sábado, 27 de março de 2010

Hexágono cor-de-rosa

No dia 21 de março os franceses deram uma prova eloquente de insatisfação e descontentamento. O mapa da França ficou todo cor-de-rosa, cor do Partido Socialista, com uma pequena mancha azul (cor do partido do presidente) a Leste, na fronteira com a Alemanha. Nas eleições para a presidência das 22 regiões, 21 ficaram com a esquerda (Partido Socialista, Partido Europa Ecologia e Front de Gauche, coalizão do Partido Comunista com o jovem Parti de Gauche, de Jean-Luc Mélenchon). A única região metropolitana a ser governada nos próximos anos pelo partido de Sarkozy será a Alsácia, que continua à direita. A Córsega, que era governada pela direita, ficou cor-de-rosa, como o resto da França.
E o que é pior, dezessete ministros de Sarkozy eram candidatos a presidentes de regiões. Todos, sem exceção, foram derrotados. Uma derrota histórica. Por outro lado, a ex-candidata à presidência, Ségolène Royal, foi eleita presidente de sua região (Poitou-Charentes) com mais de 60% dos votos do segundo turno.
O presidente sai enfraquecido com essa eleição que teve no primeiro turno 53% de abstenção e no segundo um pouco menos (48,9). Um recorde histórico. Quase a metade dos eleitores não saiu de casa para votar no segundo turno mas em alguns subúrbios da região parisiense, somente 30% do eleitorado votou. Onde foram parar os eleitores de direita que votaram em Sarkozy em 2007? A maioria não votou e muitos voltaram aos braços do Front National de Jean-Marie Le Pen.
No final, a esquerda teve 54,1% dos votos, a direita ficou com 35,4% e o Front National, de extrema-direita, 9,4% dos votos nacionais com picos de 22% na região Provence-Alpes-Côte d’Azur e 18,31% na região Nord-Pas de Calais, onde a filha de Le Pen, Marine, representa a linha ultranacionalista do pai. Jean-Marie Le Pen, de 82 anos, volta a assustar a direita republicana renascendo de suas próprias cinzas. O próprio Sarkozy pensara ter liquidado o velho xenófobo e eurocético, ao lhe roubar parte do eleitorado na eleição presidencial de 2007. Agora, esses desiludidos de Sarkozy voltaram aos braços do antigo líder.
Com a vitória esmagadora da esquerda e a volta em força de Le Pen, Sarkozy fez esta semana uma pequena mudança técnica no ministério. Virou o leme para a direita para acalmar seus correligionários. Mas não mudou o primeiro-ministro Fillon, que continua muito mais popular que ele nas pesquisas de opinião. Mas segundo o Le Monde desta quinta-feira, datado de 26, existe uma tensão entre o presidente e o primeiro-ministro. Tanto que o presidente ordenou a Fillon a anulação de uma entrevista ao vivo no telejornal de maior audiência, prevista para a quarta-feira.
Na reforma, Sarkozy apenas trocou alguns ministros e diz que vai continuar as reformas, muito impopulares, pois foi eleito para isso. A reforma do regime de aposentadorias _ contra a qual protestaram milhares de pessoas nas ruas de Paris e diversas cidades (quase um milhão de pessoas desfilaram na terça-feira, 23, contra as mudanças na aposentadoria) _ ainda vai gerar muito debate e passeatas.
O desemprego continua em alta, o poder de compra cai cada vez mais nas classes populares nas cidades e no campo, um milhão de pessoas ficaram fora do seguro-desemprego no mês passado por terem chegado ao final do período de garantia. Mais fome e precariedade, mais filas nos restaurantes que servem sopas populares em todo o país (Secours Catholique e Restos du Coeur). Enfim, somente os ricos estão contentes com a política do presidente que limitou os impostos a 50% para as faixas mais elevadas (o chamado bouclier fiscal).
Como se não bastasse, nessa quinta-feira, 25 de março, o ex-primeiro-ministro e ex-chanceler Dominique de Villepin lançou as bases de um novo partido de direita (ainda sem nome) que vai preparar sua campanha para a eleição presidencial de 2012. Os dois homens nutrem um pelo outro um ódio digno das grandes tragédias shakespeareanas, o que já levou Villepin ao banco dos réus no processo Clearstream (as falsas listas de contas secretas num paraíso fiscal em que o nome de Sarkozy aparecera). A Justiça inocentou-o mas a procuradoria recorreu e haverá novo julgamento, uma manobra do Palácio do Eliseu, segundo Villepin.
O ar de abatimento de Sarkozy é mais do que explicável.

Godard em Cannes

Jean-Luc Godard faz 80 anos em dezembro e lança um novo filme, “Socialisme”, em Cannes, no mês de maio. O cineasta que é sinônimo de cinema, de Nouvelle Vague, mas também de provocação e polêmica, foi biografado pelo jornalista Antoine de Baecque que entrevistei esta semana para o caderno Mais, da Folha de São Paulo. Godard, o livro de quase mil páginas, é um extraodinário trabalho de três anos do jornalista e historiador do cinema. Um verdadeiro mergulho na vida, mas sobretudo na obra, do cineasta mais estudado e discutido da Nouvelle Vague. Uma leitura obrigatória para os cinéfilos. Godard está muito ocupado com a montagem de seu filme e ainda não disse o que pensa do livro. Antoine de Baecque, que foi diretor da revista Cahiers du Cinéma e editor de Cultura do jornal Libération, além de autor de uma biografia de François Truffaut, escrita com Serge Toubiana, imagina que o cineasta, que sempre se manifestou contra a idéia de uma biografia, pode mandar uma carta de insultos ou manter um silêncio absoluto.

