sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Greve geral

Sarkozy constatou esta semana que a França é um país difícil de governar. Quase dois anos depois da posse, o presidente lembrou que os franceses são um povo regicida : protesta, manifesta e, depois de derrubar a Bastilha, corta a cabeça do rei. Ele deve estar com as barbas de molho.
Escrevo os bilhetes enquanto acompanho pelo rádio e pela TV o movimento de greve geral que parou hoje (quinta) Paris e dezenas de cidades francesas para dizer “basta” ao governo. Sem trem, sem metrô, sem escolas, sem universidades e os principais serviços públicos funcionando no mínimo estipulado por lei em caso de greve (service minimum) Paris viveu um dia atípico.
Professores, pesquisadores, médicos e enfermeiros, estudantes, jornalistas e todos os franceses que vêm no programa de reformas de Sarkozy uma ameaça ao serviço público em geral e ao emprego e poder aquisitivo foram às ruas dizer que as reformas estão piorando a vida de todos e que o povo quer manter o sistema francês de educação e de saúde, um dos melhores e mais democráticos do mundo. Os líderes sindicais e os políticos da oposição se juntaram à multidão que em Paris desfilou da Bastilha até Opéra.
Os policiais, que normalmente são mobilizados apenas para proteger os bens públicos e privados na passagem das passeatas, hoje desceram às ruas para se juntar aos manifestantes. Eles gritavam slogans como “Du fric pour les flics, du blé pour les poulets”. As duas frases querem dizer a mesma coisa : « Grana para os flics” (policiais na gíria). “Blé” é outra palavra de gíria para dinheiro e “poulet” é também policial na gíria. Eles defendem, entre outras coisas, revalorização dos salários e manutenção da aposentadoria depois de 37,7 anos de cotização. Além disso, os policiais protestavam contra a supressão de 10 mil vagas.
Os flics que normalmente olham tranquilamente os manifestantes passar, super-protegidos por coletes à prova de bala e todo o arsenal moderno anti-rebelião, como no sábado passado na passeata pró-Palestina, dessa vez se juntaram aos descontentes.
Algo começa a mudar na Sarlolândia.

Tirem o nome do meu avô de Yad Vashem

Esse é o título do artigo que o Le Monde publicou no jornal de ontem. O escritor Jean-Moïse Braitberg escreveu uma carta aberta ao presidente de Israel em que pede que o nome de seu avô, morto na câmara de gaz de Treblinka, seja retirado do memorial às vítimas do holocausto, em Israel. Traduzo alguns trechos: “Eu lhe peço para atender ao meu pedido, senhor presidente, porque o que aconteceu em Gaza e de uma maneira geral o que acontece ao povo árabe da Palestina há sessenta anos desqualifica a meus olhos Israel como o centro de memória do mal feito aos judeus e à humanidade inteira."... “Aprendi que era preciso que esses crimes cometidos (pelos nazistas) não recomeçassem, que nunca mais um homem por causa de sua etnia ou religião fosse levado a desprezar os outros, a oprimi-lo nos direitos mais elementares que são uma vida digna e segura.”... “Ora, senhor presidente, observo que apesar de dezenas de resoluções tomadas pela comunidade internacional, apesar da evidência gritante da injustiça feita ao povo palestino desde 1948, apesar da esperança de Oslo e apesar do reconhecimento do direito dos judeus israelenses a viverem na paz e na segurança, diversas vezes reafirmadas pela Autoridade Palestina, as únicas respostas dos governos sucessivos de seu país foram a violência, o sangue, o enclausuramento, os controles em check-points, a colonização e as espoliações.” ... “O senhor dirige um país que pretende não somente representar a totalidade dos judeus mas também a memória dos que foram vítimas do nazismo. E é isto que me diz respeito e me parece insuportável. Conservando no memorial de Yad Vashem, no coração do Estado judaico, o nome dos meus próximos, seu Estado retém prisioneira minha memória familiar por trás de arames farpados do sionismo fazendo-a refém de uma pretensa autoridade moral que comete a cada dia essa abominação que é a negação da justiça. Assim, por favor, retire o nome do meu avô do santuário dedicado à crueldade feita aos judeus para que ele não justifique a que é feita aos palestinos”.
Jean-Moïse Braitberg entrou para a minha lista dos homens justos.

