domingo, 14 de setembro de 2014

Em que molho seremos comidos?




Estamos numa encruzilhada: ou conseguimos organizar as resistências dos povos do mundo para mudar o curso da mundialização neoliberal ou nos contentamos, através da eleição, um dos últimos direitos formais que nos restam, em escolher o molho no qual seremos comidos. Eu não tenho absolutamente vontade de ser comido”. (Adolfo Perez Esquivel, Prêmio Nobel da Paz de 1980)



Resistência à igualdade

Li na Folha de São Paulo que uma associação comercial e industrial do Paraná propôs que todo cidadão beneficiário de uma bolsa de distribuição de renda do governo  seja impedido de votar.
Não há limites para a resistência à igualdade no Brasil.
Como não pensar na frase de Einstein ? « Duas coisas são infinitas : o universo e a estupidez humana, mas no que concerne o universo, ainda não estou totalmente certo. » 

Lavagem da Madeleine

Todo ano os brasileiros fazem uma festa diante da église de la Madeleine, em Paris, que por pouco mais de uma hora vive seu momento de Salvador. Este ano, foi no domingo, dia 7 de setembro, e a Embratur e a Prefeitura de Paris patrocinavam o evento que teve até Daniela Mercury num trem elétrico. 

Nunca tinha ido ver. Mas o dia de sol e a passagem de um amigo nos levou à Place de la Madeleine. De óculos escuros, o padre recebeu no alto da escadaria os pais e mães de santo vestidos a caráter. O “pai nosso” foi rezado em francês, em português e em yorubá.

 No final, baianas se ativam na lavagem simbólica da escadaria da igreja, ao som de grupos de percussionistas vestidos a caráter. 

Mais sincretismo religioso, impossível.


 Medéia francesa
A ex-companheira de François Hollande, a jornalista Valérie Trierweiler, acaba de lançar um livro Merci pour ce moment, que vendeu 200 mil exemplares em uma semana. Valérie foi comparada a Medéia por um articulista no jornal Libération : com o livro  ela comete o assassinato simbólico de Hollande, na falta de filhos do casal para assassinar.
Danièle Mitterrand, esposa do presidente François Mitterrand, que nunca foi conhecido por sua fidelidade conjugal, guardou a classe até o fim da vida. Nunca expôs a vida privada do casal e soube preservar a intimidade do presidente, mesmo sabendo que ele dividia seu tempo entre sua família legítima e outra que construíra paralelamente.
 Não li o livro da ex-first-girl-friend como se referia a imprensa americana a Valérie Trierweiler. Mas escrevi um artigo para o Observatório da Imprensa sobre a repercussão do livro na imprensa francesa:
http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/_ed815_missil_literario_contra_francois_hollande


Dominicano e marxista

“Para quem pretende mudar as estruturas da sociedade, Marx é indispensável” (Frei Tito de Alencar, 1972).
Fotos de Leneide Duarte-Plon (Clique sobre as fotos para aumentar)
Há 40 anos, dia 10 de setembro, o corpo do frade dominicano Tito de Alencar Lima foi encontrado pendurado num álamo, entre céu e terra, perto de um lixão, no interior da França.
Hoje, 14 de setembro, ele estaria completando 69 anos.
Escrever Um homem torturado, a biografia de Frei Tito de Alencar Lima foi um imenso desafio. Por se tratar de um personagem complexo, atormentado, paradoxal. Por se tratar de um religioso envolvido com um grupo revolucionário de luta armada contra a ditadura, pela morte trágica que o destino lhe reservou, pela importância que sua morte adquiriu transformando-o em ícone e “mártir” da resistência à ditadura, pelo momento político que viveu.
Foi como um desafio que aceitei a sugestão de um amigo editor de escrever a biografia de Tito, quando lhe disse que havia conhecido num colóquio em Paris, no Centro Primo Levi, o psiquiatra-psicanalista que tratou de Tito até sua morte. Consciente do volume de trabalho que o livro representaria, convidei a jornalista Clarisse Meireles para escrevermos juntas.
O Dr. Jean-Claude Rolland falara no colóquio “Langage et Violence-Les effets des discours sur la subjectivité d’une époque” (Linguagem e violência-Os efeitos dos discursos na subjetividade de uma época). Sua conferência tinha por título, “Soigner, Témoigner” (Tratar, testemunhar) e era um relato do caso Tito de Alencar.
“Tito vivia na certeza de que ia ser morto de um momento ao outro. Essa impressão deve ter sido o que ele viveu durante todo o tempo em que ficou preso e, principalmente, durante as sessões de tortura. Interiormente, ele vivia como um condenado à morte e o recurso ao suicídio tem como princípio a lógica: matar-se em vez de ser morto”, diz o psicanalista.
Antes e depois do Dr. Rolland, outros psicanalistas, juristas e filósofos fizeram conferências. O filme Batismo de sangue, baseado no livro de Frei Betto, foi projetado e seu realizador, Helvécio Ratton, debateu com o público.

