domingo, 28 de agosto de 2011

A condenação da arte



O escultor Celso Antônio (1896-1988) estudou escultura em Paris com Antoine Bourdelle, de quem foi aluno e depois assistente, de 1923 a 1926. De volta ao Brasil, conheceu a glória e, no fim da vida, o ostracismo.
Depois de 15 anos de pesquisa e dezenas de entrevistas, escrevi em Paris o livro « Celso Antônio, a condenação da arte », uma biografia do artista que será lançada na Bienal do Livro do Rio, dia 3 de setembro, com uma palestra da professora universitária  Leila Duarte, "O escultor e seu tempo". 
O Secretário de Cultura de Niteroi, Claudio Valério Teixeira, é o autor do texto de apresentação, além do crítico José Roberto Teixeira Leite. Oscar Niemeyer escreveu um texto para o livro e Otto Lara Resende, grande entusiasta do artista e do projeto, escreveu o texto que reproduzo abaixo :
Justiça para um grande artista
Como simples testemunha do meu tempo, considero um absurdo que até hoje, final de 1989, um artista do valor e da importância de CELSO ANTÔNIO não tenha tido ainda o reconhecimento que merece. É sabido que a morte impõe um período de silêncio, como se entre a posteridade e o morto ilustre fosse necessário fazer uma reflexão para reavaliar o que significou de fato a sua contribuição para a cultura nacional.
Quem quer que tenha interesse pelas artes e pelas letras no Brasil sabe a importância de CELSO ANTÔNIO. Nem é preciso ter sido seu contemporâneo, ou ter acompanhado, mesmo à distância, o itinerário que o artista percorreu. Não lhe faltou sequer o sal da grande controvérsia, quando sua arte foi vítima da incompreensão e da burrice.
CELSO ANTÔNIO, tendo vivido e trabalhado num momento de renovação cultural em todas as frentes, foi um grande artista inovador. Com um temperamento discreto, alheio ao marketing das celebridades de 15 minutos, o grande artista teve ao seu lado as melhores inteligências e sensibilidades de seu tempo. Bastaria citar três grandes nomes, entre seus fervorosos admiradores : Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Rodrigo M. F. de Andrade.
Tudo que se fizer em favor de CELSO ANTÔNIO, a partir de agora, é justo e oportuno. Chega tarde, mas ainda chega a tempo de saldar uma dívida que o Brasil tem para com esse extraordinário artista, que conheci, admirei e defendi, quando foi vítima da agressiva estupidez dos que se trancam na rotina e no ar viciado do pior academicismo.
Otto Lara Resende
Rio de Janeiro, 20 de novembro de 1989

Rio, photoshopado

Um amigo me enviou um vídeo lindo sobre o Rio. Visto do alto, com imagens editadas cuidadosamente para evitar todas as favelas, o Rio é belo como uma bela mulher “photoshopada”. Não vi a Rocinha, nem o Vidigal nem o Pavão, nem Dona Marta. Se o Rio fosse apenas o que o vídeo mostra seria uma maravilha. O problema é que só nos vídeos podemos esconder o caos urbano de que as favelas são a face mais evidente e que se alastra como uma chaga.
Quem vai ao Rio frequentemente como eu sabe que o caos urbano e a miséria estão lá, geram violência e afastam turistas que sonham com as fotos das belas praias e com a sensualidade da cidade.
Aliàs, alguns cariocas que leram a entrevista que fiz para a revista Carta Capital com Gilles Lapouge me insultaram e o trataram de « francês imbecil » porque ele ousou comparar o Rio a São Paulo e dizer que prefere o dinamismo e a criatividade da cidade dos bandeirantes. Os indignados cariocas tiveram reações epidérmicas, primárias, muito distantes da reflexão que o Rio merece para começar a resolver seus problemas, que não são poucos.

Paris é gay


Li na « Carta Capital » que cerca de 200 homossexuais são assassinados no Brasil, anualmente, por serem gays. Em diversos países do mundo eles são condenados à morte depois de julgados.
