segunda-feira, 28 de novembro de 2011

SERENÍSSIMA VENEZA


O crítico de arte e ex-diretor do Musée Picasso de Paris, Jean Clair, não gosta de arte contemporânea, que escreve entre aspas. Não foi visto em Veneza, que neste verão estava mais bonita, mágica e mais misteriosa que nunca. A cidade dos doges, onde Mitterrand passava parte do verão todos os anos com Mazarine e Anne Pingeot, é uma eterna fonte de descobertas e alumbramento. Redescobrir Veneza com o Dictionnaire amoureux de Venise de Philippe Sollers foi um dos prazeres do mês de agosto, que passamos sempre na Itália, a menos que o Brasil se imponha por motivos de força maior.
Em Veneza, um concerto de um grupo de música de câmara tocando « As quatro estações » de Vivaldi dentro de uma igreja é uma garantia de que a viagem já valeu a pena. Um jantar no restaurante do Hotel Monaco & Grand Canal é um programa romântico e chique. A evitar os passeios de gôndola tão caros a americanos e japoneses.
Na Bienal de Veneza deste ano havia muitas obras, muitos artistas mas raros os que realmente diziam algo de novo. Entre eles, o suíço Thomas Hirschhorn, com sua instalação Crystal of Resistance, que tem essa pretensão. 
« Com essa obra quero criar uma forma que permita pensar algo que não existe, algo novo, inesperado. Com essa forma quero criar uma verdade que resiste aos fatos, às opiniões, aos comentários », escreveu na apresentação de sua obra.
A instalação dele ocupava um espaço muito grande, caótico. Tem o mérito de não deixar o espectador indiferente. Provoca, incomoda. Será isso o novo ?

… e a Bienal de Lyon

Lyon, na França, organizou este ano a estupenda, soberba 11a Bienal. Com o título « Une terrible beauté est née » (Uma terrível beleza nasceu), dos versos do poeta inglês Yeats, a Bienal de Lyon nos fez viajar em obras de artistas do mundo todo, sob a curadoria de Victoria Noorthoorn, uma argentina que num só sobrenome consegue ter quatro O.
A Bienal de Lyon, louvada em prosa e verso por toda a imprensa francesa, sem nenhuma conotação de chauvinismo pois os artistas franceses brilham pela ausência, pode ser vista até  31 de dezembro.
Na Bienal de Lyon, brilham os brasileiros Cildo Meireles, que ocupa todo um andar do Musée d’Art Contemporain com uma obra incrível (FOTOS) chamada « La Bruja », feita de milhares de metros fios de lã preta. No pavilhão chamado Sucrière, uma sala especial homenageia Arthur Bispo do Rosário com diversas obras e é a única sala onde não se pode fazer fotos. Os poemas de Augusto de Campos (FOTO) estão salpicados em diversas paredes da Sucrière. A brasileira Daniela Thomas também está presente na Bienal com a mise en scène de uma obra de Beckett,   « Breath ».  

Na Bienal de Lyon descobri o trabalho de três grandes artistas : o polonês Robert Kusmiroski com sua obra Stronghold, (FOTO)
o peruano Fernando Bryce, com a crônica de uma memória coletiva, um trabalho extraordinário sobre a vertiginosa passagem do tempo e de fatos que se acumulam em jornais, e a tcheca Eva Kotatkova, que em obras terrivelmente perturbadoras critica a formatação de cérebros pela escola. Grandes descobertas.

Danielle Mitterrand, a eterna indignada 

É a história de uma dama, uma grande dama, que morreu aos 87 anos. Uma dama que sempre detestou o epíteto de « première dame ». O papel de « dame patronesse » não era o seu.
Depois que Stéphane Hessel publicou Indignez-vous, best-seller planetário que vendeu mais de 2 milhões de exemplares somente na França e deu origem ao movimento mundial dos indignados, a resistência e o engajamento ganharam novo adjetivo. « Indignado » é o novo resistente. O adjetivo designa os que resistem à ditadura do mercado que gera desemprego, precariedade e aprofunda as desigualdades entre ricos e pobres.  
Danielle Mitterrand foi indignada a vida toda. Primeiramente, como resistente numa rede da Resistência francesa, arriscando a vida para combater os ocupantes nazistas na França. Na Resistência, aos 17 anos, ela conheceu François Mitterrand, o « capitaine Morland ».  Ambos atuavam com nomes de guerra. Logo depois se casaram e Danielle continuou sendo « a consciência de esquerda » de François Mitterrand, como reconhecem os amigos socialistas.
Danielle Mitterrand sempre teve vida própria e nunca foi uma sombra do marido. Ao contrário. Quando ele era presidente (de 1981-1995) criou dificuldades para o Quai d’Orsay por seus engajamentos internacionais em favor dos kurdos, da libertação do Tibet, do Front Polisario no Marrocos, do movimento do comandante Marcos, no México. Chegou a escapar de um atentado no Kurdistão que matou diversos de seus colaboradores. Foi uma indignada de todas as lutas contra a opressão e pela liberdade.
A última causa de Danielle Mitterrand foi a luta pelo direito de todo ser humano ter acesso à água potável. Para isso, enfrentou interesses de multinacionais poderosas que querem transformar a água em um produto como outro qualquer. Em 1986, Danielle Mitterrand criou a Fundação France-Libertés que atua no mundo inteiro, inclusive no Brasil, em defesa de quase um bilhão de pessoas que não têm acesso à água potável. Ela esteve presente em todos os encontros do Forum Social Mundial para defender o direito de todo ser humano a esse bem que ela queria ver inscrito como um direito fundamental de todo ser humano. A indignada Danielle participou da criação da cadeira de direitos humanos da UNB, juntamente com o senador Cristovam Buarque. Este ano ela se encontrou em Paris com o chefe Raoni para apoiá-lo na luta contra a barragem de Belo Monte.
A vida pessoal de François Mitterrand e Danielle foi a de um casal que se amou e se respeitou sempre. Na década de 60, firmaram um compromisso : cada um teria vida privada independente mas o casal se manteria unido. Esse era o pacto que tinham quando o ex-ministro e deputado Mitterrand foi eleito presidente da República em 1981. Danielle tinha um companheiro, um professor de educação física, ele teve diversas relações. De uma delas, nasceu Mazarine, que o presidente reconheceu. Danielle participou da cerimônia do enterro de Mitterrand com seus dois filhos, tendo Mazarine entre os dois irmãos. Anne Pingeot, companheira de Mitterrand e mãe da jovem Mazarine estava na segunda fila, discretamente vestida de preto. As cenas do enterro mostraram aos franceses a dignidade e a classe de Danielle que abraçou Mazarine diante das câmeras do mundo todo.
Danielle foi enterrada onde nasceu, em Cluny, cidade medieval conhecida por sua Abadia monumental de extraordinária beleza. Mazarine, filha de François Mitterrand com Anne Pingeot, foi a Cluny para a cerimônia do enterro da viúva de seu pai. E foi emocionada que lançou uma rosa vermelha no túmulo de Danielle, eterna combatente, que viveu 87 anos indignada com as desigualdades e engajada nas lutas pelos direitos humanos.

