quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Libération : as melhores capas em 37 anos

É uma antologia com um título sucinto: “Les Unes”, acompanhado do logotipo do jornal (Ed. de La Martinière, 49 euros). O livro, do tamanho de uma página tablóide, a marca de Libération, tem 351 páginas e é, ao mesmo tempo, um balanço e um best of feito de textos e imagens. Além das primeiras páginas, o volume reúne também alguns dos melhores artigos e entrevistas da história do jornal. Um verdadeiro deleite e uma aula de jornalismo.

Libération mudou a imagem visual e a língua do jornalismo na França. E influenciou diversos jornais no mundo todo. O jornal inventou uma linguagem mais próxima do francês falado, uma língua mais viva. O quotidiano criou também novas rubricas para um jornalismo que antes dele tinha a aparência austera de um membro da Academia Francesa.

O volume é uma verdadeira antologia que inclui, por exemplo, uma entrevista do escritor americano Paul Auster publicada na edição de 17 e 18 de janeiro de 2009, em que ele analisa a importância da posse de Obama, primeiro presidente negro eleito pelo povo americano.

As primeiras páginas (les unes) de Libération _ jornal legendário fundado em 1973 pelo filósofo Jean-Paul Sartre acompanhado de um grupo de jovens militantes maoístas impregnados das ideias e dos ideais de maio de 1968 _ testemunham de 37 anos de jornalismo livre, libertário, engajado nas lutas da esquerda e da emancipação anticolonial e antiimperialista, mas sem o ranço da esquerda tradicional que se esclerosou com o tempo.

“Les unes” de Libération tornaram-se marca registrada do jornal. Criativas, bem-humoradas, elas podem ser provocativas, inventando jogos de palavras, usando e abusando do duplo sentido e dos trocadilhos. Livre, o jornal não tem rabo preso, não depende de partidos políticos e nele os jornalistas decidem tudo, desde a linha editorial até o candidato à presidência que apoiam. Porque o jornal não adota a postura hipócrita que tenta fazer o leitor crer num jornalismo objetivo que só existe nos manuais. Para Libération, jornalismo é uma arma de combate.

Por isso, seus jornalistas brigam para manter a liberdade que sempre tiveram. Quem manda no jornal é a redação e não o patrão ou o acionista majoritário, como reafirma o atual diretor Laurent Joffrin: “Os jornalistas decidem sozinhos, todo dia, o que devem escrever; nem partido, nem poder econômico podem alterar um trabalho de investigação e reportagem que só obedece à vontade de compreender o mundo e transformá-lo”.

Quando o jornal foi lançado o mundo era outro. “Era o tempo da revolução próxima, do comunismo sonhado e da ilusão perigosa. Sem abandonar nossa vontade de justiça, descemos do céu das utopias para viver na terra dos combates difíceis e das realidades exaltantes”, escreve Joffrin na apresentação do livro.

O estilo Libération de jornalismo foi levado às últimas consequências na edição de 20 de novembro de 2009. A capa era a mão esquerda de Thierry Henry, responsável pela classificação da França para a Copa do Mundo de 2010, num jogo contra a Irlanda. A falta não foi vista pelo juiz e a vergonhosa classificação serviu de pretexto ao jornal para fazer uma edição inteira em que todos os artigos e reportagens foram ilustradas por fotos em que as mãos dos personagens aparecem com destaque ou em corte especial.

Na matéria da página 8 em que a correspondente em São Paulo, Chantal Rayes trata do caso Battisti numa matéria intitulada “Lula, dernier recours de Battisti”, vê-se uma mão inconfundível com uma aliança e quatro dedos. Na página ao lado, a matéria sobre o Afeganistão mostra o presidente Karzai gesticulando com as duas mãos.

Um estilo Libé de fazer jornal. A antologia é desde já um clássico.

*** Publicado originalmente no Observatorio da Imprensa (www.observatoriodaimprensa.com.br)

domingo, 1 de agosto de 2010

Os seios da Virgem e outras descobertas em Bruges

Pode-se ir a Bruges, na Bélgica, para ver os canais que lhe valeram o título de “Veneza do Norte”. Pode-se ir pela maravilhosa arquitetura, pela qualidade do chocolate ou pelos museus. Ou por todos esses motivos ao mesmo tempo.

