terça-feira, 2 de abril de 2013

Islamofobia



O Islã é compatível com a République ?*

Fotos de Leneide Duarte-Plon

 

Na França, essa pergunta é feita, em geral, para provar que não. Esse slogan do Front National, o partido de Jean-Marie Le Pen, (L’Islam n’est pas compatible avec la République) começa a ser endossado por intelectuais que, a pretexto de defenderem a laicidade, o princípio que separa a Igreja do Estado, cada dia mais se desinibem no ataque à religião muçulmana.

A guerra contra o véu islâmico, começada nos anos 90, continua. A caça às bruxas continua. As mulheres são proibidas de usá-lo em todo o espaço público (escolas, creches, hospitais, administrações públicas, polícia) depois de já serem proibidas de usá-lo nas fotos de identidade.
Recebi de um amigo do Brasil uma montagem audiovisual de fotos de monumentos parisienses acompanhadas de um texto « informativo ». Ele tem um único objetivo: difundir o medo estigmatizando a cultura e a religião muçulmanas.

Esses textos veiculam mentiras e meias verdades. Pura propaganda anti-Islã, que no jogo político atual tomou o lugar da URSS e do comunismo como o bicho-papão que precisa ser diabolizado pela “civilização cristã-ocidental”. O fundo musical não podia ser mais cafona: Mireille Mathieu canta « La Marseillaise ». Mireille Mathieu é um símbolo de cafonice na França.

Com o fim do comunismo, é preciso fabricar um inimigo para justificar as guerras, a fabricação e a venda de armas. Não sei a origem do texto, mas todas as informações se referem à França, como se o país estivesse à beira de uma invasão muçulmana. O título da peça é « Um perigo para o mundo livre ».

Há uma islamofobia na França, mesmo se o discurso racista é controlado por lei que pune "incitação ao ódio racial". Por isso, ele se exprime veladamente, nesse  clima de difusão do medo, incentivado pela extrema direita.

Os muçulmanos franceses são a segunda religião na França, mas não têm e nunca terão poder de modificar as leis e os costumes, como insinua o texto de propaganda. Eles se chocam à realidade francesa e, mal ou bem, tentam se integrar nessa cultura. Um exemplo é o véu, alvo de leis e proibições em todas as repartições públicas do país.

Tenho horror ao Islã fundamentalista no qual a mulher vale menos que zero, a mulher tem um lugar subalterno em relação ao homem. Mas o judaísmo, não somente o ortodoxo-fundamentalista, não fica atrás e ninguém ousa criticar.
Por quê? Primeiramente, por serem os judeus menos numerosos e terem experiência milenar de  integração e assimilação nas diferentes sociedades cristãs. Depois, porque os fundamentalistas, em geral, emigram para Israel, para poderem exercer a ortodoxia deles em paz. E, por último, porque ninguém quer ser acusado de antissemitismo, o pior crime numa França que carrega a culpa histórica pela deportação dos judeus e colaboração com os nazistas.
Procuro ver os filmes israelenses que passam em Paris e alguns mostram os ortodoxos no dia-a-dia. A concepção de mundo deles é tão abominável quanto a dos muculmanos ortodoxos: as mulheres têm um único direito, calar-se e viver à sombra dos machos, de um código religioso estreito. A misoginia da religião judaica não fica nada a dever à da religião muçulmana.

O título "Um perigo para o mundo livre" me faz lembrar os slogans anti-comunistas de outros tempos. Quem fabrica os perigos (antes era o "perigo vermelho") quer se mostrar como o caminho de combatê-los.

Na França, o racismo anti-Islã é o principal "fonds de commerce" do partido de extrema direita Front National. Ele tenta convencer os ingênuos de que França corre graves riscos e somente o FN conseguirá impedir a destruição da « identidade francesa ». O pior é que 33% dos franceses se dizem próximos das teses do FN.



François Hollande sofre com a crise

 

Desde o início de sua indicação, o papa Francisco demonstrou querer ser um homem normal.

Como outro Francisco, o Hollande, que antes do Papa ser eleito já tentava ser um « presidente normal » : viaja de trem, não mora no Palácio do Eliseu e tem a bonomia que me lembra Salvador Allende. Muitos se perguntam : um presidente pode pretender ser um homem « normal » ? Ele deve pensar que sim, pois continua a morar com a companheira, Valérie Trierweiler, no seu apartamento de pouco mais de 100 metros quadrados.