DSK e a teoria do complô
Todos os que acompanham de perto na imprensa francesa o que se chama « l’affaire DSK » pensavam que com as revelações do caso do hotel Carlton de Lille em que o nome do ex-diretor do FMI aparece como consumidor de uma rede de prostituição, tínhamos chegado ao fim das revelações bombásticas. Mas neste fim de semana, o Le Monde revela que um jornal americano levanta a tese de um possível complô contra o ex-candidato às eleições primárias socialistas. Seu telefone celular Blackberry teria sido grampeado e, mistério, desapareceu sem nunca ter sido encontrado. A tese do complô pode estar sendo montada pelos advogados de defesa com a cumplicidade de um jornalista de investigação para desacreditar de vez a causa de Naffissatou Dialo, que prossegue uma ação civil contra DSK na Justiça americana.
Na França, a Justiça continua a investigar a rede de prostituição de Lille e os SMS de DSK confirmando com amigos festas com prostitutas em diversas cidades, inclusive Paris e Washington.  
Quem fala e compreende bem francês e quer entender como Dominique Strauss-Kahn foi parar na história sórdida de uma rede de prostituição de luxo de Lille pode abrir o site e ver um infográfico sonoro que explica tudo :

« Cézanne e Paris » e « A aventura dos Stein » : um gênio de volta à cidade que o consagrou
Leneide Duarte-Plon, de Paris (publicado na revista Carta Capital)

 « Cézanne é o pai de todos nós », afirmava Picasso, que sabia o que dizia. O catalão era um admirador incondicional do artista que deixou sua Aix-en-Provence natal para se instalar em Paris em 1861, aos 22 anos. A frase é também atribuída a Matisse pelo escritor e colecionador Leo Stein, o que prova que ambos reconheciam em Paul Cézanne um precursor e um mestre.
Naquela segunda metade do século XIX, mais que hoje, quem tinha pretensão de se tornar artista precisava frequentar seus pares, respirar o ar da capital. O jovem Cézanne trabalhava no banco do pai e morria de tédio. Para ser  pintor era preciso ir para Paris, umbigo do mundo, onde Émile Zola, colega de Cézanne no ginásio de Aix, já se instalara.
Amigo, colecionador e incentivador do artista, o escritor foi retratado em diversos quadros, dois dos quais dois estão na exposição « Cézanne et Paris »,  mostra excepcional recém-inaugurada no Musée du Luxembourg, que pode ser vista até 26 de fevereiro. São 79 obras, 77 de Cézanne, uma de Armand Guillaumin e uma de Pierre Bonnard. Entre as obras de Cézanne expostas, todas foram pintadas em suas diferentes temporadas parisienses e estão espalhadas por museus e coleções particulares do mundo inteiro. Duas delas, « Paul Alexis lendo para Emile Zola » e « O negro Cipião », vieram do MASP de São Paulo.
Em Paris, onde passou a metade de sua vida artística, Cézanne frequentou a Académie Suisse, de Charles Suisse, onde posavam modelos vivos masculinos e femininos. Mas além do atelier com os modelos, o pintor precisava da proximidade do Louvre, onde ia com frequência se impregnar da beleza e da técnica dos grandes mestres. No templo da arte parisiense, Cézanne desenhava em seus carnets cópias de Delacroix, Poussin, Rembrandt. Ele se inspira no movimento e na cor de Rubens, Véronèse, Ticiano e Signorelli.  « O Louvre é o livro onde aprendemos a ler » escreveu um ano antes de sua morte, em 1906. A única obra que Cézanne conservou toda a vida foi uma aquarela de Delacroix, que considerava  « o grande mestre ».  
No entanto, nenhum ícone da capital foi imortalizado por Cézanne em suas diversas temporadas parisienses, que ele alternava com viagens pela região de Aix-en-Provence, onde pintou soberbas paisagens da montanha Sainte Victoire. Não pintou Notre Dame, não se interessou senão em poucos quadros por uma rua de Montmartre ou pelos tetos de Paris. « Cézanne nunca se tornou um parisiense. Ele não construiu laços afetivos com a cidade que lhe é indispensável mas estrangeira. Ele nunca fez um retrato emblemático da cidade, ao contrário de outros artistas de sua geração », escreve a curadora da exposição Maryline Assante di Panzillo.
Mas o artista se interessava pela região em torno de Paris, que retratou magnificamente : Fontainebleau, as margens do Sena, do rio Oise ou do rio Marne. Com o amigo e pintor impressionista Pissarro, ele se instala mais de um ano em Auvers-sur-Oise. Depois, acompanha o pintor e amigo Armand Guillaumin a Issy-les-Moulineaux e adota a técnica divisionista de seus colegas que serão chamados de « impressionistas ». « Quando passa um ano sozinho em Melun, perto de Paris, em 1879-1880 e pinta « Le Pont de Maincy » (A ponte de Maincy), Cézanne encontra seu caminho. Ele fará do impressionismo, que depois abandona, uma arte sólida e durável », ressalta a curadora.  
Na exposição, pode-se admirar um quadro de Guillaumin ao lado da cópia feita por Cézanne. O primeiro pintou as margens do Sena em  « Le Quai de Bercy ». Cézanne refaz a mesma cena com um tratamento « impressionista » no quadro « La Seine à Bercy ». Um deleite para os admiradores do artista. A curadora analisa : « Cézanne não copia, ele toma emprestado ao amigo um motivo e o interpreta à maneira « construtivista » que está elaborando ».
Quando, em 1895, Cézanne faz sua primeira exposição individual, na galeria de Ambroise Vollard, já era um pintor conhecido e respeitado por seus pares, mas o artista não deixa Aix-en-Provence para vir a Paris. No mesmo ano, é o marchand Vollard quem faz a viagem ao sul para visitar Cézanne. Em 1894, Monet organizara uma recepção em homenagem a Cézanne, em Giverny, na presença de Clemenceau, Rodin e do crítico Gustave Geffroy. Em 1898 e 1899, Cézanne realiza duas novas exposições na galeria de Ambroise Vollard.
Mas até alcançar a glória de ter uma sala inteira do Salon d’Automne dedicada à sua obra, em 1904, o inspirador de Picasso e de Matisse teve quadros recusados em oito Salões parisienses, de 1865 a 1876. Cézanne estava em boa companhia : Manet foi recusado em 1866 e, em 1867, além das duas telas de Cézanne recusadas, o júri recusou outras de Guillemet, de Sisley, de Bazille e de Renoir. Apesar de ser no Salão de Outono e no Salão dos Independentes que os novos artistas podiam mostrar obras modernas, o academicismo imperava no establishment e as obras de Picasso, Cézanne, Matisse, Monet, Degas e Gauguin ainda causavam escândalo.  Daí a importância do Salon des Refusés, criado para mostrar obras de vanguarda recusadas.
Nessa Paris do início do século XX, os irmãos Stein, Leo, Gertrude e Michael, além da mulher deste, Sarah, vindos de São Francisco, descobrem em 1903 uma efervecência cultural e artística que vão viver, incentivar e divulgar. A exposição « L’aventure des Stein : Matisse, Cézanne, Picasso… », que pode ser vista até 16 de janeiro de 2012 no Grand Palais, conta a fabulosa história da coleção de arte de quatro americanos ricos, que se instalam em Paris onde se tornam colecionadores e incentivadores de artistas desconhecidos como Picasso e Matisse, que estavam inventando a arte moderna. Como Gertrude explica a Hemingway _ que frequentou open houses que ela promovia na Rue de Fleurus, onde artistas, escritores e colecionadores passavam para ver a coleção, falar de arte e encontrar a fina flor da vanguarda parisiense  _ comprar quadros era para ela e seus irmãos uma prioridade que vinha antes de tudo.
Os estudiosos e apreciadores de Cézanne têm a oportunidade extraordinária de ver nas duas mostras mais de oitenta quadros do artista, pertencentes a museus do mundo todo e a coleções particulares: são 77 obras na exposição do Musée du Luxembourg e outras 9 que fizeram parte da fantástica coleção Stein, na mostra do Grand Palais, que reúne 248 pinturas, esculturas, desenhos, litografias, impressos e fotografias. Um dos textos da exposição informa que a descoberta de Cézanne por Leo Stein, que veio para Paris para se tornar artista, foi uma « revelação » que questionou «  tudo o que ele pensava saber sobre a pintura ». Seu irmão Michael e sua mulher Sarah se tornam amigos de Matisse, de quem adquirem grande número de quadros. Graças ao casal, a obra do artista é exposta nos Estados Unidos.