O prefeito de Paris, Bertrand Delanoë, gay assumido, costuma participar da gay pride de gravata e paletó, abrindo o cortejo com outros políticos que apoiam a luta pela igualdade e o respeito aos gays. O ministro da cultura Frédéric Mitterrand (sobrinho de François Mitterrand) também é gay assumido. Jamais a orientação sexual deles serviu de pretexto para desqualificá-los, ambos pessoas de grande classe. No dia em que o Brasil respeitar a diferença e julgar os políticos pelos seus atos e projetos e não por sua preferência sexual, muitos homens públicos poderão viver publicamente sua homossexualidade e abandonar a vida dupla que o machismo ambiente lhes impõe.
Todos os grupos de gays tem seu carro ou seu espaço na gray pride parisiense : judeus, aposentados , ex-deportados, policiais, empregados da Air France, lésbicas, transexuais e alguns brasileiros e brasileiras com bandeira e  tudo.  



História de amor
Eis a íntegra da entrevista sobre o « Dictionnaire amoureux du Brésil », do jornalista e escritor Gilles Lapouge, publicada na revista Carta Capital em agosto.
Carta Capital – Entrevista com Gilles Lapouge
Leneide Duarte-Plon, de Paris
O Brasil de Gilles Lapouge é um país de contrastes. Cruel e cordial. Que valoriza a pele branca mas quer parecer o paraíso da miscigenação, um país sem racismo. O jornalista e escritor de 85 anos acaba de lançar, em Paris,  com grande sucesso de crítica, o « Dictionnaire amoureux du Brésil », (editora Plon, 659 páginas). Bernard Pivot, um dos mais respeitados críticos franceses, não poupou elogios : «Entre os quase cinquenta dicionários amorosos, esse é o mais exótico, o mais romanesco, o mais encantador, o mais cativante, em suma, o melhor ».
Os 70 verbetes são variados e surpreendentes e vão de abelhas, Aleijadinho, passando por Jorge Amado, Claude Lévi-Strauss, pau-brasil, saudade, chuva de Belém, Proust nas favelas, peles, pecado da carne, Palmares até chegar a Verger, Pierre. Oviamente, há uma entrada « São Paulo » e outra « Capitais : Salvador, Rio e Brasília ». 
Lapouge observa sem "parti pris" um país fascinante. O distanciamento crítico do autor permite assertivas duras e sem condescendência. Mas não significa frieza, indiferença. Na entrevista exclusiva a Carta Capital, Lapouge fez uma declaração de amor ao Brasil, que conhece há 60 anos : « É um país que adoro. Claro que há coisas que detesto no Brasil mas aqui também há e muito mais. O Brasil me deu tudo, não somente meu métier, não apenas o conhecimento do país, ele me inventou ».
LDP : Você descobriu o Brasil há 60 anos. Seu « Dictionnaire amoureux du Brésil » é muito crítico mas ao mesmo tempo justo, critica diversos aspectos do país e elogia outros. Foi difícil escolher os verbetes e decidir o tom ?
Gilles Lapouge : Para os verbetes me guiei pela regra dos dicionários da coleção. Acho que fui o mais fiel pois o dicionário amoroso não deve ser exaustivo,  deve apresentar o que se aprecia ou não, sem regras pré-fixadas. Não fiz nenhum plano prévio, vinha ao escritório, pensava no Brasil e escrevia.
LDP : O distanciamento critico é um tanto difícil, não?
Gilles Lapouge : Sou muito crítico quanto ao problema da violência, mas mesmo o mais patriota dos brasileiros não pode negar que o Brasil é um país muito violento, às vezes. Equilibro essa crítica com um verbete sobre a cordialidade. Poderia ter feito um só e dizer « eles são cordiais mas crueis ». Preferi fazer dois artigos que são como duas peças de um díptico : é preciso ler um e outro. O brasileiro é muito cruel por muitas razões (históricas, sociológicas etc), e formidavelmente acolhedor, terno.
LDP : São dois verbetes muito justos, que revelam o fino observador. Em «  cordialidade », você desmonta o mito do « homem cordial » de Sérgio Buarque de Holanda, demonstrando « porque Stefan Zweig não compreendeu nada do Brasil ». O brasileiro não seria um povo esquizofrênico, entre a cordialidade e a crueldade ?