Mas apesar de toda simplicidade, sua política ainda não convenceu os franceses. Sua cota de popularidade só faz cair. Tem apenas 30% de aprovação, segundo as mais recentes pesquisas de opinião, desta semana. De junho do ano passado, quando dispunha de um capital de simpatia de 55%, até hoje Hollande perdeu 25%. Isso faz dele o mais mal-amado presidente da 5a República, entre todos os avaliados no 10° mês de mandato. Um desastre, explicado pelo desemprego de massa e pelas políticas ineficazes para impedir que continue crescendo.

Na quinta-feira à noite, Hollande foi entrevistado na televisão. Como um homem normal, quis apenas um entrevistador (sob Sarkozy, Mitterrand ou Giscard eles eram no mínimo dois jornalistas). O apresentador do jornal das 20h do canal público France2, David Pujadas, foi o entrevistador. Ele tentou extrair do presidente seus projetos e suas diretrizes para tirar o país da crise e os franceses do estado depressivo em que se encontram. Hollande não convenceu pois o buraco da crise é profundo e ninguém tem uma solução na Europa.

Hollande e os ministros comunicam pouco e mal ou são incompetentes, como pensa a direita, que sob pretexto de protestar contra a lei chamada « mariage pour tous » leva milhares de pessoas às ruas ? O « casamento gay » é o pretexto mas na realidade os que foram às ruas aproveitam para demonstrar sua oposição do governo socialista. Hollande continua querendo taxar em 75% os rendimentos de salário que ultrapassarem um milhão de euros anuais. Num primeiro momento, quem pagaria o imposto seriam os próprios beneficiários do salário. Com a declaração da inconstitucionalidade da medida, o governo decidiu outra coisa. Quem pagará será a empresa. Os empresários estão em estado de choque.

A crise vai bem, obrigada. O país terá um crescimento ZERO este ano e Hollande não tem grandes projetos que empolguem os franceses. Falta-lhe carisma e um grande projeto mobilizador como o Fome Zero foi para o início do governo Lula.

Depois da fala de Hollande, entre as críticas que os políticos de direita twittaram, uma ganhou o prêmio hors concours de baixaria, por misturar política com a vida privada do presidente. Uma ex-deputada e ex-ministra de Sarkozy, Nadine Morano, escreveu : « Hollande é pelo « casamento para todos » (mariage pour tous) mas não para ele. Não se casou com a mãe de seus filhos e agora vive em concubinato ».

 

Casaldáliga e o papa Francisco 


Quando o papa Francisco pediu ao povo que o abençoasse, não inventou nada.
Dom Pedro Casaldáliga fez o mesmo muito antes dele. Era a tradição na Igreja primitiva, como ensina o “Diário de Fernando”, de Frei Betto. O magnífico diário do dominicano Frei Fernando de Brito, saiu da prisão clandestinamente, de 1969 a 1973, e foi editado em 2009.
Na página 155, frei Fernando escreve : « O catalão Pedro Casaldáliga sagrado bispo de São Félix do Araguaia (MT) dia 30 de outubro (de 1971). Exigiu aprovação de padres, religiosas e leigos, como na Igreja primitiva, quando os bispos eram eleitos pelos fiéis ».
Dessa forma, o papa Francisco fez apenas um retorno às fontes.
Dom Pedro se mostrou fiel à tradição de humildade e participação dos leigos 42 anos antes.
Vaticano é lugar para franciscanos ?

Li num artigo de Martin Granovsky, do jornal argentino Página 12, que Frei Betto, apresentado como « um dos fundadores das Comunidades Eclesiais de Base », contou que entre os devotos de Cristo e São Francisco de Assis, « esteve sempre Luiz Inácio Lula da Silva »

 Leonardo Boff, o teólogo condenado ao silêncio pela Congregação para a Doutrina da Fé (a antiga Inquisição), costuma se definir como “católico, apostólico e franciscano”, porque “romano” refere-se, segundo ele, a um lugar e não tem relação alguma com o espírito do cristianismo. Segundo Boff, Bento XVI condenou mais de cem teólogos e teólogas por não se enquadrarem em sua leitura teológica da Igreja e do mundo.

Essa Igreja hierarquizada e prisioneira da pompa e da riqueza do Vaticano sempre horrorizou muita gente.