Iniciada por Leo, Gertrude frequenta os salões de arte parisienses e descobre Cézanne. Como Picasso, de quem se torna amiga, colecionadora e incentivadora, Gertrude tem verdadeira veneração pelo mestre de Aix-en-Provence de quem adquire « Portrait de Madame Cézanne à l’éventail » (Retrato de Madame Cézanne com leque). Ela conta que foi admirando esse quadro que escreveu  « Three lives ». Gertrude dizia que queria escrever como Cézanne e Picasso pintavam. Para isso, ela tentava subverter a sintaxe, como Picasso subverteu a pintura e, inspirando-se de Cézanne, criou o cubismo.
Depois de ver as duas exposições, ler tudo o que curadores e críticos escreveram sobre os fabulosos colecionadores que foram os Stein, sobre os artistas que frequentavam os salões de Gertrude, Leo, Michael e Sarah, sobre a fabulosa aventura existencial daqueles americanos cultos e refinados, sofisticados e loucos na Paris do início do século XX, um programa urgente se impõe : rever « Midnight in Paris », reler « Paris é uma festa » e ler a obra de Gertrude Stein.

Sobre o conceito de rosto do filho de Deus 

Leneide Duarte-Plon, de Paris (Publicado na revista Carta Capital)
Do fundo do palco, o enorme retrato de Cristo do artista italiano Antonello da Messina, do século XV, fita os espectadores nos olhos. Em cena, o esfincter incontinente de um homem velho vem perturbar a saída do filho para o trabalho. O rosto de Cristo é onipresente durante os 50 minutos de duração da peça do dramaturgo italiano Romeo Castellucci, 51 anos, « Sul concetto di volto nel figlio di Dio » (Sobre o conceito do rosto do filho de Deus). O espetáculo causa polêmica na França, desde julho, quando foi apresentada no Festival de Teatro de Avignon, onde suscitou reações indignadas da parte de grupos integristas católicos, que tentaram impedir algumas apresentações.
Em Paris, onde esteve em cartaz de 20 de outubro a 6 de novembro, a peça, toda falada em italiano sem legendas, se transformou num acontecimento cultural em si, pela controvérsia que despertou, comparável à que suscitou, em 1966, a peça « Paravents », de Jean Genet, vítima dos grupos de extrema direita que viam nela uma ofensa à França e a seu exército.
O Théâtre de la Ville, em Paris, passou a ser protegido todas as noites por um impressionante esquema de proteção policial, com blindados de tropas de choque formando um cordão de segurança em todo o quarteirão para impedir a entrada dos grupos de integristas que gritavam slogans contra a « cristianofobia » da peça. Para entrar, os espectadores tinham de passar por um esquema de controle de bolsas e apalpação do corpo digno de um aeroporto moderno. Dentro da sala de espetáculo, havia dezenas de policiais em roupas civis, prontos para dominar espectadores exaltados, que tentaram interromper algumas representações do espetáculo.
Na verdade, a peça, uma profunda reflexão filosófico-teológica sobre a condição humana, desorienta o espectador do início ao fim. Hipnotizados pelo olhar do Cristo de Antonello da Messina, vemos em cena um homem idoso que se desfaz em uma diarreia incessante, inoportuna para seu filho, jovem executivo que se prepara para ir trabalhar, deixando o pai sozinho em casa. A peça dura apenas uma hora e tem poucos diálogos entre os dois personagens : o filho que se apressa em limpar o pai incontinente e este, que não para de se desculpar pelo transtorno. O filho é atencioso e se apieda sinceramente do estado de miséria física em que vê o pai, dependente e enfraquecido.
Em longa entrevista ao Le Monde, Castelucci disse que os integristas protestavam sem terem visto a peça, que pode ser analisada como « um canto de amor ao Cristo ». De fato, é assim que a vêem alguns espectadores. A frase em ingles, « You are my shepherd », que aparece no final da representação no fundo do palco onde o retrato do Cristo se encontrava (ele é rasgado e destruído) torna o espetáculo uma obra aberta pois a palavra « not » depois do verbo se ilumina e se apaga intermitentemente. Essa frase é uma variante do primeiro versículo do Salmo 23, atribuído ao rei Davi, “O Senhor é o meu pastor”.
Castellucci é um erudito leitor da Bíblia, apesar de se dizer ateu. Ele conta que procurou atingir a metafísica e o espiritual a partir de uma cena hiperrealista em que discute Deus em sua dimensão total, onde o sublime do olhar de Cristo coexiste com a miséria da condição humana em sua expressão mais dramática, na cena que se desenrola no palco. « A partir dessa situação hiperrealista, o espetáculo se torna pouco a pouco uma metáfora da perda de substância, da perda de si, como a condição do Cristo que aceitou se esvaziar de sua substância divina para integrar a condição humana até o fim, inclusive nos nossos excrementos ».  
Segundo o diretor, depois da primeira representação da peça, o ator que representa o pai saiu de cena e chorou durante duas horas. Provavelmente, sendo idoso, se projetou no destino de seu personagem. « Mostrar o rosto do filho de Deus é mostrar o rosto do Homem, Ecce Homo, visto no momento de fragilidade que precede a Paixão. Ele nos precede no sofrimento em geral e no sofrimento da carne, em particular”, diz Castellucci.
Diante da tentativa abortada dos integristas católicos de impedir na Justiça as apresentações em Paris, formou-se um « Comitê de apoio à liberdade de representação do espetáculo de Romeo Castellucci » que publicou em página inteira de vários jornais um texto de defesa da liberdade de expressão, assinado pela fina flor dos intelectuais parisienses.
A peça de Romeo Castellucci começou sua carreira em Essen, na Alemanha, no Festival Theatre des Welt, 2010, o mais importante festival de teatro do país. Antes de estrear em Paris, onde foi vista por 8100 pessoas em duas semanas, "Sobre o conceito do rosto do filho de Deus" tinha sido apresentada com sucesso e sob protestos de católicos integristas no Festival de Teatro de Avignon, na França, em julho deste ano.
Antes da França, a peça já fizera uma carreira de sucesso na Alemanha, Bélgica, Noruega, Inglaterra, Espanha, Rússia, Holanda, Grécia, Suíça, Itália e Polônia. Em nenhum desses países houve qualquer tentativa de impedir a representação como aconteceu em Paris e em Avignon, uma prova de que os católicos integristas franceses são muito mais integristas que os da Itália e mesmo da Espanha. Não é de admirar no país que produziu o reacionaríssimo Monsenhor Lefebvre, que se opôs ao concílio Vaticano II e foi excomungado por Roma.
No final da temporada parisiense, dia 6 de novembro, a peça prosseguiu sua carreira em Munique, no Spielart Festival, dias 24 e 25 de novembro, no Münchner Kammerspiele ; em Villeneuve d'Asq,  29 et 30 de novembro ; em Milão, será vista de 24 a 28 de janeiro de 2012 ; em Antuérpia, de 1 a 5 de fevereiro de 2012. Em março, a peça volta à Itália e será apresentada em Casalecchio dias 17 e 18 de março.
Não há previsão de apresentações no Brasil.

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

LACANIANAS


M.D., um psicanalista que conheço, filho de um filósofo célébre e respeitado, autor de uma obra estudada no mundo todo, teve, como todo jovem (segundo a teoria freudiana), que se construir em oposição ao pai para se emancipar e se afirmar. Uma psicanalista próxima de M.D. me contou duas histórias incríveis que presenciou. Numa reunião de psicanalistas, o filho do filósofo teve uma reação incompreensível porque não havia água Perrier. « Ouça bem, ele ficou furioso porque não havia água Perrier », conta minha amiga. « Le père y est », era a causa da bronca. Ou seja, o pai estava lá.
Em outra ocasião, esse mesmo psicanalista não conseguiu terminar de ler o texto de uma conferência que fazia para um grupo de colegas, num encontro de psicanalistas. Em determinado momento, perdeu completamente a visão. Alguém continuou a ler. Ele parou na frase que dizia : « Tu es le père ». Segundo a teoria lacaniana, essa mesma frase pode ser ouvida como « Tu hais le père » ou « Tuer le père ».  Nada mais revelador do inconsciente do filho, que, freudianamente, se construiu em revolta contra seu próprio pai. « Matar” ou “odiar” o pai era necessário e, ao mesmo tempo, insuportável. Daí a cegueira passageira de que foi acometido.

Contra a violência feita às mulheres
No sábado, ao sair da exposição Pompéï (Pompeia), no musée Maillol, me deparei com a passeata contra a violência feita às mulheres. Ela passava pela Rue de Grenelle, cercada de policiais que costumam proteger toda passeata parisiense. E, dependendo da época, elas são mais de uma por semana.
O estupro é o único crime em que a vítima se sente culpada, diz um slogan feminista. Na França, 200 mulheres são estupradas por dia e somente uma pequena parte dessas mulheres tem coragem de dar queixa. « Ao contar que fui estuprada, não estou violando minha integridade física ou psíquica. Falo apenas para dizer às mulheres que é possível retomar uma vida normal e não apenas sobreviver », diz a feminista Clémentine Autain, 38 anos, diretora da revista Regards.
Ao ver um documentário sobre a vida de Serge Gainsbourg que passou na televisão esta semana fiquei sabendo por um dos entrevistados que Jane Birkin deixou-o porque ele bebia muito. E batia nela. Os agressores podem ser gênios e simpáticos. Mas merecem ser punidos.
Entrevistada para o documentário, Jane Birkin falou de Serge como um homem engraçado, um grande compositor e um pai disponível para as brincadeiras com a filha de ambos, Charlotte, e com a filha de Jane, Kate. Jane nunca contou que Serge Gainsbourg batia nela. Um silêncio discreto que pode ser visto como uma forma de proteger a memória de Serge mas também como uma forma de evitar a imagem de vítima. Jane is so cool. Ela prefere ser vista como a companheira dos anos felizes do artista torturado que foi Gainsbourg.     


