terça-feira, 29 de janeiro de 2013

A ditadura formou índios para torturar. Em Paris, Primo Levi cuida de torturados




Graças as correspondente do Le Monde no Brasil, Nicolas Bourcier, fiquei sabendo do documentário de Jesco von Puttkamer (1918-1994), exibido na TV Folha, em reportagem da jornalista Laura Capriglione.
Jesko era um homem discreto, descendente de nobreza alemã e segundo Apoena Meirelles, um dos mais importantes indigenistas brasileiros, assassinado em 2004, sempre primou pela discrição, preferindo o anonimato. Com seu trabalho, Von Puttkamer pôde denunciar muitos erros da política indigenista brasileira.
Em fevereiro de 1970, Von Puttkamer filmou cenas de um horror surrealista : na cerimônia de formatura, um grupo de índios da Guarda Rural Indígena desfila diante de autoridades em Belo Horizonte. Estão lá, o ex-vice-presidente da República José Maria Alkmin, o governador de Minas, Israel Pinheiro e o ministro José Costa Cavalcanti.
Ninguém parece chocado quando dois índios passam no desfile com um prisioneiro pendurado no pau-de-arara. Os índios de diversas etnias haviam sido treinados a torturar, como um bom policial sob a ditadura. Que país era esse ?
Segundo a Folha, o pau-de-arara é « a autêntica contribuição brasileira ao arsenal mundial de técnicas de tortura, usado desde os tempos da colônia para punir "negros fujões", como se dizia ». Por lembrar as longas varas usadas para levar aves aos mercados, atadas pelos pés, o suplício ganhou esse nome.
. O vídeo pode ser visto no link :
Nossa ditadura está longe no tempo, acabaram as torturas de presos políticos mas a tortura de presos comuns continua sendo uma prática conhecida e, muitas vezes, aceita por grande parte da opinião pública. Que país é esse ?
Na França, o Centro Primo-Levi publicou no ano passado o Livre blanc de la torture-Livro branco da tortura, que estima em 100 mil o número de vítimas da tortura vivendo na França. Essas pessoas vêm de todas as partes do mundo e, desde 1995, podem ser tratadas por psicólogos, psiquiatras e psicanalistas graças à criação do Centro Primo Levi.
Tito de Alencar Lima, o dominicano brasileiro que se suicidou em 1974 na França, não pôde continuar vivendo depois de ter sido torturado. Preferiu a morte a conviver com a tortura, que não se apagava da memória.
 Vivre après la torture é justamente o slogan do Centro Primo Levi, que organiza colóquios em torno do tema e defende uma política de saúde pública eficaz para tratar os milhares de « demandeurs d’asile » que conseguiram escapar  de dezenas de países que torturam e matam os opositores políticos. O Centro Primo-Levi trabalha com juristas e uma equipe pluridisciplinar para garantir o acesso a tratamentos médicos e psicológicos dessas pessoas.  
« Infelizmente não se pode curar as sequelas da tortura », diz a diretora do Centro, Eléonore Morel. E quando essas pessoas estão em condições de precariedade total, tudo fica mais difícil. Como tratar das insônias de uma pessoa que não sabe onde vai dormir à noite ? É o caso de muitos dos que chegam ao Centro.
O filósofo Jean Améry, amigo de Primo Levi, dizia que quem foi submetido à tortura fica incapaz de sentir-se em casa neste mundo. O ultraje do aniquilamento é indelével. A confiança no mundo, que a tortura apaga, é irrecuperável.

Amour

Esse magnífico filme de Michael Haneke, Palma de Ouro em Cannes em 2012, revelou mais uma vez o grande ator que é Jean-Louis Trintignant e a grande atriz que é Emmanuelle Riva.
Ao ser interrogado por um jornal qual seu projeto para o futuro, Trintignant respondeu : morrer. Mas garantiu que não vai se suicidar imediatamente, mesmo se às vezes se pergunte por que esperar. Talvez porque além de gostar de fazer leituras de poesia no teatro, ele adora também a calma de sua casa, na pequena cidade de Uzès, onde pode passar um dia inteiro observando um lagargo. Ele garante que é muito mais interessante que ver televisão. Quem duvida ?
Aliás, Trintignant numa cena que vi na televisão deixou Costa Gavras sem graça. O diretor estava no auditório quando o ator disse diante de toda a assistência, no meio de uma entrevista descontraída : « Costa eu sabia que você era amante da minha mulher. Você ficou vermelho ? Não sabia que eu sabia ? » Depois do que, Trintignant voltou a falar com a maior descontração sobre a carreira, filmes etc.

Barjot no palácio

Barjot foi ao Palácio do Eliseu, na semana passada, onde Hollande a esperava para uma audiência.
Não, não é um erro de ortografia. Não se trata da famosa atriz, aposentada e escondida no seu refúgio de Saint-Tropez. A senhora que usa o pseudônimo de Frigide Barjot (Frigide é frígida ; Barjot é maluco, louco, pirado, em gíria) se apresenta como militante católica e se passou a liderar a oposição à lei do casamento para pessoas do mesmo sexo, que os socialistas vão defender no Congresso a partir desta terça-feira, 29 de fevereiro.
O pseudônimo já diz um pouco da personagem. Mas por que Hollande recebe essa « pirada » no Eliseu ? Porque ela criou uma ONG que organizou juntamente com todos os « anti-mariage pour tous » a mega-passeata que, segundo os organizadores reuniu mais de 900 mil pessoas dia 13 de janeiro, em Paris. 

Segundo a polícia foram 350 mil. No cortejo, pais e mães com seus rebentos, a igreja católica com padres e arcebispos, a nata da França que não gosta de mudanças. Eram franceses que vieram de todas as cidades da França para a passeata. Não dava para não pensar em Vichy ou no Front National.

Apesar de seu look moderno e jovem, Frigide Barjot não é tão jovem (tem 50 anos) e nem tão moderna. Defende « o direito das crianças de terem um pai e uma   mãe ». Um discurso que a oposição de direita apoia. O « mariage pour tous » chamado de « mariage gay » pela oposição deve abrir as portas para a adoção por casais do mesmo sexo e à procriação assistida (procréation médicalement assistée).
Fim de uma civilização, abertura para o incesto e a poligamia, bradam os opositores da lei. A direita vem usando de todos os argumentos para tentar convencer os deputados e a opinião pública de que a lei vai ser o fim da família e a abertura para todas as perversões. O que não parece abalar os socialistas na determinação de fazer uma lei que siga a tendência de outros países europeus como a Espanha, Portugal e a Bélgica, que já aprovaram o casamento de pessoas do mesmo sexo.
Domingo, dia 27, os defensores da lei sairam às ruas. ‘A frente do cortejo, o prefeito de Paris, Bertrand Delanoë, assumidamente gay, e dezenas de politicos heterossexuais, como Jack Lang. Foram 400 mil pessoas, segundo os organizadores, e 125 mil segundo a polícia.
Em breve, os gays franceses vão poder se casar. Apesar de terem mobilizado menos pessoas para a batalha das ruas, os socialistas têm a maioria no Congresso. A lei vai ser debatida por 15 dias numa batalha que vai lembrar a lei que instituiu, em 1974, a IVG (interruption volontaire de grossesse-interrupção voluntaria de gravidez).

Chirac votou Sarkozy. Mas não sabe

Enquanto o marido fica trancado diariamente no escritório da Rue de Lille ou em casa, protegido dos jornalistas a quem diria tudo o que ela não quer que ele diga, Madame Chirac sai, frequenta o mundo, discursa na Fundação Jacques Chirac, passeia o cachorrinho na Rue Bonaparte, perto do apartamento do Quai Voltaire, com vista para o Sena. O ex-presidente, que acaba de completar 80 anos, está com Alzheimer e perdeu quase totalmente a memória e um bocado da censura que o super-ego exerce sobre todos nós. Diz tudo o que quer, com ou sem Bernadette Chirac ao lado.
Quando, em 2011  o então candidato Hollande encontrou o ex-presidente numa pequena cidade do interior da Corrèze onde ambos têm origem política, Chirac disse que ia « votar Hollande » para presidente. Escândalo : François Hollande é socialista e Chirac de direita. Mas este detesta e sempre detestou Sarkozy.
Então, munida de uma procuração do marido, madame Chirac foi votar dia 22 de abril de 2012. Votou no seu candidato, Sarkozy, por ela e por seu marido, como sua « bastante procuradora ». Ela sabe muito bem que se ele fosse votar, teria traído seu grupo político e dado seu voto a Hollande. Além de atrair a imprensa e dizer aos jornalistas tudo o que pensa. Para ela, verdadeiros disparates.
Um grande perfil dos Chirac publicado recentemente na excelente revista semanal do Le Monde mostra toda a perfídia de Madame Chirac. A matéria termina com a declaração dela, que deu apoio público à campanha de Nicolas Sarkozy :
 « Imaginem que na minha família (a filha Claude e o genro) todos votaram em Hollande. Menos Jacques. Mas ele não sabe ».
No comments.

