domingo, 2 de maio de 2010

“A terra tem uma pele e esta pele tem doenças ; uma dessas doenças se chama homem.” Nietzsche

Controle do corpo da mulher

No ponto mais baixo de sua popularidade, o presidente Sarkozy resolveu dar uma guinada à direita para tentar reconquistar o eleitorado que, nas últimas eleições, voltou aos braços do Front National, de Jean-Marie Le Pen. Sarkozy vai legislar contra o uso do niqab, o veu integral que só deixa os olhos de fora, usado na França por, no máximo, duas mil mulheres. Como se não houvesse a crise, o desemprego cada vez mais acentuado, salários estagnados, queda do poder aquisitivo em geral. Mas para o governo, os franceses só pensam nas duas mil mulheres que usam o veu integral.

A lei que o presidente deseja ver votada daqui a um mês proibirá o uso do niqab (e não burca como muitos dizem e escrevem, praticamente inexistente na França) em todo o espaço público. As mulheres de negro não vão mais poder circular em ônibus, metrô ou nas ruas, simplesmente. Um risco: a lei pode ser julgada inconstitucional por atingir uma liberdade fundamental, a de ir e vir.

Uma mulher toda coberta de preto não é coisa tão rara em algumas banlieues de Paris. Mas é raríssimo dentro da capital. Outro dia, vi uma delas coberta dos pés à cabeça, com apenas uma pequena abertura nos olhos. Confesso que me senti mal. Pelo que ela representa de submissão a séculos de regime patriarcal interiorizado. Ela me chamou a atenção no ônibus que me trouxe a Montparnasse. Tudo nela era negro, inclusive as luvas e as meias que cobriam o menor pedaço de pele. E o que seria a única parte do corpo visível, os olhos, ela escondeu atrás de óculos escuros, como sua capa que caía até os pés.

Essas mulheres parecem fantasmas ambulantes, é verdade. Mas não é um direito de um cidadão que mora numa democracia escolher sua religião e se vestir como bem entende? Em vez de lei para reprimir, pedagogia, pedagogia e mais pedagogia. Elas precisam saber que, desde sempre, a mulher apavora o imaginário masculino.

No livro “Por que elas são (in)fiéis” (Ediouro, 2006), escrevi na página 29:
“Na religião muçulmana, o véu pretende esconder o corpo feminino. A ameaça do feminino num mundo patriarcal como o islâmico é reprimida através de leis e costumes que transformam as mulheres em seres totalmente tutelados, que passam diretamente da proteção do pai à do marido.

Nas sociedades islâmicas, o uso do véu é uma forma de manter controle sobre o corpo da mulher, visto como permanente fonte de tentação. Em nome do livro sagrado do profeta, tiranos fanáticos escondem suas mulheres sob os mantos para se convencerem de que elas não existem como seres desejantes, como iguais.

No livro “Psychanalyse à l’épreuve de l’Islam”, o psicanalista Fethi Benslama diz que o “véu islâmico é uma coisa (em itálico no texto) pela qual o corpo feminino é ocultado em parte ou totalmente porque este corpo tem um poder de encanto e de fascinação. Em outras palavras, o que é ostentatório para a religião, é o corpo da mulher, enquanto o véu seria um filtro que resguarda e protege de seus efeitos perturbadores”.

Essa ocultação da mulher fica mais clara e mais fascinante como tema de estudo psicanalítico quando se descobre no erudito texto de Benslama que Hagar, a mãe de Ismael, filho de Abraão, não é mencionada uma única vez no Alcorão, apesar de ser a mãe do filho de Abraão que deu origem ao povo árabe. Segundo o texto bíblico, Sara, citada inúmeras vezes no Alcorão, entregou sua escrava Hagar a Abraão para que lhe gerasse descendência, por ser ela própria estéril. De Hagar e seu filho Ismael teriam se originado os árabes, também chamados de “sarracenos” que significia “escravos de Sara”. De Isaque, filho de Sara, nascido posteriormente por milagre, segundo a Bíblia, teria se originado o povo judeu”.

A realidade é que apesar dos discursos piedosos, todos os três monoteísmos _ o judaísmo, o cristianismo e o islamismo _ pregam e praticam a discriminação sexual. O etnólogo francês Marc Augé escreveu em um artigo publicado recentemente: “Esse é o ponto em que todos os monoteísmos estão de acordo. Mesmo que tenham se desenvolvido em meios diferentes e tenham evoluído de forma desigual, nenhum dos monoteísmos pode dar lições ao outro neste capítulo da discriminação sexual”.