Sarkozy : Netaniahu é mentiroso

No Brasil, aconteceu o mesmo em escala infinitamente menor, envolvendo o ex-ministro Rubens Ricupero e um jornalista. Quem ainda lembra ? O ministro dizia ao jornalista : «Eu não tenho escrúpulos. O que é bom a gente divulga. O que é ruim esconde ». As imagens foram gravadas sem que nem o jornalista nem o ministro soubessem que a gravação continuava, encerrada a entrevista. O escândalo ficou em imagens, impossível de desmentir. O ministro, flagrado dizendo frase tão cínica, renunciou ao cargo.
No G-20 de Cannes, dia 3 de novembro, foi mais grave pois quando os microfones ligados traem Barack Obama e Nicolas Sarkozy o buraco é mais embaixo. Tanto, que as redes de televisão francesa não comentaram o fato, provavelmente para diminuir o impacto do incidente diplomatico. O diálogo entre Obama foi contado com destaque no jornal Le Figaro, atribuindo a informação a jornalistas da AFP e da Reuters, que enviaram a notícia ao mundo inteiro. Sarkozy disse a Obama que “não podia mais ver Netaniahu, aquele mentiroso”. Obama respondeu : « Você está cansado dele ? Pior sou eu que devo falar com ele todo dia ! ». Em seguida, Obama pede a Sarkozy para acalmar a pretensão dos palestinos de se tornarem membros da FAO e da AIEA,  agências internacionais da ONU para a alimentação e agricultura e para a energia atômica.
Obama lembra a Sarkozy que 25% do orçamento da ONU vem dos EUA que podem fazer um estrago ao cortar a verba se a Palestina for reconhecida, hipótese pouco provável, no seio da Organização das Nações Unidas. Segundo um jornal francês, os judeus americanos não gostaram nada de ler a notícia e saber que Obama não defendeu o primeiro-ministro israelense. 

Na mesma conversa que vazou, ao falar da Grécia, Sarkozy disse a Obama que Georges Papandreu, em equilíbrio instável naquele G-20, era « louco e deprimido ».

A conversa entre os dois presidentes pôde ser ouvida por um erro técnico atribuído aos funcionários do Palácio do Eliseu, encarregados de controlar o som das entrevistas coletivas que os dois presidentes deram. Se pudéssemos saber tudo o que os donos do mundo dizem longe dos microfones, quanto trabalho para os diplomatas !


 « Affaire » Kadhafi : mais revelações

O jornal satírico Le Canard enchaîné, uma leitura obrigatória na França, contou com detalhes o acordo entre responsáveis militares franceses e americanos para que Khadafi não saísse vivo da operação de caça e não se pusesse a falar demais diante da Corte Penal Internacional. Vendas de armas e acordos escusos poderiam macular a reputação de certos governantes ocidentais que se vendem como inatacáveis.
No Libération li uma análise do jornalista Marc Semo em que ele dizia que, com a morte do ditador, o Ocidente evitou revelações embaraçosas. « Nenhuma das capitais envolvidas no conflito para derrubar Kadhafi, a começar por Paris e Londres, tinha vontade de ver o ditador diante da justiça internacional nem mesmo da justiça líbia, correndo o risco de ver um desenrolar de revelações sobre quarenta anos de relações complexas com os dirigentes ocidentais ».
Em outro artigo, publicado logo após a divulgação da morte de Kadhafi, o ministro das relações exteriores da Rússia, Serguei Lavrov dizia a Libération ter certeza de que as convenções de Genebra foram desrespeitadas: « Quando um participante de um conflito é capturado, deve receber assitência se está ferido. Matar alguém nessas condições vai de encontro ao que està estabelecido nas convenções de Genebra. Visivelmente, Kadhafi foi ferido e depois foi morto ».

François Hollande, a ascensão de um homem « normal »

(íntegra do texto publicado na Carta Capital)