Skinner vive

Um crime de Estado a menos. Talvez um inocente a mais fora da prisão, em breve.
Na quarta-feira, o americano Hank Skinner, de 47 anos, escapou da morte uma hora antes da execução, no Texas. Os últimos 15 anos ele passou no corredor da morte. A mais alta jurisdição americana decidiu pedir os testes de DNA que podem inocentar Skinner, que sempre negou os três crimes da noite do réveillon de 1993 : a morte de sua companheira e dos dois filhos dela. Até hoje a Justiça tinha negado o pedido do acusado de realizar testes de DNA que, segundo ele, vão provar sua inocência. Skinner afirma que estava desmaiado no momento em que as três pessoas foram assassinadas, o que foi provado pela presença de barbitúricos em seu sangue. Nos últimos anos, os Estados Unidos libertaram 17 condenados do corredor da morte, graças aos testes de DNA.
Nesta quarta-feira, em Paris, dezenas de manifestantes abolicionistas foram pedir clemência para Skinner diante da Embaixada dos Estados Unidos. A atual mulher do preso, a francesa Sandrine Ageorges-Skinner recebeu o apoio do Quai d’Orsay na sua luta pela obtenção dos testes de DNA.
Um processo cheio de irregularidades fez recuar a Justiça que se negara até agora a autorizar os testes. O governador do Texas, Rick Perry, autorizou a execução em 2004 de Todd Willingham mesmo tendo, horas antes, tomado conhecimento de um relatório que o inocentava. O Estado do Texas, o campeão americano em condenações à morte, executou 451 pessoas desde 1976.

Patrizia, Emmanuelle e Macha


Neste mês em que se comemorou em Paris o Printemps des Poètes versão 2010, fui ouvir a poetisa italiana Patrizia Cavalli dizer poesias de sua autoria. Cavalli veio de Roma especialmente para o evento na sede das Editions des Femmes, em Saint-Germain-des-Prés. Um lugar elegante e charmoso. O livro de Patrizia Cavalli Mes poèmes ne changeront pas le monde foi traduzido para o francês por duas tradutoras de talento, que conheço bem, a poetisa Danièle Faugeras e a professora universitária e tradutora Pascale Janot.
Os poemas de Patrizia Cavalli me transportaram imediatamente para o mundo pictórico da também romana Giovanna Picciau. Nunca duas artistas me pareceram dialogar na poesia e na pintura em tão grande harmonia. As duas artistas romanas talvez nem se conheçam pessoalmente mas o mundo e os personagens delas têm muito em comum.

Na mesma tarde, ouvi ainda duas grandes atrizes da Nouvelle Vague: Macha Méril (Une femme mariée, de Jean-Luc Godard) e Emmanuelle Riva (Hiroshima mon amour, de Alain Resnais). Riva leu poemas e Méril disse textos de George Sand de uma peça (Feu Sacré) que está em cartaz em Paris como parte das comemorações do bicentenário de Chopin. Dia 30, Macha Méril autografa no Salão do Livro de Paris seu livro Un jour, je suis morte (Bibliothèque des voix).
Ao dar uma olhada na enciclpopédia eletrônica, descubro que a atriz e escritora Macha Méril é filha de um príncipe russo e se chama na realidade Maria-Magdalena Wladimirnovna Gagarina. De fato, ela tem porte de princesa e continua linda, com aquele ar “distingué” que sempre apreciei.
Encontros como esse com mulheres inteligentes, pequenos prazeres parisienses de início de primavera, são momentos de real felicidade.

sábado, 20 de março de 2010

Freud e o sionismo


Ao ler os jornais e constatar o impasse do “problema” do Oriente Médio com a ocupação israelense se eternizando e a criação do Estado Palestino sendo transferida para as calendas gregas, como não pensar em Freud e sua famosa carta?
Segundo a historiadora da psicanálise Elisabeth Roudinesco, “Freud considerava o sionismo como uma perigosa utopia, mas também como uma patologia, isto é, como um modo de compensação dos sentimentos nacionais frustrados pelo antissemitismo”. Ele escreveu em 1930 uma carta explicando a um amigo porque não podia defender a criação de um país para os judeus na Palestina. Essa carta ficou secreta até poucos anos atrás quando foi traduzida para o francês e comentada no Nouvel Observateur pela historiadora. Agora, ela volta ao tema da carta de Freud em seu novo livro Retour sur la question juive e comentou em entrevista exclusiva que fiz para a revista Tropico: “Defendo soluções para evitar um mundo que seria o pior pesadelo, o de judeus racistas e árabes antissemitas. E nesse pesadelo já estamos”.