Publicado na Folha de São Paulo
São Paulo, domingo, 25 de abril de 2010

Freud na berlinda
Livro do francês Michel Onfray contra o pai da psicanálise gera polêmica antes mesmo de chegar às livrarias
LENEIDE DUARTE-PLON
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, DE PARIS
Inventor do inconsciente, que via como "o pressuposto fundamental da psicanálise", Freud é, mais uma vez, o alvo de um ataque violento que tenta, ao mesmo tempo, dinamitar o homem e a obra.
Desta vez, a bomba foi lançada pelo filósofo francês Michel Onfray e se chama "Le Crépuscule d'une Idole - L'Affabulation Freudienne" (O Crepúsculo de um Ídolo - A Fabulação Freudiana, ed. Grasset, 624 págs., 22, R$ 52). No livro, lançado na quarta passada, Onfray se entrega com indisfarçável deleite ao ataque contra Freud e o freudismo. O autor, que se tornou um best-seller com livros de vulgarização da filosofia, traça o que ele chama de "psicobiografia nietzschiana de Freud".
Para isso, leu toda a obra de Freud mais a correspondência e pretende provar que "a psicanálise funciona como uma metafísica de substituição num mundo sem metafísica e oferece elementos para a construção de uma religião numa época do pós-religioso".
Segundo ele, as instituições da psicanálise foram construídas por seus "sacerdotes" num esquema próximo ao da religião cristã, e os hagiógrafos trataram de esconder o que poderia vir a macular o mito.
Antes do lançamento, o mundo intelectual francês já debatia o livro na imprensa. De um lado, freudianos e lacanianos escreveram artigos e deram entrevistas para defender a psicanálise dos ataques de Onfray. Do outro lado, entrincheiraram-se o autor e os que apreciam o livro, que mereceu destaque nos grandes jornais e revistas e em programas de televisão sobre literatura. Revistas semanais chegaram a dar reportagens de capa. Freud na capa é sempre sinônimo de boas tiragens, sobretudo quando há uma polêmica de peso.
Para a historiadora da psicanálise Elisabeth Roudinesco, "o livro é um odioso panfleto antifreudiano que favorece a proliferação dos boatos mais extravagantes". Ela acusa o autor de maniqueísmo, colocando os "bons" antifreudianos de um lado e, do outro, os "maus", adeptos de uma fabulação.
Michel Onfray não esconde que deve sua nova postura antifreudiana a "Le Livre Noir de la Psychanalyse" (O Livro Negro da Psicanálise), obra coletiva lançada na França em 2005, que em 40 artigos constituía um virulento ataque à psicanálise. Antes de "O Livro Negro...", Onfray lia e ensinava Freud a seus alunos.
A psicanálise sempre suscitou debates apaixonados. Chamada de "ciência judaica" pelos nazistas ou de "ciência burguesa" pelos stalinistas, a criação de Freud nunca gozou, em nenhum país, do conforto da unanimidade. Onfray se vê como um filósofo nietzschiano escandalizado com o que ele chama de "fabulação" da psicanálise, acusada por ele de se apoiar em uma série de "mitos ou lendas", que tenta desmontar.
Placebo
"A psicanálise é uma ramificação da psicologia literária, se origina na biografia de seu inventor e funciona maravilhosamente para compreendê-lo e somente a ele. A terapia analítica ilustra um ramo do pensamento mágico: ela trata e cura no estrito limite do efeito placebo", afirma Onfray.
"A psicanálise não cura e nem trata pela simples razão de que os pacientes que vão ver um analista não são doentes, mas têm o imaginário entulhado de culpas, de fantasmas, de representações. Ela permite a um sujeito que deseja, e se sente impedido, superar essas dificuldades por meio da identificação das resistências para poder, literalmente, se encontrar e se aceitar, desmontar as armadilhas que ele mesmo se coloca para evitar estar diante de seu desejo", explica o psicanalista Michel Plon, coautor, com Roudinesco, do "Dicionário de Psicanálise" [ed. Zahar].
A biografia do pai da psicanálise tampouco foi poupada pelo autor do "Tratado de Ateologia" e de uma "Contra-História da Filosofia" [ambos pela ed. WMF Martins Fontes]. Freud é apresentado como um filósofo que tenta se apresentar como um homem de ciência.
Segundo Onfray, o médico formado em Viena toma emprestado conceitos de Schopenhauer e Nietzsche sem honrar suas fontes; dissimula os fracassos terapêuticos da psicanálise; pretende ser um cientista e, ao mesmo tempo, se apresenta como "conquistador de um continente desconhecido", tomando seus desejos por realidade; é um burguês ávido de celebridade; persegue dinheiro e glória; mantém uma relação adúltera com a cunhada, que vivia em sua casa; é um falocrata, misógino e homofóbico.
"Não me interessa saber se Galileu foi homossexual, fetichista ou assaltante de estrada, desde que a Terra continue a girar em torno do Sol. Onfray se coloca na categoria dos fundamentalistas que nos EUA gostariam que Darwin tivesse sido queimado", reage o psicanalista Pierre Bruno.
Depois de destacar o que chama de erros factuais e responder com indignação a alguns dos ataques do livro, Roudinesco pergunta: "Se a psicanálise, como ele afirma, é uma ciência nazista e fascista, isso significa que ela é incompatível com a democracia. Por que, então, ela só se desenvolve nos países onde foi instaurado um Estado de Direito? Por que sempre foi banida pelos regimes totalitários ou teocráticos, mesmo quando seus clínicos colaboraram com tais regimes?".
Roudinesco enviou um convite a Michel Onfray para debater com ela em uma estação de rádio ou de televisão. O filósofo recusou-se ao duelo.
________________________________________