Depois de três derrotas consecutivas (1995-2002-2007), a esquerda francesa tem grandes chances de eleger um socialista para presidente, em 2012. François Hollande, 57 anos, sucederia, assim, a outro François que não deixou no Partido Socialista um herdeiro carismático à altura do mito Mitterrand.
No domingo, com a indicação de Hollande, a vitória sobre Sarkozy ficou mais tangível.  Ao ganhar da prefeita de Lille e primeira-secretária do PS, Martine Aubry, a indicação de seu partido, o deputado Hollande se viu investido do dever de « reencantar a França », de reabilitar a presença do Estado, depois de um mandato de Nicolas Sarkozy e  dois de Jacques Chirac. Discursando na sede do PS, Hollande declarou que a vitória lhe deu « a força e a legitimidade para preparar o grande encontro da eleição presidencial de 2012 ». Mas a tarefa não é simples. Ele precisa primeiramente pacificar o PS, dividido em clãs rivais que se opõem e se detestam.
Para começar a esculpir sua imagem internacional de presidenciável, o candidato voou para Madri, já na terça-feira, 18, para encontrar-se com o primeiro-ministro José Luiz Zapatero, com o ex-presidente Lula e com outros líderes da esquerda europeia, reunida num congresso do Partido Socialista Espanhol. No encontro com Lula, Hollande saudou o homem que « soube combinar uma extrema fidelidade à esquerda com um sucesso excepcional, tendo deixado o poder com 80% de aprovação popular ». Lula é para Hollande « a esquerda eficaz, a única que interessa ».
A vitória dos socialistas na eleição de setembro para o Senado, que pela primeira vez na Quinta República (1958 até hoje) tem maioria de esquerda, pode ser o primeiro passo da volta dos socialistas ao poder. Se a eleição para presidente fosse hoje, e no segundo turno Hollande enfrentasse Sarkozy, o candidato socialista _ político hábil, inteligente, mas sem grande carisma _  ganharia de 62% a 38%, de acordo com a pesquisa CSA para BFM TV/RMC/20 minutes, feita quarta-feira, 19 de outubro. Antes da primária, pesquisas indicavam que Aubry também venceria Sarkozy num hipotético segundo turno, por margem um pouco menor que a de Hollande.
Vencer Sarkozy é a obsessão dos socialistas hoje. Estigmatizado pela esquerda como « presidente dos ricos », Sarkozy reivindica a « direita descomplexada ». A França de Sarkozy expulsa estrangeiros irregulares, crianças e adultos, numa negação da divisa do país que fala de liberdade mas também de igualdade e fraternidade. O empobrecimento das classes mais desfavorecidas, o aumento das taxas de desemprego e a degradação dos serviços públicos de saúde e educação são problemas agudos que foram desgastando a popularidade do presidente. O anti-sarkozismo tornou-se uma verdadeira doutrina política que vai determinar o voto de muitos eleitores.
Se vencer em 2012, François Hollande contará duas vitórias sobre o atual presidente. A primeira foi em 1999, quando o socialista ganhou a eleição para o Parlamento europeu, deixando seu concorrente Sarkozy a ver navios. Logo depois, o deputado europeu renunciou a seu mandato para assumir a vice-presidência da Internacional Socialista. Hollande tem hoje um mandato na Assembleia Legislativa da França.
« Para derrotar Sarkozy é preciso um PS unido em torno do vencedor da primária », martelava Hollande, que se apresentou como o mais apto a criar a união. Melhor que ninguém, ele sabe que a campanha de Lionel Jospin em 2002 foi entravada por falta de coordenação candidato-partido e sabe também o quanto faltou a Ségolène Royal o apoio do partido e de todos os grandes líderes socialistas na  campanha de 2007 contra Sarkozy. Nas duas campanhas, Hollande era o primeiro-secretário do PS e vivia com Ségolène Royal.
Ao vencer Dominique Strauss-Kahn e Laurent Fabius na primária de 2006, Royal não somente não teve o apoio claro dos vencidos como não pôde contar com François Hollande, que recusou-se a assumir a direção da campanha da mãe de seus filhos, de quem já se distanciara. E, no entanto, a vitória de Royal sobre DSK e Fabius não podia ter sido mais clara: ela teve 60,65% dos votos dos militantes contra  20,69% para DSK e 18,66% para Fabius. O casal Hollande-Royal, que tem quatro filhos, já era uma união de fachada. Logo após a derrota de Ségolène para Sarkozy veio a separação, através de um comunicado divulgado pela AFP, em que ela informava que pedira ao companheiro para deixar o domicílio conjugal. Soube-se depois que ela tinha tomado conhecimento da relação dele com a jornalista Valérie Trierweiler, que hoje vive com o deputado.
“Aprendemos a lição de 2007, não vai haver uma campanha com duplo comando”, declarou François Hollande depois da vitória, obtida graças ao apoio de todos os candidatos eliminados no primeiro turno, inclusive de Ségolène Royal, que superando qualquer ressentimento pessoal colocou em primeiro plano o projeto da esquerda.
O deputado e presidente do conselho regional da Corrèze, no centro da França, começou a se preparar para uma candidatura presidencial desde que deixou a direção do partido em 2008 e foi substituído por Martine Aubry. Hollande, um « bon vivant » conhecido por suas « boutades » engraçadas e rápidas, emagreceu 10 quilos, mudou o penteado e assumiu uma seriedade de circunstância.