« Eu confesso, boicoto os produtos de Israel”

O autor da carta aberta à ministra da Justiça da França, publicada com esse título no jornal L’Humanité (comunista) não é nenhum antissemita. Chama-se Serge Grossvak e é membro da União Judaica Francesa para a Paz (Union Juive Française pour la Paix).
A carta começa com a frase ”Eu confesso, boicoto os produtos de Israel” e continua: “Não quero esses produtos frutos do sangue e da dominação. Ele exalam um cheiro de ódio e de opressão. Eu os recuso pensando em meus pais que me falaram do martírio sob os nazistas. Esse inferno que devorou nossa família. “Nunca mais” era o clamor do coração no fim do pesadelo. “Nunca mais”, disseram os sobreviventes. Filho de judeus imigrantes, eu aprendi essa lição como um dever de humanidade, como um engajamento de solidariedade, como uma exigência de vida. Eu boicoto hoje para que os descendentes de um grande martírio possam sair do caminho assassino, para que o Estado de Israel e seu povo, perdido num extremismo que não para de crescer, abandonem essa tirania.
Eu confesso, lanço um apelo ao boicote dos produtos desse país hoje guerreiro, conquistador e opressor, desse país que abdicou de qualquer moral. Eu confesso e convido a todos a este ato de resistência. Ato pacífico. Ato de razão. Meu apelo é um clamor contra a indignidade dos crimes cometidos, contra a prática das colônias. (...)
Eu confesso ter participado de ações de boicote, por minha dignidade humana e pela honra dos meus antepassados. Porque não posso suportar a idéia de abandonar no sofrimento e na injustiça o povo da Palestina. Porque sou descendente de Marek Edelman, de Joseph Epstein e de Raymond Aubrac, minha raiz é judaica e sempre ao lado dos oprimidos, de todos os oprimidos.
Senhora Ministra, prenda a mim e não Sakina*. Esses atos de resistência visam esse Estado apontado como autor de “crime de guerra e crime contra a humanidade” pelo juiz Goldstone (judeu como eu mesmo).
(...)
Senhora ministra, nada me fará renunciar a meu compromisso pela paz e pela Justiça, para que o povo palestino recupere sua dignidade em seu país independente, nas fronteiras de 1967 e com Jerusalém Oriental como capital. Que os criminosos sejam levados ao tribunal internacional. Que seja virada, enfim, essa página de ódio”.

*Sakina Amaud foi presa no dia 10 de fevereiro quando participava de uma ação coletiva e pacífica de apelo ao boicote de produtos israelenses diante do supermercado Carrefour em Mérignac, na França.

A utopia de Michel Warschawski

O militante pacifista, escritor e filho de rabino Michel Warschawski nasceu na França mas emigrou muito jovem para Israel. Ele é autor de diversos livros e fundou o Centro de Informação alternativa (The Alternative Information Center)
http://www.alternativenews.org/
Michel Warschawski escreve de Jerusalém desde 2008 para o jornal satírico francês SinéHebdo e é membro do comitê que criou o Tribunal Russell sobre a Palestina, instalado em março de 2009. Ele defende um estado binacional em que judeus e árabes coabitariam num mesmo Estado, com iguais direitos. Para explicar sua ligação com Israel, ele declarou em 2005: “Amo Israel como se ama uma criança nascida de um estupro. Não se pode culpar a criança das circunstâncias de sua concepção”.
A seguir, duas perguntas a Michel Warschawski :
Há quem proponha boicotar os produtos de Israel. O que o senhor pensa dessa proposta e de sua eficácia?
Michel Warschawski: Toda campanha que propõe sanções contra o Estado de Israel e tudo o que ele representa quando atenta contra o direito internacional e comete ou apoia crimes de guerra é positiva. O boicote é uma das expressões dessas sanções indispensáveis pelo menos no plano ético, independentemente de sua eficácia. Algumas formas de boicote são eficazes, sobretudo o boicote universitário e cultural que atinge camadas sensíveis da sociedade israelense.
A diabolização do Hamas lhe parece justificada?
Michel Warschawski: De maneira nenhuma. O Hamas é ao mesmo tempo um movimento de libertação nacional e a expressão democrática da maioria dos palestinos em Gaza e na Cisjordânia. Por essa razão ele deve ser reconhecido pela comunidade internacional.

Uma feminista na Coupole

Na quinta feira, dia 18, a ex-ministra Simone Veil entrou para a Academia Francesa, a Coupole como é conhecida. Atualmente são cinco mulheres entre os 40 membros. A primeira mulher eleita para a prestigiosa academia de letras, que serviu de modelo para a criação da academia brasileira, foi Marguerite Yourcenar, em 1980.
Veil foi ministra da saúde na presidência de Giscard d’Estaing e a responsável pela descriminalização do aborto com a criação do IVG (interruption volontaire de grossesse), o aborto legal, praticado em todos os hospitais públicos franceses a partir de 1975. Ela foi eleita a personalidade preferida dos franceses em 2010.
A humanista Simone Veil nasceu em Nice, em 1927, numa família judia e foi deportada para o campo de Auschwitz-Birkenau com 17 anos. Na França, fez parte do Conselho Constitucional até 2007 e como deputada europeia presidiu o Parlamento europeu de 1979 a 1982. Em 2007, publicou sua autobiografia, Une vie, que vendeu quase 600 mil exemplares, na qual rememora sua passagem pelo campo de concentração, fala de seu ateísmo e de seu feminismo. Três presidentes estiveram presentes à cerimônia : Sarkozy, Chirac e Giscard d’Estaing.

SarK.O.