Gilles Lapouge : Não sei se esquizofrênico, há uma conotação de doente na palavra, acho que não é isso. O que é terrível no Brasil, mas fascinante também, é que ele me parece, às vezes, para além do princípio de contradição, isto é, os brasileiros são capazes de ser ao mesmo tempo crueis, felizmente não com frequência, e muito gentis. Mas mesmo as pessoas crueis no Brasil podem ser gentis de certa forma. O que acho bastante fora do comum. Aqui na França temos os marginais, pessoas terríveis, e temos as pessoas gentis. Mas são separados. No Brasil, existe uma espécie de mistura muito especial, os contrários podem coabitar e nesse caso especialmente.  
LDP : Sobre Lévi-Strauss você diz : « O Brasil foi a chance de Lévi-Strauss, a porta de entrada de seu destino ». Isso é válido para você também, não ?
Gilles Lapouge : Exatamente. Meu destino foi o Brasil e não somente pelo tempo que vivo com ele mas pelo que o Brasil me trouxe como inteligência, gentileza. É um país que adoro. Você diz que há um tom crítico no dicionário, mas é porque amo o Brasil. Penso que os brasileiros entendem isso. Claro que há coisas que detesto no Brasil mas aqui há muito mais. O Brasil me deu tudo, não somente meu métier, não apenas o conhecimento do país, ele me inventou.
LDP : Sobre Lévi-Strauss você escreve : « Um dia ela me confessou que era polígamo, mas por causa das leis francesas, em vez de juntar todas as mulheres no mesmo momento, ele as desfiava ao longo do tempo, « como as pérolas de um colar ». Você revela um Lévi-Strauss don Juan com um colar no lugar da famosa lista ?
Gilles Lapouge : Ele não tinha nenhum ar de don Juan quando o víamos. Deve ter sido interessante quando jovem, mas não era um Dominique Strauss-Kahn na maneira de agir. Era frio, um pouco irônico. Ele se interessava pelas mulheres, teve quatro mulheres, é bastante. Sua primeira mulher era conhecida por ser bastante feminina, muito interessada pelos homens. Pelo menos foi a lembrança que ela deixou nas pessoas que fizeram a expedição de Matro Grosso. Era uma mulher que gostava de despertar interesse.
Lévi-Strauss não era muito simpático, mas também não era antipático. Era frio, com uma inteligência um tanto inquietante de tão perfeita. Era mais inteligente que sensível. Tinha um discurso bem organizado. Ouvia uma pergunta, qualquer que fosse, refletia alguns segundos e a resposta caía como uma guilhotina, implacável, perfeita. Não havia erro, ele não tinha dúvidas também. Ele sabia.
LDP : Você escreve : « Amei muito tempo o Brasil e ainda o amo… Ele dizia que era o paraíso mas era um paraíso estranho, formado com injustiças, miséria e sombras ». Para um francês de esquerda, as desigualdades são a coisa mais chocante no Brasil ?
Gilles Lapouge : Claro. Elas são talvez mais visíveis, serão mais terríveis que em outros países ? Não sei. Na França, por exemplo, as desigualdades são abomináveis. Mas acho que são mais escondidas aqui porque as pessoas são muito hipócritas, não existe talvez uma exibição tão insolente das fortunas. Aqui, eles estão dentro de castelos, escondidos dentro de florestas e tudo é um pouco assim, meio escondido. No Brasil, eles se exibem, até porque vive-se mais no exterior, as pessoas ricas são vaidosas, têm orgulho de mostrar que têm dinheiro. Aqui também, mas um pouco menos.
LDP : Mas há no Brasil um abismo muito maior entre ricos e pobres…
Gilles Lapouge : Há um abismo muito maior, imagino que por razões históricas. A França e a Europa em geral fizeram uma redistribuição de rendas que data de um século e meio. Tivemos tempo, portanto, aqui e na Alemanha, por exemplo. São países ricos há muito mais tempo. O Brasil está se tornando um país muito menos pobre, mas é recente.