Mas quem é exatamente o candidato socialista que numa frase infeliz  se apresentou como um « candidato normal » para marcar sua oposição ao atual presidente ? Sarkozy sempre foi criticado pela esquerda por sua vontade de controlar tudo, um hiper-presidente que quer ocupar todos os espaços. Além do mais, no início do mandato não soube separar sua vida privada da vida pública,  imperdoável na política francesa.
O simpático e conciliador Hollande quer ser visto como um político preocupado com os problemas dos franceses. Nos debates televisivos da campanha da eleição primária, o ex-professor de economia do Instituto de Estudos Politicos de Paris (Sciences Po) defendeu o programa do partido, comum a todos os candidatos, e apresentou uma visão pessoal sobre a dívida colossal da França, a mundialização, a transição energética, o protecionismo, a desindustrialização, entre outros temas. Nos últimos debates, no entanto, a principal oponente de Hollande, Martine Aubry, espécie de dama de ferro, enviou uma lança envenenada : apresentou-se como a « esquerda dura, firme » em oposição a uma « esquerda frouxa, mole ». O « Le Monde » diz que Aubry entre os íntimos não hesita em dizer o que Hollande tem de mole : parte da anatomia masculina, « les couilles », que na língua francesa denota falta de coragem.
No dia seguinte à vitória de Hollande, a imprensa estrangeira apresentou o candidato como « normal, ao ponto de parecer sem particularidades ». Alguns jornais o definiram como « inteligente », « simpático », « modesto », mas « inexperiente ». O inglês « The Guardian » foi cruel : « Ele provavelmente jamais teria emergido da semi-obscuridade se não tivesse havido o escândalo Strauss-Kahn ». O espanhol « El País » destacou « o homem da mudança tranquila e da unidade, com perfil de um homem responsável, apropriado para um chefe de Estado ». Quem o definiu com mais propriedade talvez tenha sido o alemão « Der Spiegel » : « Por trás de aparente modéstia, ele alia forte determinação e grande ambição ». 
            Entrevistado ao vivo no Grand Journal de Canal Plus, o ex-candidato do PS em 1995 e 2002, Lionel Jospin, que se manteve silencioso durante a campanha primária, enfatizou sua admiração por Hollande : « Ele é o que tem mais talento político no Partido Socialista ». Ao deixar a direção do PS para se tornar primeiro-ministro, em 1997, depois da vitória socialista nas eleições legislativas, Jospin apoiou a candidatura de Hollande, que dirigiu o PS  por 11 anos (de 1997 a 2008). Quanto ao fato sempre mencionado de que o deputado não ocupou nenhum ministério no governo Jospin e, por isso, lhe falta experiência, o ex-primeiro-ministro disse que sempre consultava François Hollande, com quem se reunia semanalmente, para tomar decisões. « Como primeiro-secretário do PS, Hollande acompanhava todo o funcionamento do governo », assegurou Jospin, declarando total apoio ao candidato de 2012.  
            Filho de um médico e de uma assistente social, o jovem François estudou na prestigiosa Sciences Po, além de se formar posteriormente na École Nationale d’Administration (ENA), uma das « grandes écoles » por onde passa a nata dos politicos franceses. Na sua turma, além de Ségolène Royal, ele teve como colega o ex-primeiro-ministro Dominique de Villepin.
O temperamento conciliador de Hollande é muitas vezes apresentado como fraqueza por seus adversários de direita. Chirac, ao contrário, sempre manteve relações cordiais com seu adversário de esquerda. Há poucos meses, na abertura de uma exposição na Corrèze, região onde ambos têm raízes eleitorais, o velho presidente disse intempestivamente que ia votar em Hollande. A imagem de TV não podia ser desmentida. O hóspede do Eliseu ficou chocado. Claude Chirac e sua mãe Bernadette, preocupadas com o futuro político do jovem marido de Claude, genro de Chirac, trataram de pôr panos quentes. Foram ao palácio explicar a Sarkozy que o ex-presidente está visivelmente afetado pela doença de Alzheimer. Publicamente, a história foi explicada em comunicado divulgado pela família como sinal de um particular « humor correziano », mas para os jornalistas políticos que sabem que Chirac e Sarkozy se detestavam, foi apenas uma prova de que a autocensura do velho presidente já começou a ser afetada pela doença. 
Quanto a Dominique Strauss-Kahn, com quem Martine Aubry tinha um pacto de não se candidatar para apoiar o amigo, sua relação com Hollande sempre foi de distância. Ao confirmar esse pacto na única entrevista que deu depois de sua libertação, DSK pode ter afastado muitos eleitores de Aubry. E ao revelar poucos dias antes da eleição primária as conversas em « off » de DSK com jornalistas parisienses pouco antes do « affaire » de Nova York, a revista « Le Nouvel Observateur » expôs a soberba com que Strauss-Kahn, apontado pelas pesquisas como imbatível na primária, falava de Hollande. DSK discorria sobre a necessidade de Hollande « retirar sua candidatura à primária se quiser ter alguma chance de ser ministro » no futuro governo de Strauss-Kahn, que àquela altura já se via no Eliseu. 
Mas no meio do caminho havia uma camareira. Num hipotético governo Hollande imagina-se que o ex-presidente do FMI não terá vez. Provavelmente não será nem convidado para a festa.
Depois da indicação de Hollande, um dos canais de TV mostrou uma entrevista da mãe do candidato, falecida há dois anos. Madame Hollande contou que desde pequeno seu filho dizia que seria presidente da República. « Nós não acreditávamos. E continuamos sem acreditar », disse sorrindo.
François vai mover céu e terra para provar a sua mãe que ela deveria ter acreditado.