Publicado na Folha de São Paulo
São Paulo, sexta-feira, 30 de abril de 2010

Pintor, pai de Sarkozy expõe em Paris
Artista lançou livro em que se defende de críticas; quadros combinam surrealismo e tecnologia

LENEIDE DUARTE-PLON
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, EM PARIS

Um presidente francês tem, pela primeira vez, pai e mãe vivos. E, pela primeira vez, um deles é estrangeiro. Pál Sarkozy Nagy-Bócsai nasceu numa família aristocrática na Hungria e chegou a Paris em 1948. Foi apátrida até 1976.
Neste ano, o ex-publicitário expõe pela primeira vez na França, no Espace Cardin, até 9/5. São 50 telas de um estilo qualificado por um crítico entre "Dalí kitsch e pop art cafona". Os quadros têm tiragens de seis cópias e são vendidos por volta de 10 mil (R$ 23 mil), como o retrato que fez do filho.
Devido à repercussão em torno desse quadro, Pál preferiu não exibi-lo para "que possam se interessar pelos outros". Depois da eleição do filho, o pai contabilizou 214 livros sobre o rebento no qual seu retrato não era dos mais edificantes: pai negligente, ausente. Para retificar as "inverdades", Sarkozy, 82, lançou neste ano "Tant de Vie" (tanto da vida).
O filho não interferiu. Sarkozy pai conversou com a Folha em seu apartamento.

FOLHA - Que lugar a pintura ocupa em sua vida?
PÁL SARKOZY - Comecei a desenhar quando criança. Vim para a França como refugiado, em 1948, e comecei a trabalhar como pintor. Nas grandes agências de publicidade, fiz criação. Há cinco anos, comecei a fazer quadros a quatro mãos. O importante é encontrar uma ideia. Um quadro conta uma história, não é somente um retrato ou uma natureza morta. Decidida a história, faço esboços e Werner [Hornung] desenha com o computador.
FOLHA - Como o senhor definiria o estilo? Surrealista?
SARKOZY - Se fosse vivo, Dalí trabalharia com o computador. Combinamos os dois universos, o clássico e as novas tecnologias. O que conta é o resultado e não se o pincel é de pelo de vison ou não.
FOLHA - Que nota, de 0 a 10, o senhor daria ao presidente?
SARKOZY - Não trato de política. Tenho muita admiração por ele, pelo que tenta fazer pela França. Mas é obrigado a tomar medidas impopulares. Falamos de tudo, menos de política.
FOLHA - Nicolas Sarkozy tornou-se presidente da República com um pai húngaro e um avô grego. Como o senhor viu o polêmico debate sobre a identidade nacional?
SARKOZY - Pela primeira vez na história da França, um presidente é filho de estrangeiro. Cheguei à França em 1948, a imigração era totalmente diferente, havia o Plano Marshall, não faltava trabalho, recebi minha carteira de estrangeiro e alguns dias depois já estava trabalhando. Criticam muito meu filho, nunca por ser filho de estrangeiro. Não há muito trabalho aqui, os estrangeiros não podem ser recebidos para ficar desempregados.

Nenhum comentário: