segunda-feira, 15 de março de 2010

Flor sem clitóris

Waris Dirie foi submetida à excisão aos 5 anos, no deserto da Somália, com uma lâmina de gilete, sem anestesia. Aos 13 anos, fugiu para a Inglaterra quando seu pai quis casá-la com um homem de 65 anos em troca de cinco camelos. Depois, tornou-se uma das top-models negras mais famosas do mundo.
A vida de Waris Dirie daria um romance. Por estar convencida disso, ela escreveu Fleur du désert e sua biografia vendeu 11 milhões de exemplares. O filme baseado no livro foi lançado esta semana em Paris onde Waris Dirie está hospedada num hotel cinco estrelas para fazer a promoção. A modelo desfilou nas capitais da moda, foi James Bond Girl, fez publicidade para Revlon, Chanel e Benetton e posou para o fotógrafo Richard Avedon, entre outras coisas. Em 1998, escreveu Fleur du désert e em 2002 criou a Waris Dirie Foundation para lutar contra a excisão também chamada de circuncisão feminina. Essa prática arcaica e bárbara, que ela chama de “ritual obscurantista”, é realizada ainda hoje em diversos países africanos.
O ritual consiste em cortar parte do clitóris e dos lábios vaginais da criança, muitas vezes recém-nascida, para torná-la no futuro insensível ao ato sexual. Muitas meninas morrem, como uma das irmãs da modelo, vítimas de infecção pela falta total de assepsia.
Segundo Waris Dirie, todo ano três milhões de meninas são submetidas à excisão e cerca de 150 milhões de mulheres vivem com essa marca no corpo. “Me roubaram algo que não poderei jamais recuperar”, diz a ex-modelo que escreveu o livro para falar dessa violência, um crime denunciado pela União Européia. Em 2006, ela participou de uma reunião de cúpula de ministros da UE sobre as mutilações genitais femininas.
Muitos países endureceram as leis para punir os africanos que as praticavam clandestinamente em países europeus como a França. “A mutilação das mulheres não é tradição cultural nem religiosa. É um crime que clama por Justiça”, diz Waris Dirie.
Este ano sua fundação lançou nova campanha com cartazes e spots publicitários mostrando uma jovem branca com a legenda: “Ela será perfeita depois que lhe cortarem o clitóris”.
Em 2005, Waris Dirie se tornou austríaca e em 2007 recebeu a Légion d'Honneur francesa por seu trabalho humanitário.
Quem quiser conhecer a fundação é só ir ao endereço www.waris-dirie-foundation.com

“A pobreza tem rosto de mulher”

Para que serve o dia internacional da mulher? A data foi criada há cem anos com o objetivo de homenagear metade da espécie humana. Confesso que esse dia internacional da mulher sempre me irritou.
Este ano, no dia 25 de fevereiro os deputados franceses votaram uma lei destinada a lutar contra a violência conjugal. Um dos artigos mais comentados foi o que instaura o uso da pulseira eletrônica pelo cônjuge considerado violento pela Justiça para que seja monitorado e se mantenha afastado do domicílio da mulher ou companheira agredida. Mas a maior inovação dessa lei foi a criação de um “delito de violência psicológica”. Como a violência psicológica não deixa marcas no corpo e é difícil de provar e avaliar, esse delito seria apenas mais um adereço legal, segundo alguns magistrados.
Na França, um décimo das mulheres que vivem maritalmente com um homem são vítimas de violências físicas, sexuais e psicológicas e a cada três dias uma mulher morre no país vítima de violência conjugal. Parece enorme para um país democrático e civilizado. O dia internacional da mulher muda algo nessas estatísticas horríveis? Quantas mulheres no Afeganistão devem ser vítimas de violências físicas, sexuais e psicológicas? E no Iraque? Numa entrevista publicada na semana passada no L’Humanité a deputada afegã Fawzia Koofi afirmava que um dos principais objetivos da intervenção da comunidade internacional no Afeganistão foi a defesa dos direitos do homem e da mulher com a promoção da democracia. Passados alguns anos, ela vê o presidente Karzai cada vez mais dependente dos integristas que defendem a burca, os casamentos forçados e se opõem à educação das mulheres e qualquer participação delas na vida ativa do país. Segundo ela, a violência contra as mulheres aumentou nas províncias. Apesar de uma participação simbólica de algumas mulheres no parlamento, Fawzia Koofi denuncia a impunidade dos que ferem os direitos humanos. “A Justiça é sacrificada sempre no altar da segurança”.
O Dia internacional da mulher é uma concessão dos que detêm o poder à outra metade da população do planeta, que representa 70% dos pobres do mundo, juntamente com as crianças. A ex-diretora da Organização Mundial da Saúde (OMS), Gro Brundtland, disse há alguns anos a frase que resume a condição feminina no mundo atual: “A pobreza tem rosto de mulher”. As mulheres e seus filhos menores são 75% dos refugiados do mundo, segundo a ONU.