A não-comunicação, nova estratégia de comunicação
(Publicado no Observatório da Imprensa)

Madame Sarkozy, née Carla Bruni, « Carlita » para seu marido a quem ela chama de « chouchou », sempre gostou dos refletores, das passarelas, do palco. Era seu mundo.
Mas a ex-manequim e cantora teve que assumir com o casamento um novo papel : o de primeira-dama da França. Antes disso, contudo, o casal de namorados se exibiu seguido de fotógrafos em viagem à cidade jordaniana de Petra, em passeio pela Disney parisiense com o filho da cantora e em outras situações pouco convencionais em que o presidente em exercício recém-divorciado apareceu de óculos Ray-Ban com o filho da namorada nos ombros. Imagens que chocaram a maioria dos franceses para quem a presidência deve ser exercida com a liturgia e a sobriedade exigida pela função. A pretendida ruptura de Sarkozy em relação a seus predecessores não funcionou como ele esperava.  
O desgaste para a imagem presidencial foi enorme. Ele, que já fora visto se exibindo em iates de luxo logo depois de eleito, viu sua cota de popularidade declinar a olhos vistos. « Presidente bling-bling » passou a ser o epíteto preferido dos críticos de Sarkozy, chocados com seu gosto pela ostentação e pelo luxo.
Os marketeiros que analisam cada passo e cada gesto do presidente de olho nas pesquisas de opinião decidiram que a vida privada do hóspede do Eliseu passaria a ser assunto sigiloso. A não-comunicação foi teorizada no Eliseu como um novo conceito de comunicação. Nunca mais o presidente ousou falar de sua vida com Carla diante dos jornalistas. A primeira dama sumiu e passou a ser vista apenas em ocasiões muito formais e cerimônias oficiais.
Até que surgiu a gravidez. A notícia nem foi dada pelo Palácio do Eliseu. O boato foi confirmado pelo pai do presidente a um jornal alemão. . Era a estratégia de comunicação mais enviesada e complicada que já se vira. Os jornais franceses suitaram a notícia muito discretamente, em notas. “Trata-se da vida privada do presidente”, alegou-se. Os grandes jornalistas e os grandes jornais na França só tratam da vida pessoal dos políticos quando essa tem alguma repercussão no jogo político, como foi o caso do « affaire » Dominique Strauss-Kahn, amplamente comentado e analisado por ter implicações políticas que alteraram totalmente o quadro da sucessão presidencial.
Um dia, a primeira-dama deixou-se fotografar com uma barriga bem pronunciada num encontro do G-20. E voltou a desaparecer das câmeras e viagens oficiais.
A gravidez da primeira-dama é um assunto privado e não interessa os franceses, pensa a maioria esmagadora dos eleitores de direita e de esquerda. Em setembro, ela deu uma entrevista a um canal de televisão e disse que as aparições anteriores (Petra e Disney) foram « um grande erro ». Nessa entrevista ela disse que não ia mostrar seu bebê (ela não quis saber o sexo antecipadamente) à imprensa. Ela pensa que a exposição à vida pública é uma escolha de adulto.
Este mês, Carla Bruni-Sarkozy deu à luz uma menina numa clínica privada de Paris. Nenhum comunicado veio do Palácio. Tudo se comunica em « off ». Foi no blog da mãe que os jornalistas ficaram sabendo que a menina se chama Giulia.
A revista italiana « Grazia », que tem versão em francês, fez uma pesquisa. « Você se interessa em saber com que peso e com que tamanho nasceu a filha dos Sarkozy ? » « Quer ver foto da criança ? » 86% dos ouvidos disseram « não ». « Quer que o pai fale sobre o acontecimento ? » 87% disseram « não ».
Os franceses acham que um bebê é um assunto da vida privada e não querem que a filha do casal seja usada para fins político-eleitorais. O Palácio do Eliseu nem sequer ousou dar a notícia do nascimento oficialmente.
A comunicação do nascimento da pequena Giulia é toda extra-oficial e indireta. Os leitores do jornal de referência, como é chamado o  “Le Monde”, puderam ver uma foto em que, em pleno tumulto das reuniões de cúpula em Bruxelas para salvar  a Grécia da falência e garantir a sobrevivência do euro, Sarkozy abre uma caixa com um ursinho de pelúcia que lhe entrega Angela Merkel. Era um momento de pausa nas negociações. Uma forma discreta e indireta de falar  do nascimento da criança já que o fato não interessa aos leitores do jornal de referência, preocupados com os destinos da Europa e do mundo. 
A discrição francesa contrasta com o mundo anglo-saxão, onde ninguém ficou chocado em ver no ano passado o novo bebê dos Cameron nos braços da mãe, com o pai ao lado, posando à saída da maternidade.