Os eleitores franceses votaram dia 14 no primeiro turno das eleições regionais para eleger o presidente das 22 regiões francesas, espécie de governadores de um país dividido em regiões. O presidente da região é o poder local mais próximo do cidadão (depois do prefeito). Mas 53% dos eleitores não foram votar, um abstencionismo recorde em eleições regionais. E os que votaram expressaram o descontentamento com as reformas de Sarkozy votando no Partido Socialista, no partido Europe écologie, que aparece como a terceira mais importante formação política francesa, e no Front de Gauche (que reúne o Partido Comunista, o Parti de Gauche e a Gauche unitaire). O segundo turno promete uma vitória esmagadora da esquerda. Com essa perspectiva, o Nouvel Observateur fez uma capa com a foto de Sarkozy e o título SarK.O. um trocadilho com o apelido do presidente (Sarko) e o knock out (K.O.) da direita.
Das 22 regiões francesas, 20 são atualmente governadas pelo PS (exceto a Alsácia e a Córsega). No segundo turno deste domingo há grandes chances que os dois últimos bastiões do partido do presidente (UMP) passem também a ser governados pela esquerda, com os socialistas majoritários na coalizão que se forma entre os dois turnos. O que tornará o mapa hexagonal totalmente rosa, cor dos socialistas.
Duas evidências: o Front National de Jean-Marie Le Pen ressuscitou e teve pouco mais de 10% dos votos na média nacional com pico de mais de 20% na Côte d’Azur (região Provence-Alpes-Côte d’Azur). E os ecologistas franceses se afirmam como a tercera força política que vai pesar e muito para as eleições presidenciais de 2012.

Salto alto

Entrevistado na televisão sobre o filme que dirigiu (A single man) e que estreava em Paris, o estilista Tom Ford disse que gostaria de ver sua amiga e ex-manequim Carla Bruni novamente em saltos altos. “Ela fica tão elegante”.
Uma jornalista lembrou ao americano que o presidente francês é baixinho e sua mulher não pode usar saltos ao seu lado. Sarkozy chega mesmo a usar um salto discreto no sapato, o que pode ser constatado em algumas fotos. “Mas a Nicole Kidman sempre usou saltos quando era casada com Tom Cruise”, respondeu candidamente Ford.

Cultura, história e gastronomia


O que um turista espera encontrar na França ? Cultura, art de vivre, a gastronomia famosa, os monumentos históricos e as belas paisagens.
E em Paris ? Tudo isso e mais o mau humor proverbial dos parisienses. Mas nem assim os estrangeiros e franceses da província desertam a capital francesa, campeã mundial de turistas novamente em 2009. Eles chegam em avião, trem e automóveis para ver de perto o Sena e seus cais, a Notre Dame, a Torre Eiffel, o Louvre, a avenida Champs Elysées, o Centre Pompidou (Beaubourg para os parisienses), o jardim do Luxembourg (Luco para os parisienses), os cafés e bistrôs. No terraço de um café de Paris, acompanhado do Le Monde, de um café e de um croissant, no dolce farniente, o turista constata que a vida é bela e vale a pena ser vivida. Quem não é turista e tem talento literário, como a escritora Régine Robin, pode fazer dos cafés de Paris o celeiro de seus romances, entregando-se à arte de observar homens e mulheres e apurar os ouvidos para pescar frases ao acaso. Depois, é só usar a imaginação e nasce um romance.
Os turistas são unânimes em dizer que Paris é um sonho, um cenário ideal para momentos românticos, passeios culturais e deslumbramento com a arquitetura. As mulheres acham os homens franceses românticos e galanteadores. Mas homens e mulheres se queixam do mau humor e da pouca cordialidade dos parisienses, campeões de frases cortantes.

O turismo é o primeiro setor econômico da França e gera quase um milhão de empregos. Em 2009, a França recebeu 80 milhões de turistas de um total mundial de 880 milhões e mantém a liderança de destinação principal entre todos os países. Isso significa 40 bilhões de euros de receitas ligadas ao turismo, terceiro lugar mundial, logo depois dos Estados Unidos e da Espanha.
***Fotos: Jardin du Luxembourg e Musée du Louvre com obra de Tunga. Fotos de Leneide Duarte-Plon

