segunda-feira, 28 de junho de 2010

Um americano em Paris


Por Leneide Duarte-Plon

Publicado originalmente na revista Trópico online

Depois de 30 anos sem pisar na França, o linguista Noam Chomsky retorna ao país para conferências e encontros políticos

O linguista americano Noam Chomsky, de 81 anos, não vinha a Paris há quase 30 anos. Ele e os franceses são uma história de desencontros e malentendidos. A passagem do linguista por Paris, no final de maio, provocou uma afluência digna de superstar às suas conferências e aos seus debates públicos. A internet, mais que a grande imprensa, se encarregou de divulgar o evento, esperado há muitos anos.

Chomsky incomoda os donos do poder. No dia 16 de maio, ele foi proibido pelo governo israelense de entrar na Cisjordânia, onde era convidado de uma universidade palestina. Chomsky comentou: “O governo israelense não gosta da forma como falo dele. Eu perguntei a eles: Vocês conhecem um país cujo governo goste da forma como falo dele?”.

Na terra de Voltaire, o intelectual respeitado no mundo inteiro é vítima de verdadeira “omertà”, a lei mafiosa do silêncio. Como o filósofo francês do Iluminismo, Chomsky defende a liberdade de expressão até para os adversários. E sobretudo para eles. E isso alguns intelectuais franceses não lhe perdoam.

“Stalin e Hitler defendiam a liberdade de expressão para os que pensavam como eles”, argumenta o lingüista, para justificar a defesa que fez da liberdade de expressão para Robert Faurisson, um pesquisador que nega o Holocausto judeu. Chomsky foi acusado de apoiar o autor negacionista e também foi taxado de antissemita por intelectuais _inclusive judeus, como ele.

“Poucos intelectuais foram, recentemente, difamados intelectual e moralmente da forma como ele continua a ser”, escreveu o filósofo Jacques Bouveresse, no prefácio de um livro de Chomsky, recém-lançado na França, “Raison & Liberté - Sur la Nature Humaine, l’Education et le Rôle des Intellectuels” (Razão e Liberdade – Sobre a Natureza Humana, a Educação e o Papel dos Intelectuais”, Ed. Agone).

Condenado ao ostracismo na França, Chomsky, que se tornou ao longo dos anos um crítico implacável da política externa americana, devolve o desprezo dos franceses com uma dose de indiferença em relação à cultura do país. Esnobou, inclusive, “Le Monde”, ao qual se recusou a dar uma entrevista.

Mesmo sem ter a entrevista, o jornal dedicou duas páginas e a capa do suplemento literário para debater a teoria do linguista e seus engajamentos políticos. E aproveitou para criticar seus erros de avaliação da cultura francesa, a “French theory”, que ele sempre desprezou. Segundo o jornal, para Chomsky, Derrida, Deleuze, Foucault ou Lacan não passam de produtores de um “bavardage” (tagarelice) sem interesse.

Hoje, o linguista é mais conhecido por suas críticas ao poder das finanças, do controle da mídia pelo grande capital e da política externa dos Estados Unidos. Por isso, ele se tornou uma espécie de consciência moral da esquerda do mundo inteiro, espécie de papa do “altermundialismo”.


No Collège de France

Chomsky veio a Paris por poucos dias (de 28 de maio a 2 de junho) para uma verdadeira maratona de encontros, que incluía conferências em torno de sua obra. Falou inclusive no Collège de France, no colóquio intitulado “Racionalidade, Verdade e Democracia: Bertrand Russell, George Orwell, Noam Chomsky”.

O auditório, de mais de 400 lugares, foi pequeno para acolher todos os que desejavam ouvir o professor americano. Um grande número de interessados foi barrado à porta. Os que entraram, ganharam almoço de graça, oferecido pela instituição, para garantirem seus lugares na parte da tarde e não se arriscarem a perdê-los ao sair para a refeição. Chomsky leu em inglês, sem tradutor, a conferência “Power-hunger tempered by self-deception” (A sede de poder temperada pela auto-decepção).

Situando-se na linhagem do filósofo Bertrand Russell, Chomsky pautou sua conferência nas ideias de "racionalidade, verdade e democracia", que davam título ao colóquio, comparando sua própria crítica ao capitalismo àquelas feitas por Orwell e por Russell.

Na área econômica, Chomsky criticou o fracasso total da “ortodoxia cega” e citou a crítica de Joseph Stiglitz à “religião do mercado”. Essa ortodoxia foi incapaz de prever que a bolha imobiliária iria explodir, causando uma crise financeira que passou muito perto da depressão. “Mas quando se segue uma religião, pouco importa os fatos”, ironizou Chomsky.

"Os mercados não-regulados não são eficazes e se caracterizam por um desemprego em massa permanente, ao contrário do que afirma a ortodoxia”, resumiu o filósofo, que criticou a experiência “quase religiosa” da racionalidade econômica.

Chomsky analisou, ainda, a desastrosa herança dos dois mandatos de Reagan, transformado pelos marketeiros num mito que deixou um legado inestimável para a história dos Estados Unidos. “Na realidade, Reagan legou ao mundo a proliferação nuclear, guerras imperiais e uma grande responsabilidade no desenvolvimento da ‘guerra santa’ dos extremistas islâmicos”, resumiu.

Concluiu sua crítica ao capitalismo com a apologia do socialismo democrático e da gestão das fábricas pelos trabalhadores, tal como defendia Bertrand Russell, citado na frase que encerrou a conferência: “Nossa breve passagem pela Terra é apenas um pesadelo que passará. A paz não virá enquanto as tendências atuais persistirem e não houver uma mudança radical”.


Com os jovens de Clichy

Em sua jornada parisiense, Chomsky também falou na Mutualité (que cobrou ingressos: 18 euros), no CNRS (Centre National de la Recherche Scientifique) e foi ao bairro Clichy-sous-Bois, onde ocorreu manifestações populares em 2005.

No encontro com jovens de Clichy, Chomsky declarou que estava lá para aprender e não para dar soluções. “O que vocês me dizem poderia ser ouvido de jovens dos bairros populares de Boston ou da Argentina. Na minha cidade, Boston, não há cobertura da imprensa dos bairros populares a não ser para falar de confrontos e de agressões. A mídia representa a elite”, disse.

Na Mutualité, Chomsky previu estagnação econômica para a maioria da população americana e um crescimento radical das desigualdades, “com consequências potencialmente explosivas”. “O poder político das instituições financeiras bloqueia qualquer regulamentação séria, e as crises financeiras regulares que conhecemos nos 30 últimos anos tendem a se tornar mais graves”, afirmou o professor do Massachusetts Institute of Technology (MIT).

“Os sistemas de poder contam com especialistas em gestão de doutrina, que se encarregam de demonstrar que o que fazem os fortes é nobre e justo e que os fracos sofrem por culpa deles mesmos. Trata-se de uma tendência que envergonha a história intelectual e tem origens na Antiguidade”, ensinou Chomsky a um público atento.

Ao analisar a campanha ocidental anti-Irã, foi contra a corrente: “O mundo se opõe majoritariamente ao duríssimo regime de sanções que os Estados Unidos querem ainda aumentar. A oposição não inclui apenas os dissidentes iranianos mas também as potências regionais, como a Turquia e a Liga Árabe. Essa oposição também inclui o Brasil, talvez o país mais respeitado do Hemisfério Sul, que, como signatário do Tratado de Não-Proliferação (TNP) apoiou claramente o direito de o Irã enriquecer seu urânio. É preciso um certo esforço para esquecer que três Estados nucleares se recusaram a assinar o TNP: o Paquistão, a Índia e Israel, todos eles aliados dos Estados Unidos, cujos programas nucleares se beneficiam da assistência americana”.

Ele interpretou a história recente da dominação americana, explicando como o golpe militar no Brasil, em 1964, representou a primeira etapa de uma reação do império americano a “esta grave heresia que constituía a teologia da libertação”.

Ele disse que a famosa School of the Americas (Escola das Américas) “treinou matadores da América Latina e chega a anunciar com orgulho em sua mensagem publicitária como a teologia da libertação foi vencida com a ajuda do exército americano e uma mãozinha do Vaticano, que usou de meios mais amenos: a expulsão e a autocensura”.

A passagem de Chomsky por Paris foi pretexto para a programação de algumas sessões do excelente documentário “Chomsky & Cia.”, de Daniel Mermet e Olivier Azam, seguidas de debate com o cineasta.

Na linhagem de um grande filósofo como Bertrand Russell, Chomsky explica o controle das mídias pelo poder de produzir o que ele chama “fábrica de consenso”: “Nas sociedades mais democráticas, o recurso à força deve ser substituído por uma propaganda eficaz na batalha eterna para controlar o cérebro dos homens e para fabricar o consenso graças a ilusões necessárias e por uma simplificação extrema, emocionalmente poderosa”.

O debate também revelou um novo engajamento de Chomsky: o ecológico. “Eu disse que a proliferação das armas nucleares é um dos dois desafios que põem literalmente em perigo a sobrevivência de nossa espécie. Essa questão não é levada em conta apesar da impressionante retórica empregada. O mesmo ocorre com a segunda ameaça: a destruição do meio ambiente”, afirmou o filósofo.


Publicado em 15/6/2010

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Leneide Duarte-Plon
É jornalista e vive em Paris.

Um comentário:

HV agência literária disse...

Len, que fôlego!!! Gostei da matéria, muito didática (para os que o apreciam e os que o odeiam, pois ele não admite meios termos, né? ao menos em política...) Aliás adorei, há umas semanas, a matéria da expo do Saint Laurent...