LDP : Os ricos brasileiros são exibicionistas ?
Gilles Lapouge : Eles são muito exibicionistas, se mostram. Mas talvez o clima explique, tudo é mais vivido do lado de fora.
LDP : Eles não têm consciência pesada ao exibir a riqueza…
Gilles Lapouge : De forma alguma. Eles não têm consciência pesada, simplesmente obedecem a pulsões. Por isso é que o pobre Stefan Zweig me parece ter sido muito ingênuo porque viu as pessoas na rua muito gentis. Eles são gentis no Brasil enquanto aqui são mais rudes. Mesmo numa metrópole como São Paulo, as pessoas param para lhe responder, prestam atenção. Os negros e os brancos vivem juntos, então o pobre Stefan Zweig não entendeu nada, pensou que era a verdade do Brasil, mas era apenas a vitrine. Temos de ser indulgentes com ele, estava idoso, depois se suicidou…
 LDP : Zweig não teve tempo de conhecer bem o país…
Gilles Lapouge : Quando Bernanos foi ao Brasil, durante a guerra, se instalou no interior de Minas, com camponeses, depois em Barbacena, com o povo, trabalhou, se comunicou. O outro era um judeu muito europeu, muito assimilado e que adorava os Habsbourg. Adorava a Áustria, muito justamente pois Hitler tinha destruído o império. Mas para onde ele vai ? Para Petrópolis, a cidade dos Habsbourg, a cidade de Pedro II. Ele não viajou, Pedro II é um Habsbourg pela linhagem dos Bragança.
LDP : Você diz que Zweig ele não entendeu nada do Brasil. Você escreve : « O Brasil é conhecido por ser um dos únicos lugares do mundo com a receita para que os homens de todas as cores se amem em vez de se odiar. Essa reputação é um blefe. O cândido Stefan Zweig acreditou que o racismo acabava misteriosamente na fronteira do Brasil ». O Brasil construiu o mito de uma « democracia racial » ou foi o olhar míope de pessoas como Zweig que espalhou essa lenda ?
Gilles Lapouge : O Brasil gosta de se ver assim e como ele tem o segredo de parecer assim, o racismo é menos visível lá. Me irrita ouvir que os outros países são racistas e o Brasil não.
LDP : Não se consegue assumir que se é racista…
Gilles Lapouge : Existe uma espécie de jeito brasileiro para não parecer racista mesmo sendo. Isso é ruim. Eles não são piores que os outros. Dizer que os americanos são racistas e os brasileiros não é inexato. Alguém observou que o racismo mais evidente dos americanos permitiu que uma contra-sociedade se desenvolvesse nos Estados Unidos com negros que se tornam presidente da república, chefe do Estado-Maior como Colin Powell, grandes advogados. No Brasil é mais raro… Os obstáculos não são visíveis mas no fundo são mais perigosos, perniciosos. Acho que existe um gênio português da mestiçagem. Fiquei impressionado em Moçambique. Era a mesma coisa, antes do fim do salazarismo. Eles se abraçavam. Negros, brancos, mulatos, todos eram amigos, como no Brasil. Mas na realidade, os brancos eram os colonizadores, estavam no topo da pirâmide e os negros não tinham acesso nunca. Penso que é o gênio português cujo resultado me parece muitas vezes pernicioso, mas é um gênio de bondade, de certa forma.
LDP : Você se mostra impressionado com as 136 cores de pele recenseadas no Brasil. O verbete « peaux » é delicioso… Na França qualquer estatística étnica é formalmente proibida, como você vê essas cores de pele ?
Gilles Lapouge : Isso é incrível. Foi um órgão oficial, o IBGE que recenseou 136 cores de pele ! Descobrimos 12 cores de negro, com brancos de todas as nuances e a cor « em vias de se tornar branco », o que mostra que evidentemente o ideal é ser branco. E o mais incrível, a « cor de burro quando foge ». Isso mostra um desejo de verdade e ao mesmo tempo, uma total confusão. É um país maravilhoso com muitas nuances de cor mas daí a catalogar as cores… Não vejo o interesso senão para mostrar a pele branca como objeto de todos os desejos. É terrível pôr as pessoas em categorias, em vez de dissolvê-las.
LDP : De Jorge Amado, de quem você foi amigo, você diz que ele era pouco considerado por intelectuais do Rio e de São Paulo e reproduz trecho da crítica entusiasta feita por Albert Camus do livro « Bahia de todos os Santos » (Jubiabá). Como ele vivia a glória e a esnobação de certo meio intelectual brasileiro?
Gilles Lapouge : Costumava vê-lo na Bahia e em Paris, onde ele comprou um apartamento no pior bairro, Bercy, o mais frio, o mais americano. Perguntei-lhe o motivo e ele disse que foi de propósito pois era o contrário da Bahia onde ele não podia andar sem ser parado nas ruas. Em Paris, ele dizia, ninguém o reconhecia e ele era obrigado a trabalhar. Conhecia bem Paris, tinha sido exilado e não queria viver no Quartier Latin para não encontrar turistas brasileiros nem se distrair em bairros que conhecia bem. Ele tinha a glória e acho que não se importava com o respeito dos intelectuais brasileiros. Ele dizia : « Tenho horror de falar de literatura, o que me interessa é a vida ».
LDP : Você viajou muito pelo Brasil, pela Amazônia, Nordeste. Quando se lê o verbete São Paulo, nota-se que você a prefere ao Rio, « cidade desfigurada e deteriorada » pois « o empilhamento das misérias nas favelas fez do Rio de Janeiro uma das cidades mais perigosas do mundo ». Pode comentar ?
Gilles Lapouge : São Paulo é minha cidade. Eu me apropriei de São Paulo. Os franceses não gostam de São Paulo, eu a amo.
LDP : Você acha que alguém pode se apropriar de São Paulo, ela não escapa sempre, com seu gigantismo ?
Gilles Lapouge : Mesmo excetuando-se a violência que agravou o caso do Rio, sempre preferi São Paulo porque é uma cidade de grande imaginação, de trabalho, de paixões fortes, enquanto o Rio para mim é uma cidade unicamente de sensualidade, de prazeres, de preguiça, de boas tiradas. Eles são engraçados… Tenho a impressão que o Rio é uma cidade que dorme e adormece as pessoas. Eu me sinto adormecer quando estou no Rio. Evidentemente, há Copacabana, as moças, tudo isso é interessante mas aquelas moças não me interessam...
LDP : Copacabana tornou-se vulgar. Mas o Rio tem Leblon, Ipanema…
Gilles Lapouge : Não faço um julgamento global. O que me comove no Rio é a decadência. Essa espécie de cidade que está, não morrendo, mas se esgotando um pouco desde que deixou de ser a capital. O que me agrada é o lado decadente do Rio. Isso me dá tesão.
LDP : E o que mais lhe agrada em São Paulo ?
Gilles Lapouge : A energia. A inteligência. É uma das cidades mais inteligentes que conheço. O Rio também é uma cidade inteligente porque existe a ironia, uma espécie de ironia decadente, um pouco cética. Mas prefiro a inteligência forte do inventor, do engenheiro, do poeta. Fico muito contente de saber que o único francófono que ama São Paulo é o poeta Blaise Cendrars, que cito em dois poemas sobre São Paulo. Estou em boa companhia.
