de “burca” e foi essa denominação que se impôs para designar o véu negro que deixa apenas os olhos de fora. Mas a verdadeira burca afegã é tão rara na França quanto um urso polar nas ruas do Rio de Janeiro.
No ano passado, os políticos franceses, sob a iniciativa de um deputado comunista, resolveram criar uma comissão parlamentar para estudar o assunto e discutir a oportunidade de uma lei proibindo o véu total (nicab), rebatizado de “burca”.
A comissão parlamentar se reuniu durante seis meses (de junho de 2009 a 26 de janeiro de 2010), audicionou mulheres muçulmanas, teólogos, sociólogos, associações feministas e imãs (religiosos muçulmanos). No dia 26 de janeiro, a comissão divulgou um relatório que preconiza uma lei proibindo o véu integral nos serviços públicos e nos transportes.
Durante seis meses os jornais e as revistas não pararam de discutir o uso da “burca” nos espaços públicos (escolas, universidades, transportes públicos). Não havia crise, desemprego, nada se passava de importante no país. O futuro da França depende de uma lei proibindo a burca.
Há argumentos para proibir o véu total: a segurança pública, a dignidade e a liberdade das mulheres. E há argumentos para liberar seu uso : a liberdade individual de se servir de símbolos religiosos para professar uma fé, o caráter inofensivo do uso de uma determinada vestimenta.
Confesso que ao ver uma mulher totalmente escondida sob um manto preto tenho pena dela por ter interiorizado a mentalidade misógina da religião muçulmana. Mas e a misoginia da religião judaica que relega a mulher a um papel subalterno? Não foi o judaísmo que criou Eva, o agente da tentação de Adão? E a misoginia da igreja católica que afastou as mulheres de toda participação na hierarquia da igreja e que impede as mulheres de dirigirem uma missa? A misoginia precisa ser combatida com pedagogia e não com leis restritivas. As mulheres devem se libertar pela razão, pelos estudos, pela argumentação. Proibir o véu é proibir a proibição de mostrar o corpo feminino ao olhar masculino.
Não seria mais fácil fazer pedagogia para libertar as mulheres do jugo machista de todas as religiões mostrando que o véu já é ele mesmo uma proibição ao olhar masculino? Esse mesmo machismo original de todos os mitos e interditos que veem na mulher e no seu corpo a origem de todo mal? O corpo da mulher causa medo aos homens e por isso é preciso escondê-lo. Para quem se interessa pelo assunto recomendo o excelente livro “La psychanalyse à l'épreuve de l'Islam”, do psicanalista Fethi Benslama.
O presidente Sarkozy chegou a declarar que “a burca não tem seu lugar na França em nome da dignidade das mulheres”. Em nome da liberdade e da dignidade da mulher muitas associações feministas se declaram favoráveis à lei proibindo o véu. As mulheres que usam o véu integral são vistas como oprimidas por fundamentalistas islâmicos.
Para combater o fundamentalismo islâmico, a França pode tomar a pior decisão. Ao proibir o uso do véu total, a lei pode impor a prisão domiciliar a muitas mulheres que se recusarem a retirar o véu. Muitas declaram que preferem não mais sair de casa a retirar o véu. Outras falam em emigrar para países islâmicos. Outras, como Oum Aldina recorrerão ao Parlamento Europeu contra uma lei que julgam liberticida:
“A lei pode ser votada mas não tirarei meu véu”, diz essa muçulmana que mora na França e usa o nicab que só deixa os olhos à mostra. Por cima, ela ainda usa um outro véu de tecido negro muito fino. Oum Aldina promete ir buscar Justiça no Parlamento Europeu pela liberdade de usar o véu integral. “Ninguém pode me impedir de me vestir como eu decidi”.
O “New York Times” fez um editorial criticando a possível adoção de uma lei francesa. Certamente ela não vai passar despercebida pelos fundamentalistas islâmicos que terão mais um motivo para se sentirem perseguidos no Ocidente.

Daniel Bensaïd

Ele pertenceu a uma geração militante que participou ativamente de maio de 68 na França. O filósofo marxista Daniel Bensaïd morreu este ano em Paris, aos 64 anos sem ter abandonado a bandeira da resistência, foi até morrer um defensor do marxismo e um crítico do capitalismo. Autor de diversos livros sobre marxismo, um dos fundadores com Alain Krivine da “Liga Comunista Revolucionária”, rebatizado no ano passado de Novo Partido Anticapitalista, Bensaïd mereceu um elogio de meia hora no seminário mensal de duas horas que o filósofo Alain Badiou dá na Ecole Normale Supérieure. Badiou saudou a coerência do “companheiro distante”, a inteligência e a luta do filósofo desaparecido. Badiou foi maoísta na juventude e Bensaïd, trotskista.
Um dos últimos trabalhos de Daniel Bensaïd foi o livro “Un nouveau théologien B-H Lévy”, uma resposta ao livro de Bernard-Henri Lévy “Ce grand cadavre à la renverse”. Além disso, ele escreveu o prefácio da nova edição do livro de Karl Marx “Sur la question juive” (Sobre a questão judaica, La Fabrique, Paris, 2009).