Os frades dominicanos foram presos na chamada “Operação Batina Branca”, montada pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, criador do Esquadrão da Morte. O delegado era o “puro produto da polícia paulista com sua tradição de torturas e assassinatos” segundo o  jornalista Elio Gaspari, que escreveu: “Nunca na história brasileira um delinquente adquiriu sua proeminência”.
O delegado Fleury encarnava na época o combate aos grupos armados que resistiam à ditadura, os “terroristas”, como imprensa e aparelho repressor os qualificavam.
Depois da prisão dos frades, Fleury começou imediatamente a bombardear a imprensa com a versão da traição dos dominicanos. Os frades da ALN eram ora “terroristas”, ora “Judas”. Todos os jornais aderiram à versão de que os dominicanos haviam traído Marighella. As manchetes associavam as palavras “frades” e “terror”. O Globo deu na primeira página a fotografia do convento dos dominicanos com a manchete: “Aqui é o reduto dos terroristas do Brasil”. E fez um editorial, « O beijo de Judas » que não honra a história da nossa imprensa.
Começava a campanha da ditadura de desmoralização dos dominicanos, responsabilizando-os pela queda do “inimigo público número 1”. O regime tentava dividir a esquerda, ao apresentar os frades como “traidores”.
Para os militares, a divisão da esquerda era fundamental para aniquilar a luta armada e a resistência à ditadura.

O livro foi construído como uma investigação jornalistica, uma reportagem histórica, uma página que se abre a cada evento em torno da vida de Tito. Tivemos que contextualizar todos os principais fatos históricos nos quais Tito se viu envolvido direta ou indiretamente.
A história de Tito abre um leque de acontecimentos que reconstituímos: o movimento estudantil de 1968, as grandes passeatas e a importância do Congresso da UNE em Ibiúna, do qual Tito foi um protagonista paradoxal : sua atuação foi nos bastidores. Foi ele quem conseguiu o sítio através de relações de amizade e pagou na tortura esse envolvimento.
Paralelamente ao endurecimento do regime com o AI-5, a resistência organizou a luta armada, os sequestros de embaixadores. O governo tinha uma outra arma : a tortura como política de Estado, as prisões ilegais e “desaparecimentos”. Era preciso abrir uma janela sobre o sequestro do embaixador americano (captura, como prefere o historiador e ex-guerrilheiro Daniel Aarão Reis), que levou à queda dos frades e à execução de Marighella.
Por outro lado, o engajamento dos frades na ALN só existiu porque houve o Concílio Vaticano II e o aggiornamento promovido por João XXIII, seguido da renovação de parte da Igreja brasileira. Ninguém podia dizer que a Igreja progressista era “o ópio do povo”.
“Para quem pretende mudar as estruturas da sociedade, Marx é indispensável”, disse Frei Tito, já no exílio, em 1972, respondendo afirmativamente a um jornalista italiano que perguntou se ele era marxista.
Contar a vida de Tito impunha reconstituir um pouco da vida dos exilados brasileiros em Santiago e em Paris. Na capital francesa, a Frente Brasileira de Informação (FBI), fundada por Miguel Arraes e Márcio Moreira Alves, divulgava na Europa as prisões ilegais, tortura e desaparecimentos promovidos pelos agentes da ditadura. E muitos dos ex-exilados entrevistados confirmaram, com fatos vividos, a estreita colaboração entre os órgãos de informação brasileiros e a polícia francesa.
Para reconstituir a vida de Tito no exílio francês, fomos primeiramente ao encontro do psiquiatra e psicanalista que tratou dele até sua morte. O doutor Rolland tem 74 anos e vive cercado de animais de estimação, a  30 minutos de Lyon. Quando tratou de Tito, o médico já habitava essa casa, onde sempre viveu cercado de animais, um contato com a natureza vital para seu bem-estar.
Com o doutor Rolland, tomamos a estrada que leva a L’Arbresle para entrevistar todos os dominicanos que o conheceram e que ainda estão no convento. Depois, fomos ao Convento Saint-Jacques, em Paris, onde entrevistamos seus antigos mestres e diretores de estudos teológicos.
E pudemos ouvir aquele que foi seu mais próximo amigo durante o último ano de vida, o  dominicano Xavier Plassat, que vive no Brasil desde os anos 80. Plassat acompanhou Tito a praticamente todas as consultas com o psiquiatra em Lyon. Depois da morte de Tito, o francês organizou um precioso arquivo dos escritos do brasileiro e escreveu Alors les pierres crieront (Então as pedras clamarão, Paris, Editions Cana, 1980).
Nas entrevistas e na pesquisa, descobrimos um homem que viveu os últimos anos profundamente só e atormentado, mesmo tendo encontrado a compreensão de confrades acolhedores, primeiramente no convento  Saint-Jacques, em Paris, e depois no Convento Sainte-Marie de la Tourette, em L’Arbresle, perto de Lyon, um um projeto do arquiteto Le Corbusier.
A pesquisa nos fez descobrir uma veneração popular em torno de frei Tito, sobretudo no Ceará. O trabalho nos levou a alguns fatos da vida do dominicano, que acentuam sua humanidade, como seu afastamento do convento por um ano, em Paris, ou seu entusiasmo amoroso por uma moça de origem japonesa, que trabalhava na biblioteca do convento, em São Paulo.

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