segunda-feira, 15 de março de 2010

Flor sem clitóris

Waris Dirie foi submetida à excisão aos 5 anos, no deserto da Somália, com uma lâmina de gilete, sem anestesia. Aos 13 anos, fugiu para a Inglaterra quando seu pai quis casá-la com um homem de 65 anos em troca de cinco camelos. Depois, tornou-se uma das top-models negras mais famosas do mundo.
A vida de Waris Dirie daria um romance. Por estar convencida disso, ela escreveu Fleur du désert e sua biografia vendeu 11 milhões de exemplares. O filme baseado no livro foi lançado esta semana em Paris onde Waris Dirie está hospedada num hotel cinco estrelas para fazer a promoção. A modelo desfilou nas capitais da moda, foi James Bond Girl, fez publicidade para Revlon, Chanel e Benetton e posou para o fotógrafo Richard Avedon, entre outras coisas. Em 1998, escreveu Fleur du désert e em 2002 criou a Waris Dirie Foundation para lutar contra a excisão também chamada de circuncisão feminina. Essa prática arcaica e bárbara, que ela chama de “ritual obscurantista”, é realizada ainda hoje em diversos países africanos.
O ritual consiste em cortar parte do clitóris e dos lábios vaginais da criança, muitas vezes recém-nascida, para torná-la no futuro insensível ao ato sexual. Muitas meninas morrem, como uma das irmãs da modelo, vítimas de infecção pela falta total de assepsia.
Segundo Waris Dirie, todo ano três milhões de meninas são submetidas à excisão e cerca de 150 milhões de mulheres vivem com essa marca no corpo. “Me roubaram algo que não poderei jamais recuperar”, diz a ex-modelo que escreveu o livro para falar dessa violência, um crime denunciado pela União Européia. Em 2006, ela participou de uma reunião de cúpula de ministros da UE sobre as mutilações genitais femininas.
Muitos países endureceram as leis para punir os africanos que as praticavam clandestinamente em países europeus como a França. “A mutilação das mulheres não é tradição cultural nem religiosa. É um crime que clama por Justiça”, diz Waris Dirie.
Este ano sua fundação lançou nova campanha com cartazes e spots publicitários mostrando uma jovem branca com a legenda: “Ela será perfeita depois que lhe cortarem o clitóris”.
Em 2005, Waris Dirie se tornou austríaca e em 2007 recebeu a Légion d'Honneur francesa por seu trabalho humanitário.
Quem quiser conhecer a fundação é só ir ao endereço www.waris-dirie-foundation.com

“A pobreza tem rosto de mulher”

Para que serve o dia internacional da mulher? A data foi criada há cem anos com o objetivo de homenagear metade da espécie humana. Confesso que esse dia internacional da mulher sempre me irritou.
Este ano, no dia 25 de fevereiro os deputados franceses votaram uma lei destinada a lutar contra a violência conjugal. Um dos artigos mais comentados foi o que instaura o uso da pulseira eletrônica pelo cônjuge considerado violento pela Justiça para que seja monitorado e se mantenha afastado do domicílio da mulher ou companheira agredida. Mas a maior inovação dessa lei foi a criação de um “delito de violência psicológica”. Como a violência psicológica não deixa marcas no corpo e é difícil de provar e avaliar, esse delito seria apenas mais um adereço legal, segundo alguns magistrados.
Na França, um décimo das mulheres que vivem maritalmente com um homem são vítimas de violências físicas, sexuais e psicológicas e a cada três dias uma mulher morre no país vítima de violência conjugal. Parece enorme para um país democrático e civilizado. O dia internacional da mulher muda algo nessas estatísticas horríveis? Quantas mulheres no Afeganistão devem ser vítimas de violências físicas, sexuais e psicológicas? E no Iraque? Numa entrevista publicada na semana passada no L’Humanité a deputada afegã Fawzia Koofi afirmava que um dos principais objetivos da intervenção da comunidade internacional no Afeganistão foi a defesa dos direitos do homem e da mulher com a promoção da democracia. Passados alguns anos, ela vê o presidente Karzai cada vez mais dependente dos integristas que defendem a burca, os casamentos forçados e se opõem à educação das mulheres e qualquer participação delas na vida ativa do país. Segundo ela, a violência contra as mulheres aumentou nas províncias. Apesar de uma participação simbólica de algumas mulheres no parlamento, Fawzia Koofi denuncia a impunidade dos que ferem os direitos humanos. “A Justiça é sacrificada sempre no altar da segurança”.
O Dia internacional da mulher é uma concessão dos que detêm o poder à outra metade da população do planeta, que representa 70% dos pobres do mundo, juntamente com as crianças. A ex-diretora da Organização Mundial da Saúde (OMS), Gro Brundtland, disse há alguns anos a frase que resume a condição feminina no mundo atual: “A pobreza tem rosto de mulher”. As mulheres e seus filhos menores são 75% dos refugiados do mundo, segundo a ONU.

O bonde de Huppert e a saia de Adjani


Isabelle Huppert é não somente a melhor atriz do cinema francês contemporâneo - título que ela divide com Isabelle Adjani recém-premiada com o César de melhor atriz por seu magnífico desempenho em La Journée de la jupe - mas prova mais uma vez no palco seu magnetismo e seu domínio técnico. Dessa vez ela pegou o bonde e parou no Théâtre de l’Odeon onde o diretor Krzysztof Warlikowski encena Un tramway, baseado na peça de Tennessee Williams Um bonde chamado desejo. Huppert é uma Blanche Dubois friamente histérica, num cenário genial de Malgorzata Szczesniak. O texto básico é o de Williams mas a ele se juntam trechos de Flaubert, Sófocles, Platão e Torquato Tasso. No final, a sensação de ter visto uma montagem que marcará época mas sobretudo o deleite de passar três horas em companhia de uma grande atriz.
Voltando à outra Isabelle, no filme La journée de la jupe, do cineasta Jean-Paul Lilienfeld, Adjani é uma professora de francês numa classe da banlieue parisiense tentando dar sua aula sobre Molière. Ao descobrir um revólver que cai de uma mochila, ela entra numa espiral de exasperação até tomar a classe como refém e, finalmente, conseguir a atenção necessária para tratar de Molière, revólver em punho. Forças especiais da polícia entram em ação e o filme se transforma num thriller surpreendente. A história poderia ter acontecido em qualquer liceu da banlieue parisiense, onde cenas de violência e incivilidade acontecem com certa frequência e professores trabalham à beira de um ataque de nervos, como se vê em reportagens na imprensa escrita e na televisão.
Entre as exigências da professora para libertar a classe está a instituição do “dia da saia”, um dia no ano em que as meninas possam se vestir de saia nas escolas sem serem tratadas de “putas”. Dai o nome de uma importante associação feminista nascida na banlieue : Ni putes ni soumises para mostrar que as mulheres têm outros papeis na sociedade que fogem aos estereótipos de prostitutas ou donas de casa obediente ao marido num casamento patriarcal. A ideia do "dia da saia" parece bizarra para quem não vive a realidade da banlieue, onde vestir saia para ir à escola (isto é, mostrar as pernas) é tido como um exibicionismo de moças de vida fácil, na opinião de rapazes de cultura muçulmana e mentalidade machista.
O filme é imperdível. Perto dele, Entre les murs, de Laurent Cantet, palma de ouro em Cannes em 2008 perde em todas as comparações, apesar de ser um bom filme.