O dominicano Paul Blanquart, um maravilhoso frade francês revolucionário e iconoclasta, nos disse em entrevista dada para a biografia de Frei Tito :

« Jurei a mim mesmo nunca pôr os pés em três lugares : no Vaticano, em Jerusalém e nos Estados Unidos”.

Para um frade, impossível ser mais radical na sua fé evangélica.

 

Hessel, um justo




Em fevereiro o mundo ficou mais pobre. Stéphane Hessel morreu aos 95 anos em Paris. Tive o prazer de entrevistá-lo duas vezes, uma delas para a Ilustríssima da Folha de São Paulo, depois do lançamento de seu livro Indignez-vous, best-seller planetário que originou os movimentos dos indignados no mundo inteiro e o Occupy Wall Street. Abaixo um trecho da entrevista de 2011.
« 93 anos. É a derradeira etapa. O fim não está longe ».
As primeiras frases do livro Indignez-vous  (Indigène éditions), do embaixador Stéphane Hessel, de 93 anos, poderiam parecer a constatação nostálgica de uma longa vida que chega a termo.  Nada disso. É um livro de combate que convida à indignação, à rebeldia, à resistência. 
Ao ministro do interior que pretendia mandar prender Sartre por sua postura subversiva ao lado estudantes que protestavam em Paris em maio de 1968, o general De Gaulle respondeu : « Não se prende Voltaire ». Sartre era na época a consciência ética da França como Voltaire fora no século XVIII. Hoje, essa consciência ética se chama Stéphane Hessel.
(…)
Ativista incansável, sempre entre duas viagens que o levam a reuniões e viagens militantes pela França e pelo mundo, Hessel vive com simplicidade num apartamento confortável, num bairro de classe média de Paris, e não hesita em estar na linha de frente de todos os combates em que vê violação dos direitos humanos. Ele próprio marca as entrevistas e atende o telefone de sua casa, que não para de tocar. E quando se prepara para fotos não esquece de vestir o paletó e ajeitar a gravata antes de posar. Reflexo de  diplomata.
(...)
Filho do romancista Franz Hessel, o embaixador é judeu por parte de pai. Sua mãe Helen Grund, de origem protestante, deixa Berlim em 1924 com o filho para encontrar o escritor Henri-Pierre Roché, em Paris. Os dois homens amam a mesma mulher. Roché escreve a história dos três e o romance autobiográfico Jules e Jim se tornou um sucesso. François Truffaut fez o filme baseado no livro”.
Homens como Hessel deixam uma grande lacuna.

Grécia, o abismo

O desemprego de jornalistas na Grécia é de 30% dentro de uma economia com um desemprego  global de 26%. Li num artigo do New York Times um perfil de um casal de jornalistas desempregados recentemente. Edificante e aterrorizante.
O artigo de Kostas Tsapogas diz que a Igreja Ortodoxa gerencia em Atenas 191 sopas populares, com filas intermináveis.
Para quem perdeu seu emprego, as perspectivas de encontrar trabalho são nulas. Os jovens emigram para outros países europeus como a Alemanha e a Escócia. O país não vê perspectivas de uma saída do longo túnel em que está mergulhado.  O casal de jornalistas conta que depois de vender a pequena casa de campo para continuar a sobreviver, conseguiu manter o apartamento em que vivem. Uma decisão judiciária impede que a casa seja retomada até 2015.
Depois, só Zeus sabe.


Pavões


            O maior pavão brasileiro é candidato a uma vaga na Academia Brasileira de Letras. O estatuto da instituição, que pretende tornar imortais seus membros, estabelece que para alguém candidatar-se a uma vaga é preciso « ser brasileiro nato e ter publicado, em qualquer gênero da literatura, obras de reconhecido mérito ou, fora desses gêneros, livros de valor literário ».
Tudo bem. Ele tem publicações suficientes para corresponder às exigências. E deve ser eleito pois naquele ninho o que não faltam são tucanos para receber o pavão de braços abertos.
FHC tem uma obra, ao contrário de outros pavões que lá estão ou estiveram. Esses não têm obra nem senso crítico. Como o « jornalista » Roberto Marinho, que tinha como « obra » o conjunto de discursos, a maioria escritos por Otto Lara Resende, a quem Marinho sucedeu na vaga aberta em 1992, com a morte de Otto.
Daí a boutade de um crítico : « Otto Lara Resende é o único acadêmico eleito duas vezes para a ABL ».
O escritor Graça Aranha disse na conferência incendiária « O espírito moderno », em 1924, na qual rompia com a Academia Brasileira de Letras : o grande erro da instituição era ter copiado em excesso sua inspiradora francesa. Iconoclasta, Graça Aranha acrescentou, entre outras coisas inaceitáveis para os imortais de sua época : « Somos excessivamente quarenta imortais, consagração exagerada para tão pequena literatura ».