O bonde de Huppert e a saia de Adjani


Isabelle Huppert é não somente a melhor atriz do cinema francês contemporâneo - título que ela divide com Isabelle Adjani recém-premiada com o César de melhor atriz por seu magnífico desempenho em La Journée de la jupe - mas prova mais uma vez no palco seu magnetismo e seu domínio técnico. Dessa vez ela pegou o bonde e parou no Théâtre de l’Odeon onde o diretor Krzysztof Warlikowski encena Un tramway, baseado na peça de Tennessee Williams Um bonde chamado desejo. Huppert é uma Blanche Dubois friamente histérica, num cenário genial de Malgorzata Szczesniak. O texto básico é o de Williams mas a ele se juntam trechos de Flaubert, Sófocles, Platão e Torquato Tasso. No final, a sensação de ter visto uma montagem que marcará época mas sobretudo o deleite de passar três horas em companhia de uma grande atriz.
Voltando à outra Isabelle, no filme La journée de la jupe, do cineasta Jean-Paul Lilienfeld, Adjani é uma professora de francês numa classe da banlieue parisiense tentando dar sua aula sobre Molière. Ao descobrir um revólver que cai de uma mochila, ela entra numa espiral de exasperação até tomar a classe como refém e, finalmente, conseguir a atenção necessária para tratar de Molière, revólver em punho. Forças especiais da polícia entram em ação e o filme se transforma num thriller surpreendente. A história poderia ter acontecido em qualquer liceu da banlieue parisiense, onde cenas de violência e incivilidade acontecem com certa frequência e professores trabalham à beira de um ataque de nervos, como se vê em reportagens na imprensa escrita e na televisão.
Entre as exigências da professora para libertar a classe está a instituição do “dia da saia”, um dia no ano em que as meninas possam se vestir de saia nas escolas sem serem tratadas de “putas”. Dai o nome de uma importante associação feminista nascida na banlieue : Ni putes ni soumises para mostrar que as mulheres têm outros papeis na sociedade que fogem aos estereótipos de prostitutas ou donas de casa obediente ao marido num casamento patriarcal. A ideia do "dia da saia" parece bizarra para quem não vive a realidade da banlieue, onde vestir saia para ir à escola (isto é, mostrar as pernas) é tido como um exibicionismo de moças de vida fácil, na opinião de rapazes de cultura muçulmana e mentalidade machista.
O filme é imperdível. Perto dele, Entre les murs, de Laurent Cantet, palma de ouro em Cannes em 2008 perde em todas as comparações, apesar de ser um bom filme.

Cora, Clarice e Gabriella

A atriz brasileira Gabriella Scheer, radicada em Paris, se apresentou esta semana no Printemps des poètes com um grupo de profissionais e amadores no espetáculo Les couleurs du corps em que ela e outros atores e atrizes diziam textos de Baudelaire, Du Bellay, Alfio Centin, Mohammad Djalali, Rimbaud, Ronsard, Pedro Vianna e Renée Vivien, entre outros poetas e escritores. Gabriella interpretou com talento admirável dois textos, de Clarice Lispector e Cora Coralina, traduzidos para o francês.
Um grande momento de emoção estética, puro deleite para quem saiu de casa numa noite gelada de inverno e foi se aquecer na primavera dos poetas no Espace Quartier Latin.

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