Domésticas : quanto mais desenvolvidos, menos

O emprego doméstico diminui à medida que se avança para o norte da Europa. Segundo a OIT-Organização Internacional do Trabalho, é na América Latina que os trabalhadores domésticos são mais numerosos : 7,6% do total de empregos. Nos países desenvolvidos, somente 0,8% dos empregos (em média) são de empregados domésticos. Na Europa, é na Espanha que os empregados domésticos representam maior proporção : 4%, enquanto nos países nórdicos eles representam apenas 0,1% dos empregos.
Quem quiser tirar conclusões, que tire.

DSK : compulsão sexual

O Journal du Dimanche garante que Dominique Strauss-Kahn teria pago 1,5 milhão de dólares como indenização à camareira do Sofitel de Nova York, Nafissatou Dialo, pela agressão sexual, da qual o ex-diretor do FMI era acusado. Os advogados das duas partes chegaram a um acordo em dezembro, em Nova York mas não divulgaram o valor da indenização.
Com mais de um milhão de dólares em sua conta, depois de pagar a seus advogados, a camareira tem um razoável pé de meia para recomeçar a vida.

Como vai a vida ?

A julgar pelo resultado de uma pesquisa francesa, a França é um lugar agradável de viver.  A média que os franceses dão para o « bem-estar » que sentem é 6,8 sobre 10, segundo uma pesquisa do Instituto Nacional de Estatística (Insee).
Essa noção subjetiva de bem-estar é uma recomendação do economista e prêmio Nobel americano Joseph Stiglitz. Ele defende novos critérios de performances econômicas e sociais, já que o velho PIB mede apenas uma riqueza quantificada e não a percepção do bem-estar dos cidadãos.
Um pouco mais de 50% dos franceses avaliam  entre 7 e 8 (sobre 10) sua satisfação. No pólo oposto, os mais insatisfeitos, 7%, deram entre 0 e 4 à sua satisfação. Em geral, são pessoas com laços familiares e sociais rompidos.

Israelenses e palestinos : o exemplo franco-alemão

O historiador israelense Shlomo Sand mais uma vez navega contra a corrente. Em seu novo livro Comment la terre d’Israel fut inventée (Como a terra de Israel foi inventada), ele lembra que até a ascensão de Hitler, o judaísmo oficial recusava um Estado judaico. Temiam que a terra acabasse substituindo Deus.  « Eles temiam que o Estado judaico fosse se transformar num Estado militarista, que utiliza a força ».
Em longa entrevista ao jornal L’Humanité Sand diz que a Europa cuspiu os judeus sobre o outro, o habitante do Oriente Médio. Ele pretende desmistificar, desde seu primeiro livro « Comment le peuple juif fut inventé » a ideia de um povo-raça que partiu e depois voltou. E também quer desmistificar a ideia de que existe um direito histórico porque essa terra pertence aos judeus. « Não creio que os muçulmanos tenham um direito histórico sobre a Espanha ainda que tenham sido expulsos de lá. Não creio que os índios tenham o direito de expulsar os brancos e os negros de Manhattan e do Harlem para construir um estado índio, mesmo sabendo que foram expulsos daquela terra. Digo isso porque a fantasia que existe de reconstituir o mundo como ele era há 2 mil anos pode transformar o mundo num asilo de loucos ».
Segundo Sand, é preciso forçar Israel – por todos os meios menos o terror e o assassinato – a retornar às fronteiras de 1967 e reconhecer uma República palestina. « Porque não sou racista e nem defendo uma comunidade. Precisamos construir uma federação que vai reforçar os laços entre as duas repúblicas. O sonho, a utopia, é uma confederação israelo-palestina ».
 Uma imagem simbólica: em Paris, a embaixadora da Palestina na União Europeia, Leila Shahid, e o filho de rabino e escritor engajado pela paz Israel-Palestina, Michel Warschawski, de mãos dadas
Pourquoi pas ? Este ano, quando a Alemanha e a França comemoram os 50 anos do tratado do Elyseu, assinado por Adenauer e De Gaulle, pode-se dizer que tudo é possível. Inimigos históricos, alemães e franceses deixaram para trás muitos séculos de guerras e ódio, ocupação alemã da França. Hoje são parceiros inseparáveis na construção e no aperfeiçoamento da Europa, como realidade política e econômica..