Encontro no Jardin du Luxembourg


Maurice Nadeau terá 102 anos dia 21 de maio. Até aí nada demais. Muita gente completa essa idade hoje em dia. Mas um pequeno detalhe que faz de Nadeau um fenômeno : ele ainda dirige o jornal « Quinzaine Littéraire », que fundou em 1966. E dirige as Editions Maurice Nadeau, na qual ainda lê todos os originais à procura de jovens autores.
Um dos maiores e mais respeitados críticos literários franceses, (e, sem dúvida, o mais velho de todos !) Nadeau mora perto do Panthéon, no Quartier Latin. É sempre um prazer vê-lo caminhar no Jardin du Luxembourg, onde o encontramos há poucos dias num belo domingo de sol.  Entrevistei-o duas vezes, para a Folha de São Paulo e para a revista Trópico. Meu marido é um dos fiéis colaboradores  da Quinzaine Littéraire, onde resenha livros de psicanálise.
Sem anunciantes e sem mecenas, a Quinzaine é feita por colaboradores de reconhecida competência em suas áreas, que trabalham sem remuneração. O jornal, que vive unicamente das vendas e de uma pequena subvenção do Estado francês, repousa sobre a reputação de Nadeau, um mito da edição e da crítica francesa.
Nadeau trabalhou como crítico literário no jornal Combat, em que Albert Camus era editorialista. Fundou revistas e dirigiu coleções em diversas editoras. Foi Nadeau quem lançou o primeiro livro de Michel Houellebecq, quando nenhuma editora se interessava pelo autor. Foi ele quem editou o primeiro livro de Roland Barthes e quem lançou na França Samuel Beckett, Malcolm Lowry e Henry Miller. E tirou Sade da seção “Inferno” da Biblioteca Nacional da França, ao publicar uma antologia dos textos do marquês.  Sua « Histoire du Surréalisme » é uma referência no assunto, seu livro “Gustave Flaubert un écrivain” recebeu o Prêmio da Crítica Literária em 1969 e suas memórias “Grâces leur soient rendues” tratam de mais de meio século da vida literária francesa.
Nadeau enterrou todos os seus autores.
Vida longa ao velho trotskista centenário.

 

Ideias*
*Publicado na Carta Capital de 13 de março de 2013
O martírio de Frei Tito
MEMÓRIA | A autora deste texto explica por que está escrevendo um livro sobre a história do frade torturado
POR LENEIDE DUARTE-PLON, DE PARIS 

Escrever a biografia de Frei Tito de Alencar Lima é um desafio. Por se tratar de um personagem complexo,atormentado,paradoxal. Por se tratar de um religioso envolvido com um grupo revolucionário de luta armada contra a ditadura. Pela morte trágica que o destino lhe reservou. Pelaimportância quesua  morte adquiriu transformando-o em ícone e “mártir” da resistência à ditadura. Pelo momento político que viveu. 
Foi como um desafio que aceitei a sugestão de um amigo editor quando lhe disse que havia conhecido num colóquio em Paris, no Centro Primo Levi, opsiquiatra-psicanalista que tratou de Tito até sua morte. Ia entrevistá-lo para CartaCapital.
O dr. Jean-Claude Rolland falara no colóquio Langage et Violence: Les effets des  discours sur la subjectivité d’une époque (Linguagem e Violência: Os efeitos dos discursos na subjetividade de uma época). Sua conferência tinha por título Soigner, Témoigner(Tratar,Testemunhar) e era um relato do caso Tito de Alencar.  “Tito vivia na certeza de que iria ser morto de um momento o outro. Essa impressão deve ter sido o que ele viveu durante todo o tempo em que ficou preso e, principalmente, durante as sessões detortura. Interiormente, ele vivia como um condenado à morte e o recurso ao suicídio tem como princípio a lógica: matar-se em vez de ser morto”, diz o psicanalista.
Antes e depois do dr. Rolland, outros psicanalistas, juristas e filósofos fizeram conferências. O filme Batismo de Sangue, baseado no livro de Frei Betto, foi projetado e seu realizador, Helvécio Ratton, debateu com o público.
“Em vez de entrevista, por que você não faz a biografia de Frei Tito, com ênfase nos últimos anos da vida dele?”
Consciente do volume de trabalho que o livro representaria, convidei a jornalista Clarisse Meireles para escrevermos juntas, e há mais de um ano estamos trabalhando na biografia.
O livro tinha de ser uma investigação jornalística, uma reportagem histórica, uma página que se abre a cada evento em torno da vida de Tito. Tivemos de contextualizar todos os principais fatos históricos nos quais ele se viu envolvido, direta ou indiretamente.
A história de Tito abre um leque de acontecimentos que precisamos reconstituir: o movimento estudantil de 1968, as grandes passeatas e a importância do congresso da UNE em Ibiúna (SP). Deste, Tito foi um protagonista paradoxal: sua atuação foi nos bastidores. Foi ele quem conseguiu o sítio destinado a sediar o congresso através de relações de amizade. Pagou na tortura esse envolvimento.
Paralelamente ao endurecimento do regime com o AI-5, a resistência organizou a luta armada, os sequestros, inclusive do embaixador Elbrick. O governo respondeu com a tortura como como instrumento da política de Estado, com prisões ilegais e desaparecimentos. Era preciso abrir uma janela sobre o sequestro do embaixador americano (captura, como prefere o historiador e ex-guerrilheiro Daniel Aarão Reis), que levou à queda dos frades e à execução de Carlos Marighella.
Por outro lado, o engajamento dos frades na ALN só existiu porque houve o Concílio Vaticano II e o aggiornamento promovido por João XXIII, seguido da renovação de parte da Igreja brasileira. Ninguém podia dizer que essa Igreja progressista distribuía “ópio ao povo”. “Para quem pretende mudar as estruturas da sociedade, Marx é indispensável”, disse Frei Tito, já no exílio, em 1972, respondendo a um jornalista italiano que perguntava se ele era marxista.
Contar a vida de Tito impunha reconstituir um pouco da vida dos exilados brasileiros em Santiago e Paris. Na capital francesa, a Frente Brasileira de Informação (FBI), fundada por Miguel Arraes e Márcio Moreira Alves, divulgava na Europa as prisões ilegais, tortura e desaparecimentos promovidos pelos agentes da ditadura. E muitos dos ex-exilados entrevistados confirmaram, com fatos vividos, a estreita colaboração entre os órgãos de informação brasileiros e a polícia francesa.
Para reconstituir a vida de Tito no exílio, fomos primeiramente ao encontro do psiquiatra e psicanalista que tratou dele até sua morte. O doutor Rolland tem 74 anos e vive, cercado de animais de estimação, a 30 minutos de Lyon. De sua casa estendem-se a perder de vista os vinhedos do Beaujolais. A casa fica dentro de uma grande propriedade onde o médico cria 13 pavões, uma arara do Brasil e pássaros do Gabão grandes e coloridos. Num viveiro, cerca de 20 aves exóticas, de diversas origens, voam  misturam seus cantos aos sons dos pavões. Quando tratou de Tito, o médico já habitava essa casa, onde sempre viveu cercado de animais, um contato com a natureza vital para seu bem-estar.
Com o doutor Rolland, tomamos a estrada que leva ao convento de L’Arbresle. Ali entrevistaríamos todos os remanescentes dominicanos que o conheceram. Depois, fomos ao convento Saint-Jacques, em Paris, onde ouvimos seus antigos mestres e diretores de estudos teológicos. E pudemos estar com aquele que foi seu mais próximo amigo durante o último ano de vida, o dominicano Xavier Plassat, residente no Brasil desde os anos 80. Em 1974, Tito acompanhou Plassat em viagem à Bretanha e Plassat acompanhou Tito a praticamente todas as consultas com o psiquiatra, em Lyon.  Depois da morte de Tito, o francês organizou um precioso arquivo dos textos do brasileiro e escreveu Alors les Pierres Crieront (Então as Pedras Clamarão, Paris, Editions Cana, 1980).
No Brasil, ouvimos praticamente todos os dominicanos que conviveram com Tito, em entrevistas feitas pessoalmente, por telefone ou e-mail. Além dos que foram presos, entrevistamos o ex-frade Magno Vilela, que conseguiu escapar ao cerco do delegado Sérgio Paranhos Fleury, sinistra figura da repressão, fundador do esquadrão da morte, mestre em tortura e executor de Marighella e Joaquim Câmara Ferreira. Tito reencontrou Magno em Paris no Convento Saint-Jacques, assim como frei Oswaldo Rezende, responsável pela aproximação dos dominicanos com Marighella, que fora estudar na Suíça, antes dos acontecimentos de novembro de 1969. A exceção foi um dos frades, que não fala mais sobre sua militância. Nas entrevistas e na pesquisa, descobrimos um homemque viveu os últimos anos profundamentesóeatormentado, mesmo tendo encontrado a compreensão de confrades acolhedores, primeiramente no Convento Saint-Jacques, em Paris, e depois no Convento Sainte-Marie de la Tourette, em L’Arbresle, perto de Lyon, um prédio moderno projetado por Le Corbusier.
Descobrimos também a tentativa de familiares de construir um martirológio para, quem sabe, preparar uma beatificação. A pesquisa nos fez descobrir uma veneração popular a cercar FreiTito, sobretudo no Ceará. E o trabalho nos revelou alguns fatos da vida do dominicano que acentuam sua humanidade, como seu afastamento do convento por um ano, em Paris, ou seu entusiasmo amoroso por uma moça de origem japonesa, funcionária da biblioteca do convento, de São Paulo.
A prisão e o exílio
Em 4 de novembro de 1969, Frei Tito de Alencar Lima, aos 24anos, foi preso no Convento das Perdizes, em São Paulo. Por um ano e dois meses permaneceria cativo, juntamente com outros dominicanos: Ivo Lesbaupin,  Fernando Brito, Carlos Alberto Libânio Christo (Frei Betto), João Antônio Caldas Valença  e Giorgio Callegari. Esses dois últimos foram os primeiros a ser libertados. Torturado sob a acusação de pertencer à Ação Libertadora Nacional (ALN), organização de luta armada fundada por Carlos Marighella, Tito foi destruído psiquicamente por seus carrascos.
As prisões aconteceram no quadro da chamada “Operação Batina Branca”, montada pelo delegado Fleury. O delegado era o “puro produto da polícia paulista com sua tradição de torturas e assassinatos”, segundo o jornalista Elio Gaspari, que escreveu: “Nunca na história brasileira um delinquent adquiriu sua proeminência”. O delegado Fleury encarnava na época o combate aos grupos armados que resistiam à ditadura, os “terroristas”, como a imprensa e o aparelho repressor os qualificavam.
Depois da prisão dos frades, Fleury começou imediatamente a bombardear a imprensa com a versão da traição dos dominicanos. Os frades da ALN eram ora “terroristas”, ora encarnavam Judas. Todos os jornais aderiram à versão de que os dominicanos haviam traído Marighella. As manchetes associavam as palavras “frades” e “terror”. O Globo deu na primeira página a fotografia do convento dos dominicanos com a manchete: “Aqui é o reduto dos terroristas do Brasil”. E fez um editorial, “O beijo de Judas”, que não honra a história da nossa imprensa.