***
Amado, Jorge
« A partir de 1948, Amado passa longas temporadas em Paris (…)  e se torna a coqueluche dos escritores e artistas comunistas, Pablo Picasso, Paul Éluard, Louis Aragon, Georges Sadoul. O casal Joliot-Curie torna-se amigo de Zélia e Jorge. Mas Jorge e a maravilhosa Zélia se divertem também nas boates da Rive Gauche, admiram Miles Davis, Duke Ellington e Louis Armstrong. Cada vez que um amigo sul-americano tem problemas com a polícia, Jorge e Zelia correm na casa de Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir ou François Mauriac e conseguem uma intervenção em favor de Pablo Neruda, Asturias, Alfredo Varela, Guillen ». (P. 36)
Péché de chair (Pecado da carne)
« Os portugueses suprimiram um pecado. Um dos mais irritantes. Tendo aportado na Terra de Vera Cruz, em 1500, eles decidiram que o pecado da carne não existia no hemisfério Sul. Como essa reforma é agradável mas surpreendente a ponto de ser incrível, eles despenderam grande energia para torná-la válida entregando-se a trabalhos práticos. Os soldados, os colonos, os padres consagraram suas noites, madrugadas e tardes a confirmar que de fato as leis da moral se transformavam na « passagem da linha ». Caspar Van Barleus, capitão de Maurício de Nassau, o governador de Recife no tempo da ocupação holandesa (1630-1654) resumiu o caso : « Ultra aequinoctialem non peccavi. » Os portugueses dizem : « Pecado aquém do mar dos Sargassos, candura além ». (P. 511)
Cruauté (Crueldade)
« Tanto pior para Stefan Zweig e os adeptos da « cordialidade ». O Brasil é um país violento. Em assassinatos, não tem rival. Ele produz mais mortes por balas, facas ou facões  do que qualquer outro país. Ele mata por atacado ou a  varejo e, de bom grado, por acaso. A leitura do livro de Paulo Lins, Cidade de Deus, dá náusea. (...)
O Rio de Janeiro aparece no alto desses hit-parades. O Rio assassina desde  a manhã até a noite, vintre e três cadáveres em média por dia, mas as outras cidades não fazem por menos. São Paulo a iguala, muitas vezes a supera. Bahia de Todos os Santos, Campinas ou mesmo Porto Alegre matam. Em Recife, os jornalistas de polícia, enojados pela litania de sangue, colocaram no coração da cidade, na Rua Joaquim Nabuco, um pêndulo gigante que não dá a hora mas o número de assassinatos, como se o tempo, nessas cidades fosse medido não pelo movimento do cosmos ou pelas taxas do dólar ou do yuan, mas pelo dos massacres. Nas favelas, jovens com ar embrutecido passeiam com seus cães. Todos são armadas. O destino deles ziguezagueia entre a prisão, a droga e o cemitério.  (P. 187)



Jornalista, profissional fragilizado
Leneide Duarte-Plon
Publicado em 01/08/2011 no Observatório da Imprensa
É uma profissão que passa seu tempo a auscultar os outros mas ignora quase tudo de si mesma. Na França, o instituto Technologia resolveu saber mais sobre os jornalistas franceses num momento em que esses profissionais se sentem fragilizados e se questionam sobre o futuro da profissão, ameaçada pela diminuição do número de leitores de jornais e pelas receitas publicitárias cada vez mais magras.
Os analistas costumam apontar a internet como o vilão da decadência da imprensa escrita e do jornalismo tal como o conhecemos até hoje. Mas a crise é estrutural, diz um estudo francês publicado pela revista Marianne. Ao divulgar as conclusões da pesquisa do instituto Technologia, o diretor de Marianne, Denis Jeambar, se pergunta se em vez de ser o vilão da morte da imprensa, a Web não constituiria, “ao contrário, o ideal democrático da informação para todos ao alcance de um clique”. Segundo ele, o que a imprensa francesa chama de printemps arabe (primavera árabe) é a prova de que povos mais educados, e consequentemente mais bem informados, se revoltam contra ditaduras utilizando todos os meios modernos da comunicação. Assim, Al-Jazira foi um starter quase tão importante quanto o Twitter, o Facebook ou os smartphones na origem desse vento de liberdade. Sendo assim, novos meios são a melhor rima para liberdade.
A pesquisa que o instituto Technologia realizou, juntamente com o Sindicato dos Jornalistas, para avaliar o trabalho real dos jornalistas na França tinha por objetivo avaliar os laços entre democracia e qualidade de informação. Para isso, ouviu 1.070 jornalistas, que responderam aos questionários enviados aos 7 mil profissionais que possuem uma carteira de imprensa.
Princípio sagrado
A primeira constatação é que a profissão trabalha submetida a um enorme estresse. A segunda é que, graças aos novos meios como Twitter, Facebook e os smartphones, “os jornalistas não são mais os únicos a tratar as notícias e os acontecimentos podem abrir mão desses profissionais para serem divulgados”. Sendo assim, há risco real para a profissão de jornalista? Segundo os estudiosos, já estamos vivendo essa realidade em que na internet floresce o que os franceses chamam de “jornalismo cidadão”, de geração espontânea. Os jornalistas profissionais são cada vez mais criticados por conivência com as fontes, por aceitarem as pressões e as regras do jogo político, econômico e comercial das empresas em que trabalham.
Entre os jornalistas ouvidos por Technologia, os da imprensa escrita são os mais fragilizados: 62% dos profissionais da imprensa escrita veem a evolução da produção e do consumo da informação como uma ameaça; essa percepção baixa para 40% entre os profissionais de rádio e 32% entre os de televisão.
É bom lembrar que a imprensa escrita na França recebe anualmente 1,8 bilhão de euros do Estado. Se essa ajuda primordial for suprimida, muitos jornais que hoje sobrevivem com grande dificuldade simplesmente fechariam. Os números não são nada animadores: no primeiro trimestre deste ano, as vendas dos jornais diários caíram 4,5% em relação ao mesmo período de 2010. A própria Marianne, respeitada revista de esquerda, fundada por Jean-François Kahn e Maurice Szafran em 1997, nunca conseguiu ultrapassar os 50 mil exemplares semanais.
Uma das principais reclamações dos jornalistas ouvidos é a degradação das condições de trabalho pela multiplicação das tarefas em nome da racionalização dos custos. Evidentemente, os jornalistas aceitam as imposições para preservar seus empregos. “A rapidez e a emoção se tornam as regras de um jogo que nada tem a ver com a pesquisa da qualidade da informação”, escreve Denis Jeambar.
O diretor-geral de Technologia, Jean-Claude Delgènes, defende os profissionais da comunicação que, segundo ele, acabam sendo os bodes expiatórios pelo mal-estar da sociedade francesa. Para ele, os meios de comunicação são um elemento fundamental na democracia e seria muito perigoso diminuir sua importância. Marianne enfatiza que a liberdade de imprensa nunca está totalmente garantida e é consubstancial à democracia, como lembrava Victor Hugo quando escreveu: “O princípio da liberdade da imprensa não é menos essencial nem menos sagrado que o princípio do sufrágio universal; são dois lados da mesma moeda.”
“Efeito direto sobre a cidadania”
Estaria a imprensa realmente ameaçada pelas novas mídias? A resposta é “sim”. Segundo Marianne, nos Estados Unidos, pela primeira vez no mundo da edição, o número de livros digitais vendidos em 2011 ultrapassou os livros de bolso. A revista imagina que os jornais vivem a mesma ameaça.
O premiado e mundialmente célebre jornalista Bob Woodward é categórico: “Na lápide do diretor-presidente da Google deveria se escrever: `Eu matei os jornais.´” E conclui: “O sistema é obcecado pela rapidez, pela obrigação de responder a uma pseudo-impaciência do público, enquanto este mundo complexo tem necessidade de um jornalismo de grande qualidade, que exige trabalho e investigação em profundidade. Não se faz uma reportagem por telefone ou surfando na internet.”
Com as mudanças impostas ao trabalho do jornalista, Technologia detectou uma insatisfação generalizada entre os profissionais: 46% admitem não ter tempo de se recuperar entre dois períodos de trabalho particularmente difíceis; 68% pensam que têm de trabalhar mais rapidamente que antes; 73% dizem que a carga de trabalho aumentou nos últimos anos; 55% dizem que a atividade profissional tem um impacto negativo sobre a saúde e 88% dizem que ficaram estressados ou extremamente cansados por seus trabalhos nos últimos 12 meses.
Technologia conclui: “A degradação das condições de trabalho dos jornalistas tem um efeito direto sobre a maneira como os cidadãos pensam a atualidade e o bom andamento da sociedade. O enfraquecimento dos jornalistas como trabalhadores vem enfraquecendo a democracia como modelo político.”
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[Leneide Duarte-Plon é jornalista, em Paris]