A arte flamenga está presente em numerosos museus que guardam obras extraordinárias de artistas como Van der Weyden e Hans Memling, entre dezenas de pintores geniais. No século XIV, Bruges era uma cidade rica, um importante centro comercial e o porto mais importante da Europa do Norte. A cidade conheceu o apogeu entre os séculos XII e XV e os museus têm um acervo de obras-primas da arte flamenga que valem a viagem.

Voltei a Bruges com minha filha Viviana, 30 anos depois de ir pela primeira vez. Desta vez, fiquei mais tempo e fiz diversas descobertas nessa maravilhosa cidade da parte Flamenga da Bélgica, localizada entre Bruxelas e o Mar do Norte.


Vi em Bruges uma madona extraordinária de Wan Der Weyden. O quadro se chama “São Lucas desenhando o retrato da Virgem”. Pintado no século XV, ele tem um detalhe insólito: a virgem dá o seio ao menino que ela segura com o braço direito. O seio direito, que ela sustenta com a mão esquerda, sai quase totalmente da blusa e dele pode-se ver o bico. O menino Jesus sorri como se tivesse acabado de mamar. Não me lembro de ter visto outro seio da virgem Maria tão despudoradamente oferecido ao menino. Nem um menino Jesus tão real, “bambino” feito de carne e osso. O quadro é uma das obras-primas de Roger Wan Der Weyden.

De Hans Memling, no Museu Groeningemuseum, descobri uma “Anunciação” absolutamente original. O Anjo que fala com a virgem Maria está todo de branco. A virgem Maria que o escuta, está quase de costas e olha para o chão, com um livro na mão esquerda. A cena é insólita mas o que mais me chamou a atenção é que ela também está toda de branco, da cabeça aos pés, com um manto que lhe cobre os cabelos ruivos. Uma beleza de “Anunciação” em que anjo e virgem se vestem de imaculadas vestes brancas tão diferentes das belas cores de outras famosas Anunciações, um dos temas mais explorados na história da pintura ocidental.



Mas minha maior surpresa foi encontrar Michelangelo na Igraja Notre-Dame de Bruges. A única obra do escultor que se encontra fora da Itália é essa “Virgem com o menino” de uma beleza extraordinária. A figura, de rosto sereno e traços delicados, lembra a virgem da “Pietà” da Basílica de São Pedro, de Roma. Dir-se-ia que foi a mesma mulher que posou para Michelangelo para as duas esculturas.


A velha Europa tem tesouros que toda uma vida não seria suficiente para descobrir.

Hillary, quel temps de merde !

Os franceses têm o hábito saudável de consultar todo dia a “météo” para sair de casa. Em Paris, onde ter uma capa de chuva ou um guarda-chuva à mão é sempre uma necessidade pois o tempo pode variar muito com chuvas finas se alternando com o sol diversas vezes num mesmo dia, as pessoas têm diversos impermeáveis: de verão, de inverno e de meia estação. Um “imper” para cada temperatura, para não ser colhido de surpresa pela chuva. Já li que apesar da fama de Londres, chove mais em Paris do que na capital britânica.

Do outro lado do Canal da Mancha, os britânicos são tão obcecados pela meteorologia quanto os franceses. Uma pesquisa de um instituto inglês atestou que os ingleses falam mais da chuva e do bom tempo que do trabalho, de esporte ou de fofocas variadas. Em média, passam 49 horas por ano a falar do tempo !

Sarkozy é monoglota como Lula. Mas a imprensa francesa não costuma criticá-lo pelo fato de não falar outras línguas, nem de ser ignorante (apesar de ser advogado) e não gostar de ler. Para a imprensa brasileira, Lula merece todas as críticas do mundo, simplesmente pelo fato de existir. Um operário na presidência é um osso entalado na garganta das nossas “elites”.

Sarkozy recebeu no ano passado a Secretária de Estado Hillary Clinton. Tentando parecer simpático e descontraído, resolveu ensaiar uma frase em inglês ao recebê-la no alto das escadas do Palácio do Eliseu. As câmeras de TV captaram a frase de Sarkozy que fazia um comentário sobre o “time” cinzento e chuvoso em Paris naquele dia.

A gaffe de Sarko mostrou que ele faltou à aula em que o professor de inglês ensinou que se fala de “weather” e não de “time” quando se trata de meteorologia. A língua francesa, como a portuguesa simplifica o problema com uma única palavra.

Para Sarko, teria sido mais fácil dizer com naturalidade: “Hillary, quel temps de merde!”