Filho do rabino e militante pela paz

Conheço e acompanho o trabalho de Michel Warschawski há alguns anos. Ele é filho do grande rabino de Strasburgo, na França, Meir Warschawski, falecido recentemente. Seu pai fez parte da resistência ao ocupante alemão durante a segunda guerra mundial.
Enviado a Israel para fazer estudos talmúdicos, Michel se deparou com a realidade cruel da ocupação por Israel dos territórios palestinos. “Fazer parte dos ocupantes, numa posição que me colocava acima do outro, isso contradizia toda minha educação. Vivi essa situação como um atentado à minha integridade. Toda minha infância ouvi os relatos da ocupação alemã. Esse conceito representava para mim a quitessência do mal absoluto: a repressão, o racismo, as humilhações, o perigo permanente”.
Warschawski criou em 1984 o Alternative Information Center (Centre d’information alternative) que reúne vários movimentos pacifistas israelenses e organizações palestinas. Foi preso em Israel por distribuir textos relativos à organização palestina Frente Popular de Libertação da Palestina, de Georges Habache.
O último livro de Warschawski “Programar o desastre-a política israelense em ação” publicado no ano passado em Paris (La Fabrique-Editions) traça um retrato sem retoques do estado de guerra permanente do Oriente Médio e desmonta um a um os argumentos falaciosos repetidos exaustivamente pela propaganda oficial de Israel no mundo inteiro. Segundo Warschawski, a “guerra preventiva permanente” pregada pelos neo-conservadores que dominaram o governo dos Estados Unidos durante oito anos só levou ao desastre.
Warschawski desfaz mitos : “Contrariamente a uma imagem largamente difundida, o Hamas não é um grupo de fanáticos (seria um estereótipo racista?) mas uma organização política moderada, tanto em política externa quanto na política interna. As numerosas cidades dirigidas pelo Hamas são modelos de gestão eficaz e sem corrupção, comparadas com as que o Fatah dirigiu”.
Mas Israel e os americanos estigmatizaram o Hamas como grupo terrorista, mesmo depois que o partido islâmico submeteu-se ao jogo democrático e ganhou as eleições na faixa de Gaza, acompanhadas por observadores internacionais que constataram a normalidade do processo.
Em seu último artigo no jornal Siné Hebdo, Michel Warschawski escreveu que os pacifistas que saíram às ruas em Israel para exigir o fim do massacre em Gaza e o julgamento de Israel por crimes de guerra diante de uma corte internacional nunca se sentiram tão ameaçados e inseguros.

A “única democracia do Oriente Médio”: um apartheid modelo

Outro dia num encontro sobre Israel-Palestina ouvi o deputado europeu Daniel Cohn-Bendit repetir a frase que faz parte da propaganda oficial: “Israel é a única democracia do Oriente Médio”. Contando isso a uma socióloga e historiadora francesa de origem judaica, autora de mais de uma dezena de ensaios e romances, Régine Robin, observei que uma organização de defesa de direitos humanos israelense denunciou em Paris as leis discriminatórias que fazem dos árabes israelenses cidadãos de segunda classe, sem os mesmos direitos dos judeus. A historiadora observou com fina ironia: “Esse é um conceito singular de democracia com apartheid”.
Quando Régine Robin visitou Israel pela segunda vez foi a um mercado árabe de uma cidade ocupada. Ela conta que viu no olhar de um velho árabe o medo e a humilhação que só vira durante a ocupação alemã em Paris. Na época, ainda criança, Régine foi obrigada a usar a estrela amarela dos judeus.
Mudam os tempos, mudam os carrascos, mudam as vítimas.

Um comentário:

Patrícia Morais disse...
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