Começava a campanha de desmoralização dos dominicanos, responsabilizando-os pela queda do “inimigo público número 1”. O regime tentava dividir a esquerda, ao apresentar os frades como “traidores”. Comentando como a imprensa aderiu à demonização dos frades, o ex-frade Roberto Romano observou: “Eles não agiram como jornalistas. Agiram como carrascos e torturadores”.
O sequestro dos frades Ivo e Fernando pela polícia no Rio foi decisivo para a queda de Marighella, fuzilado na Alameda Casa Branca em 4 de novembro, dia em que Frei Tito foi preso e torturado pelo delegado Fleury. Três meses depois, ao voltar à tortura, dessa vez na Operação Bandeirantes, Tito tentou o suicídio, sendo salvo in extremis  depois de hospitalizado. “Ele fez isso para evitar que nós todos voltássemos à tortura”, diz o frei Fernando.
O relato das torturas a que foi submetido pelo capitão Albernaz saiu clandestinamente da prisão de São Paulo e foi publicado na revista americana Look e na italiana L’Europeo. A Look recebeu pela reportagem do ano em 1970 o prêmio do New York Overseas Press Club, associação da imprensa estrangeira de Nova York. O jornal Le Monde e a imprensa europeia noticiaram com destaque a prisão, a tortura e o processo dos dominicanos. O papa PauloVI foi informado desde o início da prisão dos frades e seguiu de perto o processo. Os dominicanos presos enviaram ao papa de presente uma cruz de madeira feita por eles, com o nome de todos os frades presos.
Meses depois, Tito foi posto na lista dos presos do segundo embaixador sequestrado, Giovanni Bucher, da Suíça, em janeiro de 1971. Banido do território nacional por decreto, embarcou para Santiago juntamente com 69 presos políticos. Encerrava-se ali o ciclo de capturas de diplomatas. A repressão violenta desarticulou a luta armada prendendo e matando os principais líderes e militantes. Em setembro de 1971, Carlos Lamarca foi fuzilado. A ditadura já exterminara Marighella, em 1969, e Câmara Ferreira, o Toledo, em 1970. Os revolucionários que conseguiram escapar da prisão ou foram trocados por embaixadores viviam no exílio. Os que tentaram uma volta na clandestinidade foram executados.
Tito optou pelo trabalho de informação : passou a dar testemunho do que acontecia nos cárceres brasileiros, por meio de entrevistas em várias capitais. Em Santiago, deu entrevista aos cineastas americanos Haskell Wexler e Saul Landau, que produziram o documentário Brazil: A report on torture (Brasil: Um relato sobre tortura), com depoimentos de alguns dos libertados em troca do embaixador suíço. De passagem por Roma, Tito não pôde falar a religiosos no Colégio Pio Brasileiro, impedido pela hierarquia, que alegava sua fama de “terrorista”.
Prosseguiu, porém, com suas entrevistas à imprensa em Roma, na Alemanha e na França.
No Convento Sainte-Marie de La Tourette, perto de Lyon, para onde se mudou em 1973, o dominicano esperava encontrar um porto seguro e retomar os estudos de teologia. No meio da natureza, no alto de uma colina, Tito encontrou o silêncio, mas não a tranquilidade. Em 10 de setembro de 1974, o corpo do frade foi visto por um camponês, pendendo de uma árvore, numa area inóspita, às margens do Rio Saöne, perto de Villefranche-sur-Saöne. Tito tinha 28 anos. Foi enterrado no cemitério do convent. Seu corpo voltou ao Brasil em 1983. Hoje, repousa em Fortaleza.
Ele preferiu a morte a conviver com a tortura e com seus torturadores que o atormentavam onde quer que fosse. O filósofo Jean Améry, amigo de Primo Levi, dizia que quem  foi  submetido à tortura “fica incapaz de sentir-se em casa neste mundo. O ultraje do aniquilamento é indelével. A confiança no mundo que a tortura apaga é irrecuperável”.
Segundo a Anistia Internacional, apesar de 147 países terem ratificado a Convenção contra aTortura, adotada pela ONU em 1984, a organização detectou casos específicos de tortura em 98, do total de 198 países existentes no planeta. •