Maison Européenne de la Photographie dá espaço ao olhar brasileiro
Leneide Duarte-Plon, de Paris (íntegra do texto publicado na Folha Ilustrada)
 Uma das principais instituições dedicadas à fotografia no mundo, a Maison Européenne de la Photographie cedeu parte de seu belo edifício do Marais, em Paris, a três fotógrafos brasileiros. A excelente exposição « Trois photographes de FotoRio », que pode ser vista até 8 de Janeiro de 2012, tem fotos do carioca Rogério Reis, do paulista Edu Simões e da paranaense Fernanda Magalhães.
A mostra dá visibilidade a três temas universais de maneira autoral e contemporânea: o corpo, no trabalho de Fernanda Magalhães (A representação da mulher gorda nua na fotografia), o alimento, no de Edu Simões (Gastronomia para um dia de trabalho duro), e a imagem, no trabalho de Rogério Reis (Ninguém é de ninguém).
Para falar da dificuldade de trabalhar hoje com o instantâneo do fotojornalista, Reis mostra pessoas nas praias cariocas, parcialmente escondidas por tarjas nos olhos ou círculos no rosto. Uma forma original de tratar a restrição imposta pela lei ao direito de imagem. Já Edu Simões, fez um trabalho próximo da sociologia : a partir de um único aspecto da vida de operários da construção (a marmita), o observador se envolve emocionalmente, passa a imaginar quem são esses homens ausentes da imagem, o que comem, como vivem. 
« Gostaria que o espectador se perguntasse quem acordou e a que horas acordou para fazer essa comida, qual a relação de amor que é transmitida nessa comunicação diária, qual a condição financeira da família nesse dia: tem carne para comer. Ou, com o fim do dinheiro, só deu para comprar ovo e, amanhã talvez, nem ele », diz Edu Simões à Ilustrada.
Ainda que o trabalho de Edu Simões pareça mais distante do tema, os três fotógrafos tratam, em última instância, do corpo. Mas o alimento que sustenta os operários da construção civil em São Paulo é, do ponto de vista estético, próximo da natureza morta tão cara aos pintores. O alimento na marmita se torna quase abstrato, um elemento estético nas cores variadas e na forma retangular do exíguo espaço da marmita. Nessas fotos existe também um olhar político-sociológico, e os  alimentos denotam uma hierarquia da condição dos operários, a presença da carne como o luxo supremo.
« Ao fotografar com apurado rigor técnico e estético as marmitas, que se tornam bonitas e apetitosas,  não estou proponho o esquecimento ou alienação de uma vida difícil. Minha intenção é provocar uma reversão na expectativa  pré-concebida que temos da comida e da vida dos operários em geral », diz Simões.
As fotos da paranaense Fernanda Magalhães, que expõe pela primeira vez em Paris, lançam um desafio ao espectador « acostumado à visão de corpos idealizados, muitas vezes resultantes de mutilações plásticas ». Ao mostrar uma mulher gorda nua, em fotos associadas a colagens de textos, Fernanda quis « discutir a busca insana por corpos perfeitos, eternamente jovens, numa tentativa de paralisar o tempo ». A fotógrafa, que tem um doutorado em Arte pela Universidade de Campinas, se define como artista e fotógrafa que se interessa por corpos que não querem se mostrar por vergonha de suas formas. « Era preciso rejeitar a rejeição », diz Fernanda Magalhães.
O carioca Rogério Reis, que trabalhou muitos anos como fotojornalista, já expôs anteriormente em Paris. Suas fotos da exposição « Microondas » mostraram aos franceses em 2007, durante a exposição Photoquai, 1ère Biennale des Images du Monde, como a violência urbana carioca se funde na barbárie. Reis vê suas fotos de personagens nas praias da zona sul do Rio  como uma discussão do uso e do controle da imagem no mundo atual.
 « Propus uma reflexão sobre a identidade e a propriedade da imagem. Meu desejo de voltar a fotografar com o quadro cheio e próximo da cena sem freios e longe das ameaças dos processos judiciais foi determinante”. Para frisar a impossibilidade de fazer fotos de pessoas reais como nos bons tempos da fotografia dos grandes mestres como Cartier-Bresson, Reis utiliza tarjas nos olhos ou círculos nos rostos. Esses artifícios acabam eliminando os rostos deixando apenas corpos em total liberdade.
Essa liberdade de corpos que se bronzeiam nas praias de Ipanema, Arpoador e Urca é o que provoca maior impacto ao olhar francês. Os namorados se pegam, se abraçam, se beijam, muitas vezes deitados um sobre o outro, na areia ou sobre uma cadeira de praia. Cenas de proximidade totalmente ausentes das praias francesas, mesmo na Côte d’Azur, onde o topless é frequente mas onde os corpos raramente se tocam em público.