Cora, Clarice e Gabriella

A atriz brasileira Gabriella Scheer, radicada em Paris, se apresentou esta semana no Printemps des poètes com um grupo de profissionais e amadores no espetáculo Les couleurs du corps em que ela e outros atores e atrizes diziam textos de Baudelaire, Du Bellay, Alfio Centin, Mohammad Djalali, Rimbaud, Ronsard, Pedro Vianna e Renée Vivien, entre outros poetas e escritores. Gabriella interpretou com talento admirável dois textos, de Clarice Lispector e Cora Coralina, traduzidos para o francês.
Um grande momento de emoção estética, puro deleite para quem saiu de casa numa noite gelada de inverno e foi se aquecer na primavera dos poetas no Espace Quartier Latin.

sexta-feira, 5 de março de 2010

BHL, a loucura de Kant e o botulismo


O poder midiático do filósofo Bernard-Henri Lévy (BHL para a imprensa) na França é inesgotável e se afirma a cada novo livro. Dessa vez, porém, ele não podia prever o desastre.
Em fevereiro, ele reafirmou seu talento para ocupar a mídia: lançando De la guerre en philosophie e Pièces d’identité (coletânea de artigos) todos os principais jornais, revistas, programas de rádio e televisão convidaram BHL para falar de seus livros. Se não fosse uma revelação desconcertante do Nouvel Observateur BHL estaria no melhor dos mundos.
Na página 122 do primeiro livro, ele trata da “loucura” de Kant se apoiando no livro de um filósofo kantiano, um certo Jean-Baptiste Botul, autor de La vie sexuelle d’Emmanuel Kant. Detalhe: Botul (cujo nome é propositalmente próximo da palavra “botulismo”, doença mortal provocada por uma toxina) é um personagem de ficção do jornalista do Canard Enchaîné, formado em filosofia, Frédéric Pagès. O conteúdo do livro, assim como o autor Botul, é uma criação da imaginação de Pagès e não uma biografia sexual de Kant. Nessa biografia imaginária de Kant, inventada em 1996 por Pagès, informa-se que Botul fez uma série de conferências, logo depois da segunda guerra mundial, aos neokantianos do Paraguai (!). A Associação dos Amigos de Botul, que organiza conferências e leituras ajudou a perpetuar a ficção.
As conferências aos neokantianos do Paraguai não despertaram nenhuma suspeita no pobre BHL, descrito por um jornalista parisiense como “um dândi riquíssimo que vive em hotéis de luxo e viaja em jatos particulares”. Os detratores de Lévy, que não são poucos, receberam o furo do Nouvel Observateur como um presente dos deuses. O filósofo mais adulado pela imprensa francesa, não o mais respeitado por seus pares, caiu numa cilada e incluiu em sua bibliografia um livro sobre Kant escrito por um filósofo que nunca existiu ! Ele ja citara o mesmo Jean-Baptiste Botul na conferência que deu origem ao livro, na École Normale Supérieure, onde Lévy foi aluno de Jacques Derrida e Louis Althusser.
A imprensa do mundo inteiro comentou a gafe monumental do filósofo. Desapontado, Lévy tentou minimizar o iceberg no qual seu Titanic naufragou. Depois, irritado, disse que essa história só foi engraçada no início.
Difícil acreditar. BHL se leva muito a sério para rir do seu ridículo.

Escravidão light
24 horas sem eles



Eles são os novos párias do mundo globalizado. A ilusória liberdade de ir e vir termina quando resolvem morar num país estrangeiro sem papeis, isto é na clandestinidade, e, cúmulo dos cúmulos, decidem trabalhar para comer e morar! Eles são milhões em todo o mundo e a França é um dos países europeus onde as leis repressivas se sucedem cada vez mais duras para facilitar a expulsão de estrangeiros (29 mil expulsos no ano passado) e reprimir qualquer ajuda a esses homens e mulheres “sem papeis” (sans papiers).
O estrangeiro sem papeis é o novo pária do mundo globalizado. No ano passado, para fugir ao controle da polícia que batia à sua porta, uma chinesa se jogou pela janela em Paris. O Estado francês economizou uma vaga no avião que levaria chineses de volta à China. O filme Welcome mostra como os cidadãos franceses que ajudam ou acolhem esses estrangeiros são passíveis de controle policial e estão sujeitos a sanções. As associações de ajuda aos estrangeiros apelidaram esse delito de “délit de solidarité”.
No dia 1° de março deste ano, dia de entrada em vigor na França da Lei Ceseda (Code de l’entrée et du séjour des étrangers et du droit d’asile) um coletivo de imigrantes resolveu parar por 24 horas : não trabalharam nem consumiram nada. Em Paris onde o movimento fez passeata com a imagem de um santo chamado “Saint Papier”, muitos cidadãos com papeis se solidarizaram: também não trabalharam nem compraram nada naquele dia.
Essa paralisação, que se estendeu a Roma, Nápoles, Bolonha e Lyon, tinha como objetivo mostrar o peso dos imigrantes na economia. Segundo dados do recenseamento de 2007, 2,4 milhões de imigrantes residentes na França trabalhavam ou se declaravam desempregados. Eles representam 8,6% da população ativa.

Milhares de trabalhadores sem papeis da França estão lutando há meses por meio de passeatas e greve (alguns estão em greve desde outubro) para terem direito ao título de permanência na França. Eles são assalariados, pagam impostos como qualquer trabalhador mas por serem ilegais são alvo de exploração de cerca de 2300 empresas. Por saberem da fragilidade dessas pessoas diante da lei, os empresários (donos de restaurantes, empresas de construção etc) oferecem salários mais baixos e se aproveitam da mão de obra barata que representam os sem papeis. Uma forma de escravidão light surgiu. Os sem papeis não podem denunciar a exploração dos patrões e em caso de desemprego não têm direito ao auxílio desemprego. E vivem dia e noite com o pavor da expulsão.
Alguns jovens afegãos recentemente foram expulsos de volta ao Afeganistão (o verbo expulsar é eufemisticamente transformado em reconduire à la frontière, ou seja, reconduzir à fronteira), apesar do protesto das associações humanitárias, que denunciam a ilegalidade da ação da polícia de Sarkozy. Deportar estrangeiros para um país em guerra é contrário às leis internacionais de direito de asilo.
Em janeiro, um documento assinado por intelectuais franceses foi enviado ao presidente Sarkozy pedindo o fim do Ministério da Identidade Nacional e da Imigração, criado em 2007. Ele chamava o ministério de “monstro administrativo que implantou a xenofobia de Estado e fez a França ultrapassar um limite simbólico na transformação de sua cultura política”.

Mães chimpanzés ou leite em pó?

As mulheres que acham que podem conciliar maternidade com aleitamento e vida profissional ativa não digeriram o último livro de Elisabeth Badinter, Le conflit: la femme et la mère. Numa das dezenas de entrevistas a jornais, revistas, rádio e televisão desde que o livro foi lançado, Elisabeth Badinter chegou a comparar o aleitamento materno a “uma redução da mulher ao estágio de uma espécie animal, como se fôssemos todas chimpanzés fêmeas”.
Há quem tenha se dado ao trabalho de buscar na biografia da filósofa feminista a causa de sua animosidade contra o leite materno e as fraldas de pano, que ela qualifica como “o retorno do naturalismo”, um retrocesso para as mulheres. Como ela é uma grande acionista da empresa de publicidade Publicis, da qual é presidente do conselho, há quem veja nas suas posições mais que a defesa da libertação das mulheres. Haveria um interesse em defender as fraldas descartáveis, o leite em pó e o alimento em pote para bebê.
Outras ressaltam que Badinter nunca se opôs à utilização da imagem da mulher nua ou com pouca roupa – a mulher objeto, em suma - para vender desde iogurtes a perfumes passando por lingerie e eletrodomésticos. A publicidade, lembram, nunca foi atacada por Badinter por usar o corpo da mulher de forma quase pornográfica. Et pour cause.
* Fotos de Leneide Duarte-Plon - Passeatas em Paris em 2010 e 2008

segunda-feira, 1 de março de 2010

Contra o assassinato legal



« A pena de morte é a negação absoluta dos direitos humanos. Trata-se de um assassinato cometido pelo Estado com premeditação e a sangue frio. Esse castigo cruel, inumano e degradante é imposto em nome da Justiça”. (Anistia Internacional).
O 4° Congresso Mundial contra a Pena de Morte se reuniu nos dias 24, 25 e 26 de fevereiro em Genebra e em sua declaração final afirma que a pena de morte “não pode em nenhum caso ser considerada uma resposta apropriada às violências e às tensões por que passam as sociedades contemporâneas, apesar da carga emocional que elas suscitam, inclusive no contexto do terrorismo”.
Durante os debates, que acompanhei pela televisão e pelos jornais, abolicionistas do mundo inteiro discutiram o assassinato de Estado, para tentar continuar avançando em direção à abolição universal. Cento e quarenta países não admitem mais a pena capital. Mas essa tendência é recente. Infelizmente um grande número de países como a China, os Estados Unidos e o Japão ainda executam homens e mulheres, muitas vezes inocentes do crime pelo qual são acusados. Qual o crime de Jesus Cristo, condenado à pena capital? Nos Estados Unidos, desde 1976, mais de 100 pessoas foram libertadas dos corredores da morte, depois de terem sido inocentadas. Outros acusados foram executados apesar de sérias dúvidas sobre sua real culpa.
Um americano que esteve no corredor da morte e foi inocentado esteve em Genebra para dar testemunho do que é viver com uma condenação à morte : é lutar contra a loucura a cada minuto num isolamento total.
A mulher de outro condenado, o americano Hank Skinner, de 45 anos, preso desde os 31 anos, acusado da morte de sua companheira e das duas filhas dela, também participou ativamente dos trabalhos. Skinner clama sua inocência e sua atual mulher, a francesa Sandrine Ageorges, com quem ele se casou na prisão, vive atualmente em função da luta pela libertação de seu marido, que pede sem sucesso a realização de testes de DNA para provar sua inocência. A Justiça americana se recusa a fazê-los e sua execução está marcada para 24 de março deste ano. Na semana passada, o canal franco-alemão ARTE deu uma entrevista exclusiva com Skinner, que falou de sua inocência e da absoluta necessidade dos testes DNA. Revoltante, quando se lê que o processo dele foi cheio de falhas e irregularidades.
Hoje, 103 países aboliram a pena de morte em qualquer circunstância, 38 aboliram em tempos de paz ou aboliram de fato na medida em que não executam há mais de dez anos.
Os campeões da pena de morte em 2008 foram: China (1718 assassinatos de Estado), Irã (346), Arábia Saudita (102), Estados Unidos (37), Paquistão (36), Iraque (34), Vietnã (19), Afeganistão (17), Coréia do Norte (15) e Japão (15).

Gaza – strophe

Gaza-strophe, le jour d’après (trocadilho com catastrophe) é o novo filme dos cineastas Samir Abdallah e Khéridine Mabrouk, recém-lançado em Paris. Uma catástrofe como diz o título. As testemunhas do ataque de Estado de Israel são inúmeras, mostram para a câmera um território devastado, contam suas vidas sem horizonte.
Obviamente, as imagens são de depois da guerra uma vez que Israel proibiu a entrada de qualquer jornalista em Gaza durante os bombardeios, de dezembro de 2008 a janeiro de 2009. O que se vê são casas, hospitais e escolas destruídos, muitos escombros, campos devastados. Resultado das bombas de fragmentação e de fósforo, proibidas pela ONU mas usadas abundantemente por Israel contra um povo acuado entre o mar e uma fronteira fechada a cadeado por Israel.
Como era de se esperar, houve pressões de grupos judaicos para que um canal de TV francês não transmitisse o documentário. A guerra de imagens é tão importante quando a verdadeira guerra, todo mundo sabe. Mas a União judaica francesa pela paz se colocou claramente do lado dos que defendiam a exibição do filme. “Fazer com que se ouça e veja o testemunho único que representa o filme Gaza-strophe é um ato de cidadania e de moral. O silêncio que alguns querem impor sobre Gaza é que seria condenável e fora da lei”, dizia um comunicado da Union Juive Française pour la Paix assinado por Michèle Sibony e André Rozevègue.
A historiadora Esther Benbassa, autora, entre outros livros, da Petite histoire du judaïsme (Paris, Librio, 2007) e Dictionnaire des mondes juifs (Paris, Larousse, 2008, com J.C. Attias) nasceu em Istambul, viveu alguns anos em Israel e hoje vive na França onde é professora e pesquisadora. No ano passado, ela lançou o livro Etre Juif après Gaza (Paris, CNRS Editions, 2009) para falar do mal-estar dos judeus depois da guerra de Israel contra Gaza. Ela resume seu dilema: “Não posso ser judia sem Israel nem com Israel tal como ele é hoje”.
O livro é de uma honestidade admirável. Um trecho que revela a intelectual engajada: “Depois de Gaza, um novo muro se constói na diáspora, o muro da impossível comunicação entre os judeus e os que os cercam, que não podem compreender a excessiva tolerância daqueles quando se trata de Israel. Quem quer viver atrás desse muro? Até quando? Israel tal como se mostra hoje, Israel que Gaza produziu ou revelou, esse Israel não poderá responder às aspirações dos judeus da diáspora, nem continuar a beneficiar da aprovação da opinião pública mundial. Israel pós-Gaza não é mais, com certeza, o que os judeus e os israelenses capazes de ignorar a propaganda oficial, esperam dele... É preciso que um dia ou outro pare o estranho e inconsciente cálculo pelo qual cada israelense morto vem inelutavelmente se somar aos seis milhões de vítimas do genocídio, diante do qual o número de mortos do outro campo, por mais importante que seja, parece sempre irrisório”.

Retour sur la Question Juive

No seu livro “Retour Sur la Question Juive” ("Retorno à Questão Judaica", ed. Albin Michel, 321 págs.), lançado recentemente em Paris, a historiadora da psicanálise Elisabeth Roudinesco volta a um tema polêmico já tratado por Marx e por Sartre. Ela rememora a história do antissemitismo na Europa, que teve seu ponto culminante na tentativa nazista de extermínio dos judeus.

A obra trata também do nascimento do sionismo, da criação de Israel, um Estado sui generis, que ela vê ameaçado pelos conflitos internos. “Defendo soluções para evitar um mundo que seria o pior pesadelo, o de judeus racistas e árabes antissemitas. E nesse pesadelo já estamos”, diz ela na entrevista concedida à Tropico