sexta-feira, 7 de março de 2008

Separação necessária

Leneide Duarte-Plon


Quando morre um grande homem, ficam sua vida e sua obra. Do psicanalista Emilio Rodrigué, 85 anos, o argentino mais baiano que já existiu, que adotou Salvador, viveu em Itapoã e depois em Ondina até o fim da vida, fica ainda, o título de sua autobiografia a nos lembrar que as separações são necessárias. E inevitáveis.

Ele deixou sua Argentina natal e se instalou no Brasil, quando parte dos psicanalistas argentinos tiveram de partir, nos anos de chumbo da ditadura militar.


Em 2000, sua biografia de Freud (Sigmund Freud – O século da psicanálise) foi saudada na França com grande entusiasmo por uma crítica ultra exigente e recebeu a melhor acolhida no meio psicanalítico, onde ele tinha verdadeiros amigos e admiradores. Paris o recebia freqüentemente para o lançamento de seus livros ou para visitas de trabalho ou de lazer. Seu Freud logo se tornou um clássico, colocando-se à altura das reconhecidas biografias de Ernest Jones et Peter Gay. Robert Maggiori, do jornal Libération, ressaltou o “rigor e o sopro romanesco” do Freud de Rodrigué. O Le Monde louvou a “magistral biografia de Freud” escrita pelo argentino.

Numa entrevista à revista Le Nouvel Observateur, Rodrigué confessava sua crença de que a psicanálise mudou a face do mundo. “O pensamento freudiano transformou o mundo muito além de toda expectativa, a tal ponto que podemos dizer que a neurose contemporânea é uma criação de Freud. Ele projetou sua própria neurose no mundo atual e é nisso que reside boa parte de seu gênio: sua neurose deu sentido à nossa. Em outras palavras: Freud modelou o homem do século XX. Mas ele o modelou até um certo tempo. E esse tempo está prestes a se acabar”.

Quando lançou em Paris sua autobiografia, em 2004, o delicioso “Séparations nécessaires”, o livro foi comentado e elogiado em grandes espaços pelos mais importantes jornais e revistas do país. Devorei o livro com enorme prazer e fiz para ele um clipping de todos os artigos que pude recolher e entreguei-os pessoalmente quando o visitamos em Salvador, logo depois da publicação da tradução francesa. Ele me agradeceu me presenteando com os três volumes da edição brasileira de seu Freud.

A dedicatória de “Séparations nécessaires” é a primeira marca do humor cáustico do autor. Emílio escreve: “Dedico esse livro a Emilio Rodrigué, psicanalista argentino criativo, corajoso e um pouquinho histérico”. O crítico do Figaro Littéraire, Claude Jannoud, ressaltou que a biografia mostra que Rodrigué, um “hedonista impenitente”, usa seu saber psicanalítico com uma naturalidade e desenvoltura admiráveis, “bem ao contrário dessa multidão de carolas que proliferam na profissão. Ainda que admire Lacan, nutre pouca simpatia pelos lacanianos”.

A inteligência e o fino senso de humor do autor estão presentes em cada página do livro, leitura obrigatória para quem quer conhecer este personagem extraordinário e ao mesmo tempo ter um panorama do mundo psicanalítico da segunda metade do século XX, pois o psicanalista começou sua análise na Argentina mas continuou-a na Inglaterra com Paula Heimann. Em Londres, trabalhou com Donald D. Winnicott, Masud Kahn e com Melanie Klein, que lhe enviou sua própria neta para ser analisada. Depois de um rápido retorno à Argentina ele vai para os Estados Unidos, onde trabalha com Erik Erikson e David Rapaport.

A biografia de Rodrigué não é, de forma alguma, obra de auto-promoção de um cabotino. O estilo é leve, a auto-zombaria e o espírito crítico e mordaz do escritor transformam o livro numa fascinante viagem guiada por um psicanalista irreverente, iconoclasta e criativo, muito mais que um mero repetidor das idéias e métodos de Freud e Lacan. Rodrigué constrói um texto ágil e sedutor com o brilho de um contador de histórias fora de série.

A leitura de “Séparations nécessaires” me proporcionou o verdadeiro prazer que só os grandes livros nos dão. Desde que conheci Emilio houve uma grande empatia e com o tempo a admiração por sua inteligência só fez aumentar.

O brilho de sua inteligência e sua verve estão, felizmente, acessíveis a todos através de seus livros. A morte, uma de suas grandes obsessões, não conseguirá nos roubar o prazer de lê-lo e relê-lo.

A seguir, divido com todos um pequeno texto que o psicanalista Michel Plon escreveu para uma revista do Colégio de Psicanálise da Bahia, que traduzi para a publicação em breve:

« Um velho jovem analista »

Uma ternura cheia de pudor, um tantinho de ceticismo, um rigor que sabia ser alegre, uma escuta tão perspicaz quanto audaciosa, minha tristeza à idéia de que não o reverei mais não pode ocultar o orgulho de ter recebido dele, de Emílio, mais de uma prova de amizade.
Em Paris, por ocasião da publicação de seu Freud, um telefonema caloroso para me agradecer o artigo publicado na “Quinzaine Littéraire”, um jantar de homenagem a ele no “La Coupole” depois do debate, o reencontro na sua praia, em Itapoã, depois, mais uma vez, a última, degustando um espaguete na sala do seu apart-hotel em Salvador, a leitura, emocionante, de “Séparations nécessaires”, uma troca de e-mail para a publicação em “Essaim” de um artigo totalmente impregnado de seu humor e depois um longo silêncio, o anúncio de sua morte em dezembro, rapidamente desmentida – obrigada Urania – um alívio feliz mas curto demais e depois o fim...
Uma pitada de argentino, outra de britânico, uma boa quantidade de baiano, Emilio Rodrigué era um coquetel que jamais nenhum barman do mundo poderá refazer. Ele era o maior psicanalista sulamericano do século passado e tinha essa elegância suprema que consistia, sabendo-o perfeitamente, em não se deixar iludir, em fazer de conta que não sabia.

2 comentários:

luci disse...

separaçaõ necessaria....que velhinho atrevido ...esse amamado emilio...como ousou nos deixar...que vingança...desta esfinge...mas... é que esse sabio velhinho é imortal....e eu como transitoria me irritei bastante com sua petulancia de ir tão cedo
...por que não esperou mais um pouco...é anjos / deuses são assim... continuam.... sutis e esternos ...luci

luci disse...

não nos conhecemos ...nos conhecemos ...ler seu texto foi extremamente prazeroso,a minha orfandade se dilui... a forma pertinente e elegante com que descreveu o mestre/sabio/aprendiz rodrigue me aquietou serenou a minha alma...