             Imprensa em Questão
‘LIBÉRATION’
40 anos de informação e rebeldia
Por Leneide Duarte-Plon em 19/02/2013 na edição 734

Na terça-feira, 12 de fevereiro, os jornais do mundo inteiro deram manchetes sobre a demissão, renúncia ou abdicação do Papa Bento XVI. O jornal Libération usou toda a primeira página de formato tabloide com uma única foto: o papa visto de costas, caminhando, mas de quem se percebe apenas uma batina branca a partir do joelho e os sapatos vermelhos. O título, “Papus interruptus”, remete à expressão “coito interrompido” (coitus interruptus), sempre usada em latim.
O editorial da página 2, assinado pelo PDG do jornal e diretor da redação Nicolas Demorand, foi publicado em latim, a língua em que o papa se expressou para anunciar sua próxima saída do trono de São Pedro. O texto de Demorand fora traduzido do francês por membros da Associação Latim nas Literaturas Européias. Na página 11, para os leitores que não são latinistas eméritos, a íntegra do editorial em francês.
Por 1,60 euro um leitor exigente pode ter todo dia irreverência, informação, análise e uma visão crítica dos acontecimentos do planeta, com ênfase no que se passa num certo país europeu chamado França. Sim, porque o jornal Libération é aberto ao mundo mas é profundamente francês e reflete os valores de uma certa esquerda francesa iconoclasta, socialista e libertária.
À sombra de Sartre
Libération festeja 40 anos em fevereiro, mas continua a mesma publicação rebelde e irreverente que era naquele fevereiro de 1973, quando Jean-Paul Sartre se associou a jovens maoístas para criar um jornal de esquerda. Um deles, Serge July, dirigiu o jornal até 2006, quando saiu por exigência do novo acionista majoritário. Sartre foi o diretor de Redação do jornal, juntamente com Jean-Claude Vernier, durante um ano. July assumiu logo em seguida e foi o mandachuva até sua demissão.
Lançado com um manifesto, o jornal pretendia ser totalmente atípico: sem publicidade nem acionistas capitalistas. A divisa do diário da esquerda maoísta revolucionária deveria ser: “Povo, toma a palavra e conserva-a”.
De 1973 até hoje, o jornal passou por momentos difíceis, correu sérios riscos, mas sobreviveu e tem um lugar importante no panorama da mídia francesa. Os cinéfilos, por exemplo, esperam a crítica deLibération para saber se vale ou não a pena ver um filme. Alguns críticos de Libé, como o chamam seus leitores familiarmente, se tornaram verdadeiras autoridades da análise do cinema e da imagem em geral – como Serge Daney, morto de Aids em 1992, aos 48 anos.
Obviamente, de sua fundação até hoje o jornal mudou. Mas não deixou de ser irreverente, iconoclasta, socialista, inovador. Nem abandonou o formato tabloide, mas há muito tempo se curvou à realidade: não podia sobreviver sem publicidade e sem os acionistas capitalistas. Libé tem desde 2006 um acionista majoritário cujo nome de família está associado ao grande capitalismo francês: Edouard Rothschild. Ao chegar ao jornal num momento de crise, o novo acionista capitalista respondeu a um dos antigos fundadores – que escrevera que “o dinheiro não tem ideias”, citando Sartre – dizendo que Libération precisava de ajuda intelectual, moral e financeira.
Vingança impiedosa
Na atual conjuntura econômica, enquanto vários jornais do mundo fecham as redações que produziam o formato impresso e, quando muito, mantêm uma versão online, Libération se equilibra com vendas diárias de 120 mil exemplares. O site do jornal tem 4 milhões de visitantes únicos por mês.
Nicolas Demorand dirige o jornal com total autonomia: todas as decisões editoriais cabem exclusivamente aos jornalistas. São eles os responsáveis pelos riscos da irreverência, como quando o jornal fez, no ano passado, uma capa “assassina” com a foto do miliardário Bernard Arnault, o homem mais rico da França. Ele decidira fixar residência na Bélgica para fugir das novas leis do governo socialista. O título da matéria de capa (“Casse-toi riche con”, dá o fora rico babaca) fazia um trocadilho com uma frase agressiva de Sarkozy dirigida a alguém que se recusara a lhe apertar a mão. Obviamente, o milionário não gostou. E deu o troco.
Libération perdeu no segundo semestre 700 mil euros de publicidade prevista e anulada para os últimos meses do ano por causa daquela capa. O milionário é simplesmente dono de marcas como Louis Vuitton e Dior, entre dezenas de outras, que anunciavam com regularidade no jornal.
***
[Leneide Duarte-Plon é jornalista, em Paris]

3 comentários:

Patrícia Morais disse...

Leneide, ao invés do comunismo,
penso que estão colocando os muçulmanos no lugar dos judeus em fins do XIX e primeira metade do XX.
Um novo anti-semitismo, já pronto, está sendo redistribuido para os inimigos da vez, que são os muçulmanos. Os argumentos são adaptados, mas a raiz é a mesma.
Pensava que já haviamos aprendido essa lição. Espero que o resultado não seja o mesmo.

Patrícia Morais disse...

Leneide, ao invés do comunismo,
penso que estão colocando os muçulmanos no lugar dos judeus em fins do XIX e primeira metade do XX.
Um novo anti-semitismo, já pronto, está sendo redistribuido para os inimigos da vez, que são os muçulmanos. Os argumentos são adaptados, mas a raiz é a mesma.
Pensava que já haviamos aprendido essa lição. Espero que o resultado não seja o mesmo.

Anônimo disse...

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